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NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!... A invasão e o massacre de Gaza, uma espécie de campo de concentração...

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Ana Paula Godinho: ‘A justiça está como o resto do país’.

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...


Como é que está a justiça em Angola?
Eu sou uma operadora da justiça e por isso a minha opinião é sempre suspeita. Mas, apesar disso, dir-lhe-ei que a justiça está como está o resto do país.

Como assim? Está boa ou má?
Esta caminhando. Gostava de lhe dizer que em nenhum país do mundo a justiça funciona de modo eficiente, aliás é comum e recorrente ouvirmos em outros países do mundo que a justiça está sempre a reboque do poder, fala-se muito de que as pessoas com alguma influência na vida pública ou política do país normalmente não vão parar às barras do tribunal. Fala-se a este propósito no chamado crime do colarinho branco. Isto é uma realidade em todos os países do mundo e Angola não foge à regra, embora tenha que lhe dizer que, nos últimos anos, tem sido feito um grande esforço para melhorar. Mas, para isso, é preciso uma série de coisas, desde logo temos de começar por alterar a legislação porque somos um país independente há 37 anos e fomos colónia de Portugal. A nossa legislação era a utilizada pelo país colonizador.

Mas já se fala na aprovação de um novo Código Penal. Como é que está isso?
Exactamente, mas a verdade é que ainda não foi aprovado. Sei que a proposta já foi para discussão em Conselho de Ministros e que este órgão terá feito recomendações no sentido de se introduzir alguns tipos legais. Mas, de qualquer modo, é preciso fazer-se essa alteração legislativa e não é um processo muito fácil ao contrário do que as pessoas possam pensar. Há quem pense que foram 37 anos e já é tempo suficiente para alterar a legislação mas não é assim. Aliás, vou dar-lhe um exemplo concreto: em Portugal decidiu-se, a determinada altura, alterar o Código Civil ainda antes da independência das colónias. O Código Civil que hoje temos em vigor em Angola, que foi aprovado em 1866, demorou 22 anos a ser feito.

Quer com isso dizer que a aprovação do novo Código Penal vai demorar mais tempo?
Não acredito que na fase em que estamos leve mais tempo, mas tenho que lhe dizer que foi de facto um feito heróico dos colegas que trabalharam na revisão do Código Penal fazê-lo num espaço temporário de dois anos. Portanto, isso só é possível com muito empenho e dedicação. E as pessoas fazem-no na maior parte dos casos por amor à camisola, porque de facto nunca há muito dinheiro para a Justiça. Costumo dizer que a educação é um parente pobre dos orçamentos, mas a Justiça também não tem um lugar melhor. Voltando à pergunta que colocou dir-lhe-ia que a primeira questão que temos de atacar para melhorar o sistema de justiça é começar por alterar a legislação. Mas não basta, é preciso dotar os tribunais dos meios humanos e materiais necessários ao desenvolvimento desta função com isenção e imparcialidade.

Quais são as principais diferenças entre o futuro Código Penal e o ainda em vigor?
Tem que haver diferenças. Residem na retirada de alguns tipos legais e na introdução de outros, porque o Código Penal tipifica condutas que, em determinados momentos históricos, constituem crimes e o Código que hoje está em vigor em Angola é de 1888, já sobreviveu a dois séculos. O que quer dizer que hoje temos, até porque as sociedades, os factos sociais e as mentalidades desenvolvem-se de um modo tão rápido, a possibilidade de o Código tal como está feito, não prever situações actuais. O nosso código não prevê uma situação actual que é os crimes sexuais, que são praticados sobre menores. Prevê uma série de crimes sexuais mas todos eles só podem ter uma mulher como vítima, como, por exemplo, os crimes de estupro, violação. Se eu ou alguém violar um homem – e a prática mostra que a grande vítima dos crimes sexuais são os homens, como aconteceu com o Processo Casa Pia, em Portugal – aos olhos do nosso ordenamento jurídico não teríamos normas que enquadrassem o comportamento daquelas pessoas. Aquelas pessoas não podiam ser punidas porque só é crime aquilo que vem previsto na Lei. Na actual Lei esta conduta não vem tipificada como crime. Ora, é preciso criar estes novos tipos legais. Por exemplo, hoje a consciência comum abomina e condena as pessoas que não sustentam os seus filhos, que não auxiliam os parentes e nós, como africanos, ainda mais. Mas, a verdade é que nós não temos esta conduta tipificada quando em muitos países, como o Brasil e Portugal, ela está tipificada e é crime uma pessoa não sustentar os seus filhos, não auxiliar os parentes a que está obrigado. O facto de sermos parente de alguém cria-nos a obrigação de sermos solidários com essa pessoa, quer seja  filho, pai ou irmão e nós não temos este tipo legal. Não tínhamos até há pouco tempo também o crime de violência doméstica, muito pelo contrário, porque o Código Penal que está em vigor, curiosamente, tem uma norma que quase permite que um marido mate a mulher legitimamente se a encontrar em casa com outro homem ou se ela o trair. Na verdade, o código foi feito por homens e para eles a traição é uma coisa muito grave. Se fosse assim para as mulheres não sei o que é que seria, o país já não tinha homens. De qualquer modo, a traição para o homem é uma coisa muito grave e a nossa Lei permite isso. Curiosamente, depois da independência pensávamos nós que esta norma teria sido alterada por força da nova disposição da Constituição que consagrava a igualdade entre homem e mulher mas, em 1977, houve um acórdão do então Tribunal da Relação – que hoje não existe – que considerou válida esta norma. Ora, essa norma produz discriminação. É certo que também confere à mulher o direito de matar o marido, mas ela só o pode fazer se encontrar no leito conjugal o marido com outra. E ele não, basta que saiba que esta sendo traído. Mas falava-lhe desta norma só para lhe dizer que há muitas que já caíram em desuso. Há o crime de adultério previsto no nosso código, é crime, é uma conduta que está tipificada e significa que uma pessoa que é casada e que se envolve num relacionamento extra-conjugal em princípio comete um crime.

Mas a realidade demonstra que há pessoas com mais de uma esposa?
Eles têm uma esposa e várias amantes. Há muitas pessoas que assumem e são factos públicos. Isto é um exemplo de vários tipos legais que caíram em desuso, por esta razão é que é preciso justamente mexer na legislação.

Como é que acha que o Código Penal poderá ultrapassar essa questão do adultério ou da poligamia?
Acho que o novo Código Penal não deve se pronunciar sobre isso. Eu se legislasse tirava em absoluto o crime de adultério, consagrava o crime de bigamia, nos casos em que uma pessoa se casa formalmente com duas pessoas. Porque o que acontece na maior parte destes casos é que o indivíduo é casado com uma senhora e depois tem muitas outras ou a senhora é casado com um e tem muitos outros, mas só que elas fazem-no de modo encoberto. Há casos conhecidos de senhoras que também têm mais de uma relação. Elas fazem-no de modo encoberto porque a sociedade condena uma mulher que tem mais do que uma relação por força dos ditames machistas mas a verdade é que se nós optarmos por consagrar o regime monogâmico no Código da Família devemos manter o crime de bigamia. Mas o adultério não, até porque não se justifica. O nosso Código da Família foi dos poucos que de facto foi alterado e temos de prestar uma homenagem a muitas mulheres angolanas que se bateram para que houvesse alteração legislativa a nível da família e refiro-me concretamente às dras. Maria do Carmo Medina, Teresinha Lopes, Paulette Lopes, pessoas que estiveram empenhadas na produção do novo Código da Família. A verdade é que o novo Código da Família vem permitir o divórcio, o que não acontecia no anterior, porque o casamento era religioso por força de uma Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé em 1945. E o casamento religioso só se dissolve com a morte de um dos cônjuges, então muitas pessoas não se podiam divorciar e, naturalmente, viviam uma situação de adultério. Pessoas casadas com outras e que têm uma relação com terceiras vivem numa relação adúltera. Hoje, permitindo a nossa lei o divórcio, não faz sentido que haja crime de adultério mas já fará que continue o crime de bigamia se efectivamente optarmos por um regime monogâmico nas relações jurídicas familiares. Esta a primeira questão que considero fundamental para alterar o sistema de justiça, mas depois volto para aquilo que é dotar o sistema de meios materiais e humanos necessários e suficientes ao desempenho desta função com verticalidade e com imparcialidade.

Porque é que a redacção sobre o aborto no novo Código Penal criou grande celeuma apesar de ser um assunto do dia-a-dia no mundo?
É natural que tenha criado porque nós não podemos fugir à realidade de Angola ser um país dominado pela religião. É certo que somos um Estado laico e não há dúvidas quanto a isso, mas a verdade é que hoje de manhã acordei, liguei o televisor e estava a passar uma missa. Ontem acordei, liguei o televisor e também estava a passar uma missa. Eu que sou ateia militante a 200 por cento pergunto-me: porque é que num Estado laico tenho de ouvir missa na televisão quando acordo? Ora, naturalmente, arranjo uma justificação para isso, é que sou ateia, mas sou uma excepção à regra, reconheço que sou uma excepção à regra. Mesmo dentro dos meus amigos, quando digo que sou ateia, eles dizem-me que sou uma herege e muitos tentam convencer-me que Deus existe e devo acreditar nele. Isto significa que me sinta de facto uma excepção porque verifico que a maior parte das pessoas que estão à minha volta – com quem convivo no dia-a-dia, que são muitas porque sou professora e advogada – são religiosas. A religião tem, de facto, um mérito e isso não lhe retiro, que é adoçicar o espírito das pessoas, porque, de facto, as pessoas precisam de acreditar nalguma coisa para atingirem os seus objectivos e é bom que tenham sempre uma determinada meta. E a religião consegue dar-lhes isso, acho óptimo, mas não tenho necessidade de perseguir uma utopia que se chama Deus porque fixei os meus objectivos, considero-me uma pessoa muito segura. Sei aquilo que quero e não tenho essa necessidade, mas reconheço que, na maior parte dos casos, a religião, o professar determinada religião, ir aos cultos, escutar a palavra de Deus através de um homem, faz bem as pessoas.

Mas essa questão do aborto como é que será ultrapassada?
A redacção actual permite o aborto até, salvo erro, às dez semanas de gravidez.

E como está a nova redacção no Código Penal em elaboração?
Desculpe, esta é a que se quer introduzir porque actualmente o aborto constitui crime, em absoluto.  

 É a favor da nova redacção, que despenaliza o aborto?
Sou em absoluto e das vezes que conversei com os colegas com quem tenho a honra de privar, foram todos meus professores, que estiveram na redacção do Código, sempre chamei a atenção para a necessidade da despenalização do aborto. Eu não concordo que o aborto seja um crime e na redacção actual é um crime, só nos casos em que a mulher é violada ou nos casos em que o feto venha com uma má formação congénita é que se permite que ela possa abortar para não ter um filho deficiente. Eu por acaso não concordo muito com esta perspectiva porque conheço o caso de uma amiga que soube que ia ter um filho com síndrome de Dawn e quis tê-lo. E modificou a sua vida para ter esse filho. Acho que quando uma pessoa toma a decisão de ter um filho com responsabilidade tem de aceitar se quer de facto ter esse filho e aceitá-lo como vier. Acredito que o nosso legislador tenha pensado de maneira diferente e tenha permitido que nestes casos concretos a mulher possa abortar. Mas acho que a mulher devia poder abortar sempre, dentro daquele período que os médicos consideram que verdadeiramente ainda não há um ser humano formado e comummente diz-se que são as 10 semanas. Isto por uma razão muito simples: quando uma mulher aborta qual é o bem que está a ser ofendido? O Direito Penal tutela bens essenciais e pune e ofensa destes bens. Qual é o bem que está a ser ofendido quando uma mulher aborta? É a sua integridade física. É a integridade física da própria mulher. E a lei permite que a própria mulher ou o próprio ser humano possa, por via do consentimento, limitar o seu direito à integridade física e só há crime quando há ofensa a um direito. Se a mulher pode pelo consentimento violar ou permitir a violação do seu direito, então não há direito violado porque o consentimento exclui a ilicitude desta conduta. Poder-se-ia dizer que há o feto, mas eu perguntar-lhe-ia: qual é o direito que o feto tem? Ninguém tem o direito a nascer. Esse direito não vem consagrado em nenhuma lei. Não há nada que venha consagrado na lei que diga que as pessoas têm direito a nascer. Nascem por mero acaso, umas vezes porque os pais decidem tê-las conscientemente e muitas outras até são frutos de uma garrafa de whisky num sábado a noite, como costumo dizer na brincadeira.

Outra questão polémica é que se pretende indiciar a questão do feitiço como crime. Como é que isso será possível tendo em conta que é difícil encontrar-se provas nestes casos e colidir com o direito costumeiro?
Não me parece que é poder indiciar o feitiço como um crime, não é isso. É poder indiciar pessoas que cometem crimes motivadas pelo facto de a outra pessoa ter feito feitiço. Nós em Angola vamos ter um problema muito sério. Não sei se não será como o problema dos acidentes de viação que acho que deve ser atacado rapidamente. Tenho motorista, mas vou a conduzir e ele ao lado, justamente porque por causa disso. Detesto ser conduzida e o que vejo na estrada parece um absurdo e só se justifica pelo facto de as pessoas ou não terem cartas de condução e as comprarem ou a Polícia Nacional estar a perder autoridade no âmbito da regulação da actividade rodoviária. Estou muito preocupada com a questão dos acidentes e também já o começo a ficar com a questão dos feitiços porque hoje verifica-se que as pessoas expulsam crianças de casa, matam crianças e velhos porque as apelidam de velhos. Quando comecei a advogar, há duas dezenas de anos, um juiz da secção, Dr. Cícero, nomeou-me defensora oficiosa de duas jovens que tinham sido detidas preventivamente por terem morto o próprio pai. Fui à cadeia conversar com as jovens até para preparar a sua defesa. Foi um caso que me marcou particularmente porque aquelas jovens tinham morto o pai conscientemente. Asseguro que se porventura o pai ressuscitasse, elas voltariam a matá-lo, porque estavam absolutamente convencidas de que tinham feito justiça, que o pai era feiticeiro, tinha encravado a vida delas e que não as deixava ser felizes. E eu acho que acreditar em feitiço é um sinal de subdesenvolvimento. As pessoas têm sempre necessidade de acreditar em alguma coisa e sempre prefiro que acreditem em Deus do que em feitiços, porque, de facto, quando as pessoas começam a buscar justificação para o mal que lhes acontece é muito complicado. A vida não pode ser só feita de coisas boas porque senão não teria sentido, as coisas más que nos acontecem na vida é que nos valorizam pela forma como nós as enfrentamos e saímos delas.

Tivemos o caso Kamutukuleni em que esteve envolvido o ex-governador do Kuando-Kubango, Jorge Biwango, e notou-se que é muito difícil encontrar-se provas nos casos que supostamente envolvem feitiço.  Como fazer?
Sabe porque é que é difícil encontrar-se provas? Porque o feitiço não existe, não acredito minimamente em feitiços. Aliás, na brincadeira, tenho dito aos meus amigos que não acredito em Deus nem no Diabo. E se o Diabo existe deve ser eu. Não vim ao mundo para fazer algo a ninguém, mas também não vim para facilitar a vida às pessoas que me querem fazer mal. Tenho que ser amiga dos meus amigos e implacável com os inimigos. Não posso recorrer às forças ocultas e a factos obscuros que não posso provar para justificar o que me acontece de mal ou bem. Normalmente é só para justificarem o que acontece de mal, porque o bem muitos não procuram justificar. Há pessoas que justificam dizendo que foi Deus. Mas a verdade é que a própria religião educa as pessoas no sentido de que se existe um Deus, ele existe porque há um diabo. Tenho muita pena que não se faça a nível das escolas uma educação séria entre as crianças para que elas não acreditem no feitiço. As pessoas normalmente ficam chocadas quando digo isto, mas custa-me dizer que aquelas que acreditam ou muito em Deus ou muito em feitiço são pessoas infelizes, mal resolvidas e são normalmente pessoas que têm da vida mais do que merecem. Porque há muitas pessoas que têm da vida o que querem mas não merecem, mas há outras que têm da vida o que merecem. A vida tem uma regra e se não acredito em Deus nem no diabo e acreditar no inferno, então direi que o inferno é aqui. Já Jean-Paul Sartre dizia que “o inferno são os outros”. Eu não diria que o inferno são os outros, mas sim que é aqui porque nós normalmente colhemos tudo aquilo que plantamos.  
O que acha da redução da data de inimputabilidade dos 16 para os 14 anos?
Acho que este é um dos aspectos do código que merece ainda um estudo e auscultação das pessoas.

Mas qual é a sua opinião? Concorda ou não?
Penso que se deveria manter os 16 anos, apesar de eu achar que hoje os jovens têm muita informação que lhes chega quase sem qualquer filtragem e que um jovem com 14 anos não é o mesmo que um jovem com 14 da minha geração. A primeira vez que vi um computador eu já era licenciada, mesmo assim não tinha um. Os meus filhos é que me ensinaram a trabalhar com computador e digo isso sem vergonha nenhuma, porque acho que isso também foi uma conquista minha. Para que eles me pudessem ensinar tive que lhes conquistar, tive que investir na formação deles. Eles hoje têm o mundo à distância do teclado e do dedo e no tempo em que tinha 14 anos a televisão tinha acabado de surgir em Angola.

É de opinião que um rapaz ou uma rapariga de 14 anos não sabem exactamente o que faz para ser responsabilizado?
Eu não sei se sabe. Ele pode é ter muita informação, mas essa informação chega-lhe de forma tão deturpada que ele pode achar que aquilo que faz está correcto. Não houve a preocupação de dirigi-lo e indicar-lhe a diferença entre o que está bem ou mal. Na minha geração, e provavelmente nas gerações anteriores, eram os nossos pais que nos conduziam, informavam e hoje não. Hoje os pais demitem-se da educação dos filhos, as mães nesta luta desenfreada pela emancipação postergam a educação dos filhos, o que acho um absurdo. Sou muito feminista, tenho fama disso, mas digo-lhe que não sou só feminista mas também mulherista. Mas há uma coisa que para mim é sagrada, a educação do meu filho e o tratamento da minha casa.

Acha que essa redução da idade de inimputabilidade dos 16 para 14 seja fruto de alguma pressão da sociedade tendo em conta o elevado índice de crimes perpetrados sobretudo por jovens?
Talvez seja isso, mas acho que nós não temos que reprimir determinadas condutas. Temos que saber as causas e combatê-las, não atacar o efeito. Porque é que hoje as crianças com 14 ou 15 anos cometem crimes? Não quer dizer que não o pudessem ter feito em tempos anteriores mas, de facto, hoje observamos que os jovens, alguns adolescentes, têm uma apetência muito grande para a maldade, têm a maldade muito refinada e é preciso saber porquê. É óbvio que haverá explicações, nós vivemos numa sociedade que ainda é muito violenta, saímos de um período de três décadas de guerra.  E é natural que, apesar de termos 10 anos de paz, o espírito das pessoas ainda não esteja pacificado, leva tempo a fazer isso. E essa tarefa deve começar na família. Eu gosto muito de observar as pessoas quando vou à rua, é difícil vermos um pai a conversar com o seu filho. Só uma pessoa que saio muito, gosto muito de festas e observo as pessoas. Mesmo os casais pouco conversam, mesmo no restaurante às vezes não dirigem a palavra um ao outro. Estão com os filhos e não conversam com eles. Pergunto-me: como é possível uma coisa destas? É de facto muito estranho, mas são realidades que podemos mudar e só é possível com educação. É certo que o berço não se adquire, é qualquer coisa que trazemos da família, mas a escola e o meio social podem influenciar decisivamente a conduta de um indivíduo. E se ele trouxer alicerces seguros da sua família é claro que não vai transigir, por isso penso que não vamos resolver a criminalidade dos adolescentes diminuindo a idade da inimputabilidade. Temos que acatar a causa e não o efeito, porque note que hoje a inimputabilidade é aos 16 anos. E a questão que lhe coloco é esta: um jovem de 16 anos comete um crime e então como ele verdadeiramente é inimputável e é menor não pode ficar numa cadeia comum, porque nestas cadeias há criminosos altamente perigosos. E se ele for para lá, sobretudo porque ainda é moldável, não está formado em absoluto e é adolescente, vai tornar-se pior do que eles. Nós tínhamos que ter casas de correcção. Há alguma casa de correcção em Angola? Não há. E essa é uma das condições que devíamos proporcionar à justiça para que ela comece a funcionar. Mas que não funcione só para reprimir, temos que prevenir. E para prevenir o crime temos que investir na sociedade, nas pessoas e, permita-me dizer, – digo isto sempre que posso e com muita pena – aqui onde se investe menos é nas pessoas. Compra-se tudo, fazem-se muitas estradas, pontes, barragens, obras óptimas, como a nova Marginal. Passei lá há duas semanas mas já estava toda suja e falei isso num programa que eu participo na LAC. O que é que adianta eu ter coisas tão bonitas se depois não tenho pessoas que vão dar continuidade à minha obra? Há que investir nas pessoas.

Mas também há que responsabilizá-las?
 Sem dúvida. Aliás, costumo dizer que não faz sentido nós atribuirmos direitos se, simultaneamente, não impusermos responsabilidades.

O novo Código Penal introduzirá a responsabilização colectiva. Como é que vê isso?
Olha, nós somos responsáveis por algumas coisas.

Só algumas coisas?
Há coisas relativamente às quais não tenho poder para alterar. Nem a minha voz é ouvida. Percebe? Sou professora desde os 18 anos, já tenho três décadas de professora e os meus alunos devem estar fartos de mim. Porque vou dar aulas diariamente e eu converso com os meus alunos, falo-lhes da vida, conduta, educação, dos erros ortográficos que não devem dar. Eles até devem pensar que eu é que sou maluca. Não pensam, acredito que não pensam porque tenho tido muita manifestação de carinho de alunos. Aliás, tenho que referir uma gentileza que me fizeram, e emocionou-me bastante, o ano passado os alunos da turma que lecciono da Universidade Agostinho Neto. Tiveram a gentileza de ir ao Facebook retirar uma fotografia que tinha na minha página, mandaram fazê-la em tamanho gigante, encaixilharam, deixaram um espaço à volta todo branco onde cada um dos cerca de 200 alunos que tenho escreveu uma mensagem. E o que retive de todas essas mensagens é que todos eles gostavam da forma como eu dava aulas, porque não dava só a matéria, falava um pouco com eles sobre a vida e a formação. Portanto, esta é a parte que posso fazer. Quando somos cidadãos de um país temos responsabilidades por sermos cidadãos deste país. E temos que procurar com a nossa actuação fazer com que amanhã tenhamos um país melhor. Então tenho que fazer ouvir a minha voz nos momentos em que estou investida de alguma autoridade. Se tenho uma plateia de 200 pessoas e sei que estão atentas a ouvir-me, porque não aproveitar para passar aquilo que considero que é bom ou, se calhar, não é? Mas, pelo menos, tenho que fazer a minha parte. E se cada um de nós fizesse a sua parte lá no seu sítio, exigisse dos outros rigor, se cada um fosse compreensível e solidário com o outro teríamos um mundo muito melhor. O que vemos hoje no mundo é que ninguém quer ser responsabilizado por nada, todos querem ser desculpados por tudo. E a culpa normalmente morre solteira.

Quando se fala em responsabilização normalmente pensamos no cidadão normal, mas também há o próprio Estado. Como é que podemos responsabilizá-lo?
O Estado somos todos nós.

Vamos usar o caso das chuvas. Os problemas são os mesmos e as soluções tardam, mas a população continua a sofrer. Se tiver o meu carro submerso numa avenida que era suposto o Estado ter recuperado há muito, o que é que devo fazer?
Eu, no seu lugar, demandava o Estado. Se um dia isso me acontecer vou demandar o Estado e pedir que me indemnize, porque as pessoas têm que assumir a responsabilidade pelo que acontece. Se bem que o Estado não tem culpa da chuva, poderá ter culpa de eventualmente não ter criado as infraestruturas necessárias para combater isso. Mesmo em Estados em que essas infraestruturas existem por vezes há chuvas anormais, há situações da natureza que estão fora do controlo do homem e nesses momentos eu ainda me questiono se Deus existe ou não. De facto, há muitas coisas que não têm explicação. Por exemplo, há dias você viu um furacão Sandy, aqui o pessoal na brincadeira diz que o nosso é o furacão Mingota. É de facto muita imaginação, ri-me a perder quando vi o nosso furacão Mingota. Mesmo nestes países em que há infraestruturas há coisas que não se podem prever, mas aqui em Angola há muitas coisas e as chuvas é uma coisa que se pode prever. Não vou justificar que houve a guerra, ela já acabou há 10 anos e é preciso atacar isso, porque esse problema de as chuvas inundarem as ruas não é de hoje. Ainda não era eu nascida e a minha mãe contava-me que no ano de 1960 houve uma chuva tão grande em Luanda... Achava graça porque a minha mãe dizia-me que as geleiras e os fogões do Quintas & Irmãos, que na altura era uma loja que vendia electrodomésticos, saíram à rua a boiar. Portanto, o problema das infraestruturas de Luanda já é antigo.
O que há a fazer? Agora que já não temos guerra e que parece haver dinheiro para alguns investimentos, nem que seja pela via das tão famosas Parcerias Público-Privadas (PPP), que se ataque o problema das infraestruturas. E não só na baixa, porque lá, apesar de tudo, ainda tem asfalto. O problema é os bairros periféricos. Vejo, por exemplo, aqui em casa quando chove que os empregados não vêm trabalhar, às vezes questiono que isso é preguiça e eles mostram-me através das fotografias tiradas com telemóveis que efectivamente não podiam sair das suas casas. É preciso investir no saneamento, nas infraestruturas e esta é obrigação do Estado. Deve fazê-lo rapidamente, porque quando o Estado investir nas infraestruturas não está a fazê-lo só em coisas materiais, mas também num bem que nos é muito caro que é a saúde. Porque se não tivermos infraestruturas, saneamento básico, vamos ter doenças e é recorrente vermos que quando chove as ruas ficam alagadas e os miúdos vão tomar banho naqueles charcos. É óbvio que vão ficar doente e isso acaba por ser mais um encargo para o Estado, porque depois vai ter que gastar uma vez que a nossa saúde é gratuita.
O novo Código Penal dá-nos uma maior garantia de respeito dos direitos humanos?
Penso que sim. O Código Penal, tal como todos os outros códigos, são no fundo a concretização do que consagra a nossa Constituição. Se quisermos ser realistas e honestos é uma Constituição moderna que, pelo menos formalmente, garante, respeita e consagra os direitos humanos. Estou-lhe a falar nos direitos humanos na sua generalidade, porque, como sabe, há três gerações de direitos humanos. Quando surgiu a primeira luta pelos direitos humanos foi na perspectiva de defender o cidadão contra as arbitrariedades do Estado. E ai falava-se nos direitos políticos. Depois passou-se a falar nos direitos económicos e hoje, quando falamos em direitos humanos, referimo-nos a realidades mais materiais, como o direito à habitação, saúde, constituir família e, inclusivamente, nesta última década as Nações Unidas até declaram o direito das mulheres e das meninas adolescentes também direitos humanos. Portanto, na verdade, ao longo do tempo e à medida que se vão tomando consciência de algumas arbitrariedades dos Estados, das próprias sociedades e à medida que o pensamento vai evoluindo vão nascendo outras categorias de direitos humanos. Qualquer dia destes serão direitos humanos os direitos dos seropositivos, já são, os direitos dos homossexuais, porque são realidades que surgem e que devem ser, de facto, respeitadas e tuteladas, porque estou a respeitar os direitos humanos quando puder respeitar a diferença. Pelo facto de eu ser heterossexual não posso exigir que meu filho ou meu parceiro também o seja. Tenho que respeitar a diferença, posso não concordar com ela porque é um direito que me assiste. Há pouco disse-lhe que não sou religiosa, costumo dizer que sou ateia a 200 por cento, mas respeito as pessoas que são religiosas, todas as religiões, quaisquer que sejam. Respeito as pessoas que têm vocação e que elegeram como profissão transmitir a palavra de Deus, ainda que não acredite nele. Estão, por essa via, a pacificar os espíritos. Tenho que respeitar estas pessoas, só posso ser compreendida nas minhas opções, exigir respeito, quando também respeitar as opções dos outros.

A Lei das Tecnologias de Informação e Comunicação foi congelada na Assembleia Nacional por conter alguns pontos que atentavam contra a liberdade de imprensa, particularmente a divulgação de imagens e fotografias mesmo que autorizadas, que poderá culminar com prisão até um ano para quem o fizer. O ante-projecto de Código Penal possui aspectos semelhantes. O que acha?
A questão é esta: nós temos a ciência a nosso favor no mundo moderno e, por vezes, a utilização destes meios tecnológicos leva-nos a violar direitos de outras pessoas. E, por vezes, até encontramos alguns direitos em conflito. Encontramos o direito que determinadas pessoas têm de ser informadas sobre uma situação mas encontramos um outro direito que é fundamental e é um direito à personalidade, que é o direito à honra e imagem de uma outra pessoa. Tenho que dizer com alguma mágoa que aqui alguma imprensa tende por vezes a violar direitos das pessoas. É preciso ter muito cuidado com isso, o jornalista tem à sua disposição a pena. E a pena, de facto, costumo  dizer que  é uma arma muito mais poderosa que aquela que dispara balas, mas é preciso usá-la com responsabilidade. Não posso respeitar um jornalista que use a pena para passar um atestado de menoridade à profissão que exerce. Por vezes deixa-se mover por questões pessoais, publica coisas absolutamente absurdas. Vou-lhe dizer que eu própria já fui vítima disso várias vezes e em todas entrei com uma acção judicial contra o jornalista em questão. Acho que nós temos alguns direitos que não podemos deixar que os outros violem sob pena de nos perderem o respeito. A dignidade é como a virgindade, só se perde uma vez, apesar de hoje já existirem muitas técnicas reconstrutivas e eu ter conhecimento que muitas mulheres voltam a ser virgens 20 vezes. Mas na verdade, em rigor, só se perde uma vez e depois numa mais se retoma. É preciso tutelar esse interesse com muita eficácia e lutar sempre que alguém nos ataque nesta vertente. E é óbvio que as tecnologias de informação são o meio privilegiado para se fazer isso, porque as pessoas aproveitam muitas vezes para dizer coisas absolutamente despropositadas e que não fazem nexo nenhum. Sou uma pessoa que procuro andar bem informada e até tenho uma página no Facebook, que criei, na verdade, para poder acompanhar a vida dos meus filhos. Para saber o que eles faziam, com quem andavam, comunicavam e vou criando páginas nas outras redes onde eles criam. Eles gozam comigo porque dizem que os amigos chamam-me ‘capslock’ porque só escrevo com letra maiúscula e a minha filha diz que isso significa que estou a gritar. Digo-lhe que a letra maiúscula só significa a autoridade que tenho e às vezes quando vejo que a minha filha diz uma palavra errada no Facebook, entro e corrigo. Digo-lhe que não foi essa a educação que lhe dei e as pessoas devem achar estranha. Gosto de ler tudo, visito todos aqueles sites que têm notícias sobre Angola, como o Angonotícias, Club-K e outros. Fico muito triste porque vejo notícias que a mim, enquanto cidadã, também me deixam triste. Se calhar se fosse chamada para emitir opinião também iria criticar, mas certamente não o faria como fazem as pessoas que o fazem aí. Fico triste é pelo nível de comentários que as pessoas fazem, isto entristece-me porque efectivamente reparo que estamos a criar uma juventude sem nível nenhum. Para além de escreverem muito mal. Por isso repito sempre que o investimento na educação é preciso. Dizem coisas de uma baixeza de bradar aos céus que eu nem nos momentos de maior fúria era capaz de dizer. E é preciso chamar a atenção das pessoas para isso, porque posso não gostar de alguém mas não há ninguém que tenha só virtudes, assim como não há ninguém que só tenha defeitos. Aquela pessoa de quem não se goste tem com certeza virtudes e é para essas que devo olhar, porque são as virtudes que nos aproximam das pessoas e não os defeitos. Quando visitamos esses sites ou páginas vemos coisas incríveis.  E é preciso fazer-se justiça às pessoas e às coisas. Contesto tudo o que vejo, quem me conhece no dia-a-dia sabe disso, mas procuro contestar de uma forma construtiva porque se o fizer de forma grotesca os outros não vão ouvir. Vão é fazer pior, para além de que a minha critica não construtiva, que se traduz em falta de educação, não me vai valorizar em nada. Vou dar-lhe um exemplo de uma das últimas vezes em que visitei o Club-K: há relativamente pouco tempo o Presidente da República penso que ia viajar e houve um problema com o avião. Não sei muito bem o que se passou, mas penso que terá sido com um pássaro. Estava a trabalhar e recebi uma notificação do Club-K e foi por aí que tive conhecimento da notícia. Como pessoa, quando ouço dizer que caiu um avião ou teve problemas, a primeira coisa que penso é o que terá acontecido com as pessoas, houve feridos ou mortos? O que é natural. Os comentários que vinham a seguir é que devia ter caído. Eu não era capaz como pessoa dizer isso a outra pessoa, por muito que não gostasse da outra. E é natural que eu enquanto pessoa fique ofendida se alguém fizer um comentário daquele tipo a meu respeito.          

Por: Dani Costa
fonte: OPAÍS.NET


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