A "Sucessão", a República e o Regime - Mihaela Neto Webba.
Luanda - Este mês, o Deputado João Melo (JM) trouxe ao debate público três questões de fundo relativas ao nosso futuro político: o republicanismo da nossa República, a legitimidade de uma candidatura do Presidente Eduardo dos Santos e a necessidade de preservação do actual regime. A tese defendida pelo Deputado parece radicar em três equívocos doutrinais que, pela sua pertinência, resolvi igualmente trazer ao debate público.
Primeiro, ao utilizar o termo sucessão presidencial nos moldes em que o faz, o Deputado confunde República com monarquia, pois nas repúblicas, o poder pertence aos povos e não às dinastias. Por isso não se fala sequer em sucessão, mas em alternância pessoal resultante da eleição democrática. E como a eleição republicana é competitiva, não se pode presumir um ano antes a vontade do eleitor e muito menos que essa vontade nacional que elegerá o Presidente da República em 2012 se resuma a “duas fórmulas em discussão” no seio de um só partido ou de algumas famílias.
Segundo, depois de mais de 30 anos no exercício do poder, o republicanismo não permite que José Eduardo dos Santos se candidate a qualquer cargo electivo da República.
Terceiro, o regime actual atenta contra os princípios estruturantes da República, contra os direitos e liberdades dos cidadãos e contra os objectivos da independência nacional e da democracia participativa. Por isso não pode nem deve ser preservado.
Segundo o Deputado Melo, “há duas fórmulas em discussão para levar a cabo a sucessão presidencial. Uma delas, (…) prevê que este (JES) seja o candidato do MPLA em 2012, devendo, em princípio, renunciar ao cargo dois anos depois (…). A outra prevê que, em 2012, o MPLA submeta aos eleitores duas figuras completamente novas para os cargos de presidente e vice-presidente. Em ambos os cenários, José Eduardo dos Santos continuaria à frente do MPLA até 2014”.
Qualquer uma dessas “fórmulas” é inconstitucional. A questão que se coloca à cidadania nacional é se uma pessoa que, pelas mais variadas razões, ocupou o cargo de Presidente durante mais de 30 anos pode voltar a candidatar-se para funções presidenciais, como se nada se tivesse passado. Não pode! Qualquer candidatura de Eduardo dos Santos fere três princípios fundamentais: o princípio republicano, o princípio democrático e o princípio da igualdade.
O objectivo essencial do princípio republicano é limitar o exercício do poder político pela mesma pessoa ou grupo de pessoas; este princípio postula entre outros aspectos os seguintes:
a) A temporariedade de todos os cargos do Estado, políticos e não políticos, electivos e não electivos; consequentemente, a proibição quer de cargos hereditários, quer de cargos vitalícios;
b) a duração curta dos cargos políticos;
c) A limitação da designação para novos mandatos (ou do número de mandatos que a mesma pessoa pode exercer sucessivamente), devendo entender-se a renovação assim propiciada tanto um meio de prevenir a personalização e o abuso do poder como uma via para abrir as respectivas magistraturas ao maior número de cidadãos;
d) Após o exercício dos cargos, a não conservação ou a não atribuição aos antigos titulares de direitos não conferidos aos cidadãos em geral (e que redundariam em privilégios)[1].
Ao furtar-se sistematicamente à eleição para o exercício de cargos electivos; ao personalizar, abusar e exercer o poder do povo durante décadas – impedindo a abertura da respectiva magistratura ao maior número de cidadãos –; ao concentrar em si próprio os poderes que a Constituição de 2010 confere ao Presidente eleito da República e isentar-se da responsabilidade política pelo seu exercício, o actual Presidente da República ofende já os princípios democrático e republicano. Qualquer candidatura do actual Presidente violaria igualmente estes dois princípios estruturantes da República de Angola.
Relativamente ao princípio da igualdade, Eduardo dos Santos não pode ser nivelado com os demais cidadãos, porquanto ele controla (não institucionalmente mas pessoalmente) a informação, a comunicação social, as finanças públicas e a economia. E para o efeito conta com a máquina administrativa do Estado e com estruturas paralelas, civis e militares; conta ainda com a ausência de controlo e a não prestação de contas; conta também com a subordinação do poder judicial e da actual administração eleitoral. O peso que os mais de 30 anos de exercício de poder lhe conferem, de direito e de facto, nas estruturas de poder político, económico, militar e social do país, distorce o processo político e democrático republicano. A sua eventual candidatura favorece uma eleição anti-republicana e contribui para impedir a renovação da legitimidade democrática e emperrar, ainda mais, o processo de construção da democracia.
Dos princípios democrático, republicano e da igualdade material resulta uma clara e inequívoca interdição da candidatura do actual Presidente José Eduardo dos Santos quer para o cargo de Presidente da República, quer para o cargo de Presidente do Partido que governa. Isto deriva do facto de o nosso sistema de governo ter-se metamorfoseado, dando ao Presidente do Partido que vence as eleições a possibilidade de governar de facto por interposta pessoa, caso não tenha sido cabeça de lista. Na prática, a tese de João Melo, de que JES deve descansar ficando apenas como Presidente do MPLA, só permitiria um verdadeiro “descanso” se a Constituição impedisse que o Executivo e a bancada do partido maioritário fossem dirigidos pelo Presidente do Partido/Estado. O que não acontece. No sistema de governo atípico que a nossa Constituição consagra, quem dirige ou quem governa de facto é o Presidente do Partido que vence as eleições. Ele até pode forçar a renúncia ou auto-demissão do Presidente da República, por retirar-lhe confiança política.
Diz-se no seio da academia que a Universidade Agostinho Neto não ensinou durante largos anos o princípio republicano. Mas isso não nos isenta do dever e da responsabilidade jurídico-constitucional de o observar rigorosamente. A essência do republicanismo inclui contrariar a lógica monárquica de sucessão dinástica ou a auto-proclamação do Chefe do Estado como dictator rei publicae constituendae causa ou Cônsul Vitalício, de direito ou de facto. E esta expressão “de direito ou de facto” assume relevância no momento em que ditadores natos procuram defraudar o constitucionalismo republicano por se manterem no poder de facto, mas não de direito.
Na Rússia, por exemplo, observou-se que o autoritarismo e personalização do poder em Vladimir Putin, tornou praticamente irrelevante a questão de saber se ele ocupa a posição de Presidente ou de Primeiro-Ministro, na medida em que é ele, de facto, quem exerce o poder. Na Venezuela observou-se recentemente a aprovação, por referendo, de uma emenda constitucional admitindo a reeleição ilimitada do Presidente. Quer o líder russo, quer o líder venezuelano, violaram a essência do princípio republicano.
Se na Rússia e na Venezuela, os cidadãos estiveram distraídos, em Angola, isto não deve acontecer. Os angolanos não devem permitir que uma pessoa ou grupo de pessoas pisem a res publica e cuspam no estado de direito. O princípio republicano, o princípio democrático e o princípio da igualdade, não permitem que o actual Presidente de mais de 30 anos exerça o poder representativo de direito - como Presidente ou como titular de outro órgão – nem de facto - como líder partidário que exerce de facto o poder na sombra através do controlo de um delfim.
Independentemente da estratégia eleitoral do partido MPLA, a eventual candidatura de JES para exercer o poder que pertence ao povo, diz respeito a todos os angolanos. Eduardo dos Santos, os Deputados e sua base de apoio têm de perceber que o republicanismo não permite nenhuma das “duas fórmulas em discussão” no seio do MPLA. Têm de perceber também que não se pode actuar como Presidente da República e representantes do povo numa República sem se respeitar o republicanismo e as suas regras.
O Deputado João Melo vem igualmente dizer que “É preciso entender que o que está em jogo é o regime, (…)”.
Disto não temos a menor dúvida; é de facto o regime que Eduardo dos Santos criou, sustentou e sustenta até hoje que está em jogo e em sério perigo de desmoronar. João Melo advoga a defesa e a preservação desse regime, não da pessoa do seu Chefe. As instituições estão aí, as classes estão definidas, os poderes político, económico e judicial estão controlados pela máquina do Partido/Estado; os procedimentos para a manutenção deste poder estão estabelecidos, por isso há que preservar a todo custo este “regime”.
Esquece o Deputado que esse regime resulta de diversas subversões do constitucionalismo (alguém já afirmou que “JES vem gerindo o seu poder de 32 anos através de uma série de golpes constitucionais silenciosos e ardilosos para a concretização dos quais utiliza a subversão da lei e da democracia, a subjugação dos Tribunais, fraudes eleitorais, o clientelismo político, a corrupção e a cooptação política”). Os seus instrumentos actuantes são órgãos do próprio Partido/Estado e uma rede económica oligárquica por si controlada.
Esse regime foi consagrado constitucionalmente (ou dolosamente?) em Fevereiro de 2010, consumando o último de três actos políticos violadores do princípio republicano: o primeiro ocorreu em 2005, quando o Presidente da República instrumentalizou o poder judicial para declarar nulo o princípio republicano no respeitante ao seu longo mandato; o segundo ocorreu em 2008, quando o Presidente da República organizou uma eleição fraudulenta para impedir a concretização do princípio republicano no que respeita à legitimação da vontade popular realmente expressa nas urnas; em 2010, JES instrumentalizou a Assembleia Nacional para outorgar-lhe um mandato atípico, anti-republicano, sem eleição e sem prazo. A Assembleia Nacional, por sua vez, usurpou o poder (de soberania) do povo e determinou por acto legislativo inserto no artigo 241º da CRA, que o Presidente da República exercesse o poder do povo sem ser eleito pelo povo, ao arrepio do republicanismo.
O “novo” regime que o Presidente consagrou, não é republicano e por isso não pode nem deve ser preservado. Ele limita o pluralismo político, promove a supremacia de um Partido político em relação aos demais, mantém uma polícia secreta consideravelmente desenvolvida e sem controlo do Parlamento, não garante a independência dos órgãos de comunicação social públicos em relação ao Partido dominante e subordina as Forças Armadas ao Partido dominante. O actual regime angolano não pode ser considerado democrático, porque, no essencial, viola dois princípios estruturantes da democracia: o princípio democrático e o princípio do governo limitado. E mais: impede a alternância e concentra os poderes do Estado num só órgão, unipessoal, que não presta contas a nenhum outro órgão. Este regime não pode nem deve ser mantido.
[1] MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2010, p. 76-77.
fonte: MPDA
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Samuel