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NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!... A invasão e o massacre de Gaza, uma espécie de campo de concentração...

sábado, 11 de junho de 2011

VALE A PENA LER: SETE INSTANTES DE UMA PRIMAVERA

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...

FERNANDO JORGE PEREIRA TEIXEIRA 
Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)

O REJEITADO LEGADO DE AMÍLCAR CABRAL
POR UM POVO QUE REJEITOU-SE A SI MESMO
                                                                                             

Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas se morrer, produz muito fruto.
BÍBLIA: São João, Cap. XII Vers. 24 e 25


O FURTO DO RELÓGIO DE AMÍLCAR CABRAL 
(OU INTRODUÇÃO EM TRÊS RAZÕES E UM PRESSUPOSTO)
                                                                                             

“…mas no meu país não há montanhas, apenas o povo”.
                                                                                                          Amílcar Cabral E.U.A., 1972


Ainda jovem estudante do Liceu Nacional Kwame N`krumah, contaram-me que uma vez, durante o desenrolar da Luta de Libertação Nacional, Amílcar Cabral - no exercício das suas funções de Líder do Movimento -, foi visitar a Escola Piloto do Partido. No decorrer da visita, viu alguns alunos a jogarem ténis de mesa (ping pong); depois de observar a mestria dos meninos durante algum tempo, resolveu lembra tempo; e como todo “bom Guineense”, também um pouco bazofo, disse: - n`pude és (este jogo eu domino); e acto seguido, pegou numa raquete, e tirou o seu relógio do pulso e poisou-o num lugar ao lado. Arregaçou as mangas da camisa e “serviu uma bolada” ao menino que estava no outro lado da mesa; e assim, brincando e fintando, jogou quase uma partida. Não sei se ganhou ou perdeu, mas o facto é que depois do jogo, e de enxugar o suor da testa, ao ir pegar o seu relógio, verificou com espanto que este tinha desaparecido.

Disseram-me que foi algo inaudito e alarmante para todos os presentes: alunos e professores não sabiam o que fazer. Uma vergonha; tinham roubado o relógio do próprio Amílcar Cabral; algo impensável e extremamente grave; e ninguém sabia explicar o mistério. Todos procuravam com afinco, no chão, nos canteiros… Até que um professor, experiente, olhando atentamente para os presentes, com cara de poucos amigos, por fim disse: n`sibi és i quim (cu tomal). Dito isso dirigiu-se resolutamente para um dos alunos e ordenou-lhe que devolve-se o relógio imediatamente. O menino ainda hesitou, tentando esboçar um protesto, mas ao se ver assim confrontado (e descoberto), obedeceu prontamente. E um Amílcar sem jeito, um pouco embaraçado, pôde ver as horas por fim e ficar a saber (por fim, também?) que o trabalho que estava a ser feito podia ser bom, mas…

É neste “mas de Cabral” que o meu pensamento entronca no “dilema de Cabral”, que veio a revelar-se o mais complicado dilema das nossas vidas como povo e como simples cidadãos particulares. Por isso é também um dos objectos deste meu trabalho; mas por agora apenas direi que nunca esqueci esta singular história, por três razões:

A PRIMEIRA, porque ela fazia (finalmente) de Amílcar Cabral alguém igual a nós - e não um ser mitológico e distante, como estávamos habituados pensar em crianças - que era jovem, dinâmico, divertido, que também gostava de ténis de mesa (na altura gostávamos de nos reunir-mos todos os fim da tarde para jogar ping pong na U.D.I.B.); em suma, dono de um espírito livre e dinâmico, extrovertido, um pouco jactancioso até (n`pude és) à boa maneira dos Guineenses.

Tudo somado, características idênticas às que encontrava em muitos compatriotas que conhecia e até estimava. Aqui nada indica o “Herói do Povo”, o “Fundador da Nacionalidade”, o “Guia Imortal”. A Grandeza Histórica não era “invocada” pela primeira vez; em seu lugar apenas um “senhor baixinho” que usava óculos e sumbea. Por isso, de todas as “imagens” de Cabral que retive do que ouvia e lia na minha infância, esta foi a mais simpática, inocente e querida, se assim posso dizer.

Assim, este momento -, feito de um Amílcar Cabral, de mangas arregaçadas, correndo atrás de uma bola de ping pong, “levando baile” de um garoto - embora introspectivo e idealizado, deu-me a verdadeira noção de “grandeza” como categoria filosófica e histórica; na sua negação, no seu contrário. Pois na vida, muitas vezes é precisamente “o seu contrario” que nos da o real valor, a dimensão exacta, de algo. E assim, é um Cabral “pequeno”, divertido, despreocupado, destituído de “grandeza formal” que me dá, tal sua némesis, a verdadeira perspectiva de um Cabral “grande”.

E devo dizer, que este especial momento veio a contribuir bastante para a sistematização da minha particular visão, acerca dele. Pois desde o dia que vi o seu esquife, descendo a avenida que leva o seu nome, em Bissau, nunca mais vislumbrei a “grandeza”; devo dizer que, aliás, essa foi a primeira vez que vi a “grandeza” com olhos de ver.

Pois a “grandeza” não se compadece com o normal, com o corriqueiro das nossas desinteressantes vidas. A “grandeza” não deve ser sempre “heróica”? Ou não é isso que sempre destrinçou o herói do simples mortal?

A Grandeza: preciso desta categoria histórica, filosófica, moral e patriótica, para situar Cabral e a última epopeia do nosso povo, no seu devido lugar e grau; não apenas em termos morais dadas pela justeza insofismável da sua causa, mas em termos de grandeza. Só assim podemos preparar convenientemente o povo para a próxima epopeia, que esta para vir, para a consumação final do seu destino, fazendo-o acreditar na sua enorme e imperecível capacidade de o fazer.

Pois embora pareça estranho a muitos, hoje não se trata tanto de grandes realizações económicas, mas de preservar o povo. Trata-se em suma de proteger o povo para depois poder realizar. Preservar este povo que se dilui cada dia, como areia de praia pelos nossos dedos, desaparecendo na fímbria do mar; desaparecendo pelos países do mundo, engolidos por culturas estranhas, deixando apenas um ténue rasto de algo maravilhosa que um dia existiu. Esse rasto que encontraremos em terras distantes, na cara dos seus filhos, nos olhos dos seus netos, mas nunca nos seus corações. Esse algo que sempre existiu, esse algo insubstituível na terra, que só existe no povo no seu conjunto, que é necessário devolver. Pois em verdade vos digo, não se salva um povo pela economia, mas pela cultura.

Por isso escrevo hoje, pois da literatura também se faz a cultura de um povo, a história de um povo, o sentimento de pertença de um povo. E desta forma dar povo um profundo credo em si mesmo, uma sensação de participação politica superior, mais profunda, do que uma simples ida as urnas. No fundo trata-se de dar um objectivo claro e perceptível ao povo. Só com este sentimento é possível fazer o impossível, realizar o impossível através do povo, de forma que não espere realizações vindas de cima, mas as que partem de baixo, que surgem dentro de si próprio. Pois são essas que provam que ele existe e é uma identidade clara e palpável. Pois Governo algum, em tempo nenhum, por mais competente que seja, jamais poderá realizar a “parte” do povo na construção nacional. Pois o poder estabelecido não é o Presidente ou o Primeiro-ministro, é que eles representam e o que lhes deixa ou não governar.

A SEGUNDA RAZÃO que me fez não esquecer esse prosaico episódio da vida de Amílcar Cabral, foi porque na verdade só soube dessa história porque um dia nos jardins do Liceu Kwame N`krumah, alterquei com o tal “menino do relógio” (por causa de opiniões contrarias sobre um assunto delicado da vida estudantil). Na altura, sendo eu, ainda aluno do 1º Ano do Curso Complementar, ele já era um homem feito e um dos professores do Liceu. Por uma questão de educação (e de bom senso), não o devia ter feito, pois um aluno em princípio não deve disputar com um professor, mesmo que não fosse o seu (mas o caso era grave e não cabe aqui). O interessante é que depois de esse professor se ter ido embora (era um individuo inteligente, com ideias muito próprias), uma testemunha da nossa discussão, disse-me: sabes quem é ele? Claro que sei, respondi; - não, não sabes, retorquiu, ca bu odjal sim… I oçanti dé! Alguim cu ossa furta relógio de Cabral… pensa só... (não o subestimes; é ousado; basta ser quem teve a coragem de roubar o relógio do próprio Cabral… imagina...).

Na altura, nem ousei imaginar, fiquei apenas a vê-lo a atravessar a pequena faixa que separa o passeio do jardim das escadarias do Liceu, por onde subiu, desaparecendo na grande porta… mas algo muito profundo ficou desse dia. São a esses dias que retorno neste dia para a partir dos acontecimentos passados, entender e explicar o presente à sua luz. E faço-o da única maneira que sou capaz: indo ao baú de recordações da minha infância, da minha juventude e de “nha garandessa”, buscar aqueles instantes não sistematizados que todos temos, sepultados naquele cemitério de recordações mortas, feita de ódio imenso que cada Guineense carrega toda a vida, dentro dele. E assim, procurando através da Ideia e do verbo, dar finalmente uma forma digna a este conteúdo indigno, que é o nosso incipiente e claudicante Estado-Nação feito de tantos erros e omissões que se repetem e eternizam no tempo a espera do dia do julgamento.

Naquela altura vivíamos num mundo surreal, num universo de faz de conta; um mundo feito de certezas sem nexo, de teorias desconexas da realidade, de entendimentos espúrios, de incapacidades gritantes (um mundo ultrapassado pela história que ainda hoje teima em permanecer). Um mundo feito de todo um povo obrigado a remar contra a corrente da história, com o vento à feição ou não. E sempre que podiam, os elementos lúcidos desse povo, sejam do Partido ou do Povo, saltavam borda a fora. Mas aos timoneiros e aos marinheiros desse navio chamado Guiné, isso pouco importava; se o motor estragava, se as velas rasgassem, se não houvesse mecânicos nem costureiras, para os arranjar, haveria sempre remadores - que não discutiam, ou porque acreditavam no conto ou por não conhecerem o caminho de regresso nem da fuga, no nosso imenso Mar Atlântico da nossa perdição -, que continuariam a remar eternamente.

Hoje o “Caminho para a Índia” foi descoberta, e mesmo esses obtusos remadores já o conhecem, e também abandonam o barco todos os dias, sempre que podem; e por isso são acusados de traição e de falta de amor a pátria - como naquela altura outros também foram acusados pelos verdadeiros traidores e destruidores da pátria que sempre nos governaram -, por aqueles mesmos marinheiros ou “filhos” desses. Este sentimento que preparou o caminho a leis discriminatórias em que Guineenses tiravam nacionalidade a outros Guineenses, até chegar finalmente ao aziago dia em que o Guineense se tornou num expatriado no seu próprio país. Mas por agora, como vocês, só posso dizer que “cada kussa ku si cumsada... ma i ta tem si fim. Son si Deus ca misti ki ca ta caba. Embora é necessário dize-lo também plenamente como o poeta: Ma si no ca pui tudo na um mon i ca ta caba…

Durante a nossa “viagem nacional” rumo ao abismo, estes “timoneiros” e “marinheiros” nos contavam a história “oficial”, feita de discursos comoventes, de elogios ao heroísmo; uma história muitas vezes “combinada” num nível tal que já nem eles sabiam da “combinação”; nem onde a verdade acabava e onde começava a mentira, uma história feita de feitos transcendentes e de silêncios cúmplices, que nunca deixavam transparecer o que envergonhava. E assim sem conhecer a História, sempre fomos contra História; como povo obrigaram-nos a odiar a História. Obrigaram-nos a odiar a nós mesmos, as nossas origens, a nossa herança, a nossa cultura. E ao matarem o nosso orgulho mataram o povo que vive em cada um de nós, matando pelo caminho a parte do povo que vive em todos nós.

Por isso escrevo, mesmo pregando no deserto ainda, acreditando como Malcolm X. que "as únicas pessoas que realmente mudaram a história foram os que mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos”. Mas entendo que a “mudança de pensamento” na direcção de valorização do ser humano, nunca deve ser um fim em si, mas apenas um caminho para a valorização de homens como um todo, como um “conjunto de homens” unidos por um destino comum, que muitos teimam em não ver. E esta mudança qualitativa provocada pela quantitativa anterior, só valerá se proporcionar uma tomada de consciência nacional, que por sua vez vai originar uma mudança fundamental no conjunto dos homens, e deste modo deixarem de pensar como homens, para passarem a pensar como povo.

E devemos por isso na cabeça de cada Guineense, como uma certeza, que um dia será cumprida, pois sem isso o nosso destino não se realizará e nunca seremos uma nação, um povo e uma pátria de verdades. E se os meios ainda faltam, não tenham medo, pelo menos por enquanto devemos dar ao povo uma crença e esperança tal, que se for preciso morrer - para a materialização desse sagrado desiderato - estarem prontos e mais que dispostos; só assim é possível realizar o futuro hoje, aqui, nesta terra. E só quando isso se iniciar, teremos de novo o vislumbre de Grandeza.

Por isso a minha luta passa por aqui também, pois independentemente de questões de índole histórico profano - ligados a simbologias nacionais e ao passado comum, feito de actos heróicos, que qualquer povo precisa como de pão para boca para construir a sua identidade nacional - necessito nesta batalha retórica, verbalizar noções que povoam a minha existência desde a primeira hora que estive de facto em contacto com este povo, embora, pelo caminho, destruindo a fé de alguns, em verdades mentirosas que há muito interiorizaram como verdades verdadeiras.

Assim este texto não será consensual, pois sou obrigado a falar de coisas, que preferia não falar; e quiçá magoar quem não queria magoar. Pois podemos magoar mesmo aqueles que não conhecemos, e quem nunca veremos algum dia nas nossas curtas vidas. Pois falar de Amílcar Cabral é falar dos Guineenses. E falar de Guineenses é falar de coragem e covardia, de mártires e traidores, de homens honrados e de bandalhos.

Agora devo elucidar a ÚLTIMA RAZÃO que tem a ver com um entendimento - na altura, ainda na adolescência, apenas percepcionado de forma difusa - de que houve “algo mais” na Luta de Libertação, mais profundo do que os participantes vivos ou mortos alguma vez “puderam” entender na sua plenitude. Aquele algo impercepcionável que os “ultrapassava” - como indivíduos singulares - e só pode existir no colectivo do povo. Aquele algo transcendente que vai, para alem do ordinário acto de libertação física de um território sob dominação estrangeira.

Aquele algo que vai criar de raiz o povo que temos hoje. Aquele algo que - para o bem e para o mal -, junta todos os elementos, grandes e pequenos, negativos e positivos, do ser e nascer de um povo, para dar um “valor maior” a esse acto único e irrepetível, independentemente dos participantes singulares, de como e de que maneira participaram nela. Por isso se respeitarmos esse acto - o nosso primeiro acto como povo único -, o nosso primeiro dever, como dirigentes do povo, é o dever de não abastardar o povo; e segundo dever é de cuidar do seu porvir, como tal. 

Mas este entendimento, por mais magnificente e grato, não me impedia de discernir já nesse tempo que houve Uma Luta e Dois pensamentos. Diferentes expectativas. Distintos objectivos. Categorias que vieram condicionar tragicamente a nossa vida futura como Nação independente. Categorias que fazem parte e condicionaram esse algo, que fez com que “aqueles que vieram da luta” se sublimarem até não serem mais homens normais. Vindos investidos de uma falsa autoridade moral que fazia com que cada uma das suas palavras ou actos tivesse um poder superior; por isso, no fundo, menos de cinco centenas de indivíduos condicionaram todo um povo e a meia centena, que por fim desembarcou em Cabo-verde, dominou esse povo inteiro.

O episódio do relógio é pueril, mas sintomático, pois ilustra algo difuso mas concreto que a minha mente juvenil segurava por uma das abas, mas não sabia sistematizar. Pois aquele isolado acto de facto requeria mais que ousadia; pois naquela idade, naquela instituição e naquele tempo, aquele acto não era apenas uma questão de coragem; era algo que um menino, inocente, só realiza por imitação, por ver outros a fazer algo similar e a serem bem sucedidos…/? E por isso era, digamos, um sinal (prova?) de que noutros domínios, noutras frentes, também passavam-se coisas menos, digamos, exemplares… Será dessa altura, o roubo do motor de barco da marinha do PAIGC, pelo executor de Amílcar, o tristemente célebre Inocêncio Cani?

A Escola Piloto - um dos elementos essenciais do nosso ensino (…)” segundo Cabral - era o estabelecimento por excelência para inserção na nossa futura elite (que nunca chegou a ser), do saber, patriotismo, abnegação e de novas ideias, a partir das quais germinaria a nova nação, justa e livre. E se lá, podiam acontecer certos actos, então algo já não ia bem no reino da Dinamarca. Nas minhas aturadas - mas ainda não sistematizadas – análises juvenis, já percebia que houve um certo “desvio ideológico” (como se dizia então) já nos primórdios da Luta. Desvio esse que Cabral conhecia e tentou combater, mas sem sucesso.

Mas de uma forma ou de outra, é daqui que sai – coisa difícil de entender (e de provar ainda mais) por quem não procura um encadeamento dialéctico da coisas - um dos fios condutores, ainda ténues, mas já inquebráveis, que levarão a própria morte de Amílcar Cabral tempos depois…

Por isso começo este texto pelo fim, naquele momento em que o nosso país parou no tempo, de forma a penetrar no passado até esse “dia da infâmia”, pois o espírito e a alma da nação, tal como a vejo, está como que petrificado no tempo, desde aquele longínquo dia da sua morte. Morte que determinou e continua a determinar a nossa história recente, sem contemplações, como uma anátema.

É neste PRESSUPOSTO que estes “Sete Instantes” que irão ler, são uma tentativa consciente, de através de Cabral chegar aos Guineenses. Por isso o objecto do meu texto não terá nada a ver com engrandecer a obra ou tecer elogios a Cabral, mas uma tentativa séria de questionar alguns mitos e verdades feitas que povoam o nosso imaginário colectivo, a demasiado tempo, sobre ele e sobre nós próprios. Para desta maneira tentar discernir neste amontoado de destruição - deste país mais pobre do mundo -, que é hoje a Guiné, o fio condutor que leva ao seu verdadeiro legado. Assim chegar a outra questão, a de saber se a sua visão lhe sobreviveu; pois a visão, diferente da obra, quando ela é forte e justa, pode perdurar infinitamente no coração das gerações vindouras, mesmo que não se tenha traduzido em realizações gratas, por culpa de outros que vieram depois.

Nesta base, falar de Amílcar Cabral quarenta anos depois do seu assassinato deve servir para algo mais do que relembra-lo “com saudade”. Apenas enaltecer o homem e os feitos, por mais gloriosos que sejam, não serve para muito e pode pelo contrario prejudicar o nosso discernimento. Como também acredito profundamente que os heróis mortos não devem ser mitificados e postos num pedestal. Pois o primeiro passo para “anula-los” e à sua herança, para “que não incomodem”, é endeusa-los. Foi isso infelizmente que aconteceu com os nossos heróis nacionais e com Cabral.

Mas também não pretendo escamotear tudo de grandioso que fez na sua curta passagem por esta vida. Pois felizmente não me envergonhou; não digo “não nos envergonhou” pois infelizmente neste particular só posso falar por mim e por alguns iguais a mim. E falarei enquanto for vivo e tiver o direito de escrever sobre o meu povo; enquanto não me conspurcarem esse direito, e acima de tudo o dever de dizer uma palavra sobre a terra que me viu nascer. Esta terra que no tempo dele não tinha montanhas, apenas povo, que no meu tempo não tem povo, mas apenas tribos dispersas lutando por um lugar ao sol. E que no tempo dos meus netos, (face as mudanças que se avizinham céleres), não terá nem montanhas, nem povo, nem tribos e será apenas parte de outras nações; como já somos de resto, económica e culturalmente, embora continuamos a pensar erradamente que ainda somos independentes.

Mas eu não quero”ter razão” naquilo que digo, pois quando preanunciamos uma catástrofe, se ela sobrevier por fim, teremos razão, mas passaríamos melhor sem “ter” essa razão. Assim foi em 1998 e assim será um dia outra vez se não olharmos para onde sopram os ventos da história.
Há menos de um ano escrevia que a nossa revolução seria em conjunto com a revolução maior, que é a revolução continental Africana; e ainda não tinha secado a tinta da minha caneta os meus olhos virão as convulsões no norte de África e as movimentações no centro e sul; para quando a África Ocidental?

Existem os que sem saberem, estão empenhados em propiciar o deflagrar de uma revolução, embora inocentemente pensem que estão lutando contra ela. Por isso enquanto esperamos o cataclismo, o olho do furacão, devemos preparar a sua chegada, pois como bem dizia o “Tribuno do Povo”, Honoré Mirebeauquando nos empenhamos em dirigir uma revolução, a dificuldade não é fazê-la marchar, mas contê-la.” As revoluções não podem se racionalizadas. Se racionalizarmos “actos históricos” futuros, com conceitos como prós e contras nunca as realizaremos.

Mas mais importante que isso é necessário frisar que todas as revoluçoãos que se sucederem neste mundo, desde - a mãe de todas elas - a Francesa de 1789, só vingaram por serem portadores de uma ideia nova. Por isso eu não quero ser “portador da razão”, mas portador de uma “ideia nova”, pois sem uma ideia nova que galvanize um povo, nada se pode fazer com esse povo.

E isso é mais verdadeiro no “fazer História”, pois no que concerne a vida do povo, não basta estarmos do lado da História; temos que acompanhar o andamento da História, em suma devemos estar em compasso, determinar e também fazer História. Por isso acreditar na força das ideias sim, mas mais do que isso, é necessário encontrar os homens capazes de as fazer passar, para que as massas o realizem.
Por isso acredito piamente que a politica de ontem é a história de hoje, assim como também acredito que a politica de hoje é a história de amanhã. E a história de amanhã só não será a vergonha de amanhã, se a politica de hoje não for a vergonha de hoje.

Na morte de Kwame N`krumah - num dos seus raros “momentos de misticismo” - Cabral disse, com razão, que “Nós africanos, acreditamos firmemente que os mortos continuam vivos ao nosso lado. As nossas sociedades são constituídas por vivos e mortos.” E comungando dessa sua crença, apresento-vos este Amílcar Cabral, morto e enterrado, mas cada vez mais vivo cada ano que passa. Pois ele é um morto que caminha; as vezes, sozinho, as vezes, com os vivos, fazendo parte inseparável da nossa sociedade e do nossa mundividência como seres humanos dignos; como um dia fará parte da sociedade dos nossos filhos e netos, caminhando com eles, quando nós, os vivos de hoje, não mais caminharmos, e formos apenas os já esquecidos mortos de amanhã.

PRIMEIRO INSTANTE
UMA VIDA INACABADA
                           

A morte sempre nos acompanha e nós não somos nada sobre a terra, se não somos, desde logo, cativos de uma causa, a dos povos, da justiça e da liberdade."
                       
                                   Franz Fanon


O primeiro instante destas reflexões, foi protagonizado por dois velhos de oitenta e tal anos, que falam com voz trémula de experiencia, de vidas passadas, de duros combates, de realizações; falam com voz embargada de emoção, de vidas vividas com dignidade e entrega. Ambos, mais ou menos da mesma idade, cada um com o seu percurso política e revolucionário, falam-nos do homenageado, do Amílcar Lopes Cabral de seu nome, que já desapareceu do mundo dos vivos há quase quarenta anos.

Estamos no anfiteatro da Fundação Mário Soares na cidade de Lisboa, na sessão de preito pela passagem de mais um ano sobre o dia em que assassinaram Amílcar Cabral. O primeiro que fala, é o nosso anfitrião e Presidente desta Fundação, o venerando Mário Soares, antigo Presidente Português; no seu discurso de abertura da sessão, fala da importância deste cavaleiro africano há muito desaparecido que sendo vivo teria agora a sua idade. Nascidos os dois no mesmo distante ano de 1924 Mário Soares é mais novo três meses, pois Amílcar Cabral é de Setembro e ele de Dezembro.

O outro senhor aparenta mais ou menos a mesma idade, com porte e maneiras respeitáveis, antigo militante do PAIGC, viveu em Argélia e na antiga URSS. (Rússia actual), locais em que privou com Cabral. É ele que a minha mente escolhe para ser o primeiro a protagonizar este primeiro instante.

Pois este admirável senhor, embora tenha falado só no fim, depois de todos, embora quase cego, brindou-nos com um testemunho emocionante, embora propositadamente contido; um testemunho que só pode vir de alguém que há muito perdeu todas as ilusões e acordou de todos os sonhos; de um ser conformado com as injustiças da vida, da qual não espera mais nada. Numa voz rouca pelas intempéries da vida, monocórdica na sua falta de pressa, relatou conversas tida entre os dois e narrou momentos que comungaram. Contou alguns acontecidos com Amílcar Cabral que presenciou. E tudo isto calmamente, com simplicidade de alguém que fala do “frio que fez ontem ou do calor que fará amanhã”; percebi que era alguém que falava mais para dentro de si próprio, do que para nós. De olhos fechados, apoiado no espaldar de uma cadeira, com ambas as mãos, parecia um ser de um outro tempo, representante de uma raça de homens extinta pelo tempo, pela incúria e pela desilusão… uma raça de homens de verdade que tanta falta fazem hoje.

GERAÇÕES DA INDIGNIDADE

Esta homenagem feita a Amílcar Cabral, por outro combatente de liberdade, dilacerou o meu coração de pena, e incendiou-o de orgulho. O que esse velho contava tocava no fundo do meu ser (nos nossos?) pois ali estava alguém que entregou a sua juventude à causa do nosso povo, para hoje, pelos vistos, não ser nada (nem lugar teve na mesa de honra). Ou como diz o poeta, um “dos que nada levou”. Com uma voz triste, despida de emoções, apenas amparado de fatalidade, as lembranças de toda uma vida, não vivida em vão - ninguém vive em vão ao lado de Amílcar - mas inacabada… uma daquelas vidas que pela sua plenitude, merecem no último dia, no momento do último sopro, que este venha embrulhado nas imortais palavras de Pablo Neruda: confesso que vivi.

E ali estávamos nós, Quadros, com as nossas cabeças quadradas, que empurrados pelas desgraças da nossa pátria e dos nossos governantes, viemos parar a este país; partes desse universo infinito de quadros que o nosso país teve e (ainda) tem, sentados nessa sala, extáticos, balançando as cabeças concordantemente; ouvindo coisas sobre o nosso Cabral, num País estranho, numa cidade estranha, numa rua estranha, numa Fundação estranha … sem se aperceberem do estranho da sua estranha situação.

Aqueles quadros que eu observava com curiosidade, eram uma ínfima parte de milhares de quadros formados durante a vida e depois da morte de Cabral que nunca aplicaram e nem aplicarão no seu país 10% do que apreenderam nas escolas do mundo.

Comparados com estas maravilhosas gerações do antigamente -, que não quiseram viver por viver, que não quiseram viver de consequências, mas de realizações -, as nossas gerações actuais só vivem de consequências, do “que aconteceu” e “não aconteceu”. E não do que fizeram ou deveriam fazer. São a geração que nunca fará a história, que viverá eternamente de feitos de outros, esquecendo que chegou o tempo de não mais vivermos de consequências, mas de realizações.

- Velho, a tua geração fez o que tinha a fazer, as nossas não fizeram o que tinha a fazer em tempo nenhum, em nenhuma altura. Por isso não tem palavra na sua terra, por isso não podem influenciar o seu próprio destino. São a geração que para ter, precisa pedir favores a aqueles que são piores que eles…

Ali estávamos nós, Guineenses comuns, antigos quadros, novos quadros, recém-formados, estudantes, trabalhadores, outros, e mais outros, todos sem nenhum pingo de revolta, com sangue de baratas, dóceis como cordeiros (mas prontos para dançar ngumbé se nos chamarem), ouvindo histórias acerca de um seu compatriota que há muito tinha morrido, antes de nascerem, depois de nascerem… mas que os engrandeceu a todos… porque era um herói tão grande, que era de dois países… tão grande que era também de África inteira… tão grande que… Outras juventudes de outros países não tiveram tamanho herói para imitarem e inspirarem-se (Deus não lhes deu essa sorte) e nós tivemos… tivemos e não demos valor…

Como Cabral, infelizmente, também tínhamos motivos para Lutar. Pois nem o seu sacrifício foi em vão, nem o seu sacrifício serviu para libertar o povo na verdade. Tínhamos motivos de sobra para desafiar os regimes que vieram e pô-los em causa. Pois o que devemos fazer quando algo vai contra a nossa consciência e revolta o nosso ser? Tínhamos motivos morais, éticos, alem da responsabilidade acrescida para com o povo para tentar derrubar os regimes perversos e sanguinários que existiram no nosso país. Tínhamos os mesmos motivos que Cabral para desencadear uma revolução…, uma nova Luta pela alma do povo.

Mas s nossas gerações não tiveram dignidade, e sem dignidade não há gloria. Estas gerações de pedintes, as nossas gerações, não tiveram dignidade, nem ontem nem hoje. Pois só rouba quem é deixado roubar, só destabiliza quem é deixado destabilizar; só descontrola quem é deixado descontrolar; só mata quem é deixado matar. Se as nossas gerações, e com ela todo o povo, tivesse saído para a rua não se teria prendido ninguém, esbofeteado ninguém, matado ninguém. E não teria havido a guerra de 1998 e a nossa história seria muito diferente hoje. Na verdade a única protecção que o povo tem é o próprio povo.

Porque é que a pátria não foi engrandecida? Porque permitimos que as pessoas sem competência e saber nos governassem? Não nos ensinaram a amar o nosso País? Não tiveram pena do seu povo? Não tiveram vergonha de andar na rua? De dançar kussundé e de badja gumbé, de beber vinho de palma, cerveja pampa, enlouquecerem com n`sumsum e vinho de caju, naqueles dias (todos os dias) que a pátria resvalava-se para o abismo, inexoravelmente, sem retorno?

Os quadros lavaram as mãos perante a iniquidade e a indignidade. A parte mais lúcida do povo, a mais bem preparada, não cumpriu a sua missão. Por isso o bom nunca mandou no mau, o sensato no insensato, o competente no incompetente, o moderado no radical, o justo no injusto, como em países normais; foi sempre o contrário. Por isso o nosso país é o contrário dos países normais. Eis a nossa desgraça. Desgraça destas gerações pôs Luta de Libertação, pôs 14 de Novembro, pôs Guerra de 1998… as gerações pôs... nada. As gerações do nada. As gerações do “nada vezes nada fora”.

As gerações que não compreenderam esse outro grande contemporâneo de Cabral, o glorioso fundador da Negritude, Franz Fanon que nos diz com toda a naturalidade: A morte sempre nos acompanha e nós não somos nada sobre a terra, se não somos, desde logo, cativos de uma causa, a dos povos, da justiça e da liberdade."

O NOSSO DESTINO COMO POVO. O NOSSO DEVER COMO A ELITE DO POVO

Se a Luta de Libertação Nacional não foi apenas para obter a Independência Política - que era necessária para se poder construir a felicidade do povo, que era muito mais importante -, mas para realizar a Nação, então ainda estamos no mesmo sítio onde Cabral começou a cinquenta anos atrás. E com agravante que não estamos a preservar o povo e nem a caminhar em direcção certa, com passos necessários e prementes. Este pensamento nos remete para o campo da especulação histórica: o que diria ele se pudesse ressuscitar, dos anos da “governação” sanguinária, despótica, ditatorial do PAIGC? Que foi em termos de desenvolvimento nacional, em termos de crimes cometidos, muito pior que o colonialismo? E se estes que governavam eram piores que os outros que partiram, o que fazer então? Aconselharia os jovens a fazerem uma nova luta para se libertarem dessa gente? Pois os fundamentos sagrados da Luta de Libertação Nacional, esses serão sempre actuais.

Aquela geração que foi com Cabral para a Luta, no seu tempo, cumpriram…tiveram dignidade, dada pela Luta, dada pela gesta de Cabral, e um pedaço da manta da glória cobrirá os seus corpos também… Por isso falarei de uma vida inacabada, mas não para referir e lamentar apenas a desse velho homem que chora; a vida desse, ainda que inacabada, teve dignidade. Falarei, não para referir apenas a tristíssima, curta e inacabada vida de Amílcar Cabral… Uma vida vivida sem cumprir o seu destino… mas uma daquelas vidas em que a dignidade era simplesmente natural. Falarei também das nossas inacabadas vidas. Sim, das vidas de todos nós que ali estávamos sentados a ouvir… a ouvir… as vidas de todos os outros que não estavam ali, espalhados pelo mundo inteiro, mas também a ouvir… A ouvir o som dos seus corações, a ouvir o som do nosso descontentamento, como nação e como povo; a ouvir… até quando?

Habituados a pedir favores e indulgencias, esqueceram de ser homens dignos, e já só vivem de favores, mesmo hipotecando o futuro dos seus filhos. Esqueceram que o destino de uma nação é sempre responsabilidade de todos os seus filhos, mesmo aqueles que nunca detiveram o poder, mesmo aqueles que foram excluídos por motivos, como proveniência de nascimento, cor da pele, pertença tribal ou por delito de opinião.

Habituados a ajoelhar perante o poder, esqueceram que são a parte principal de um povo digno, que pacientemente esta a espera… ali, naquele lugar... que te viu nascer. Um povo infeliz, mas que o é por culpa nossa também... Ali graves e impotentes, balançando o corpo, balançando as cabeças tristemente... a ouvir e a pensar como poderia ter sido o nosso destino, aquele para qual Deus nos predestinou… o nosso destino como povo.

Habituados a nada fazerem, sem nunca entenderem a respeitabilidade e responsabilidade que o seu estatuto lhes dá perante o povo, apenas preocupados com a parte ostentatória de ter um diploma, que na maioria das vezes não serve e nunca servirá para nada. Pois se o povo lavrador tem o arado, mas também a terra para o usar; o povo pescador tem a rede, e também o mar para o utilizar; ele tem o diploma, mas nenhum sítio para o usar. Nenhum país para o utilizar; pois um diploma só vale quando o país tem um desenvolvimento, mínimo que seja, para o poder utilizar; um sítio para o empregar, uma universidade, um laboratório, uma fábrica, um hospital, uma empresa.

Perdidos em discussões estéreis e disparatadas, nunca conseguiram desempenhar um papel digno e útil no nosso país. Nunca se habituarem a ideia que são na verdade a parte mais esclarecida do povo, e por isso com mais responsabilidades que ninguém. Porque mesmo que não possamos “fazer a felicidade de um povo contra a sua vontade”, a parte mais esclarecida do povo, a sua elite, tem obrigação moral de defender o povo mesmo contra a vontade do próprio povo (se numa determinada altura este não esta compenetrado dos perigos que o cercam). Por isso ela é uma elite e para isso se preparou mais que a maioria da população.

Sem entenderem isso o vosso lugar por direito será sempre ocupado por aquele (que eles dizem com desprezo) que nada sabe, mas que sabe o que ele não sabe, pois “sabe ocupar”. Pois ele não ocupa com o direito de ser “o mais competente”, mas com o direito de na “ausência” deste (“o mais competente”), preenche o vácuo criado. Não pelo dever, mas pelo direito que a desorganização social e politica permite. Pois a Politica é como a natureza, tem horror ao vácuo. E como na natureza o ar ocupa imediatamente todo espaço vazio, os espaços vazios da nossa Política Nacional, são preenchidos por aqueles que não servirão melhor a nação, mas apenas porque este espaço está vazio e precisa ser preenchido.

E ali estávamos, dentro daqueles corpos que daqui a pouco se erguerão para partir, para no ramerrão do dia-a-dia, nas preocupações quotidianas esquecer Cabral de novo, esquecer que são parte importante de um projecto parado no tempo; de uma Luta nova ainda não iniciada. E assim, depois deste dia, antes mesmo de essas cadeiras esfriarem do calor dos nossos corpos, esquecerão o que ouviram, que na verdade a única coisa verdadeiramente sagrada na face da Terra é o Povo e a Pátria. E assim nunca serão condutores do povo na verdade e nunca construirão aquelas fábricas, aqueles laboratórios, aquelas universidades, que tanto necessitam para realizar a sua formação, que apenas ficará no papel.

Este triste pensamento chegou-me através dos meus olhos que vagueando pela sala plena, só podiam atentar em cada um deles, meninas e rapazes, homens e mulheres, quadros maduros e recém-licenciados, em estudantes apenas… para sentir o trágico da nossa existência como seres individuais e como povo.

Por isso o meu dever, o meu papel do Quadro, é apenas um só: dentro da medida das minhas parcas forças, tentar conduzir este povo até o ponto onde desejaria que estivesse, mas se as forças me faltarem, se não poder conduzi-lo, ele continuará, de todas as formas a ser o meu povo. E nele terei orgulho, pois nele me revejo, e é nele que devo ir buscar a energia vital para continuar. Pois sei que só somos verdadeiramente humanos a partir da decisão de amar o povo mais do que a nós mesmos; digo isto realisticamente, sem falsas emoções, apenas compreendendo sem nenhuma dúvida, profunda e humildemente, que o povo representa todas as coisas que são importantes na verdade: tudo o que sou culturalmente, intelectualmente, as minhas relações humanas, a minha vida, a minha tradição, a minha língua, a minha família, a totalidade da minha inteligência, tudo isso devo em primeiro lugar ao meu povo. Dele provem os meus ancestrais e a ele retornarei, como seu filho. E só somos porque ele é. E só seremos enquanto ele for. É apenas esta compreensão que deve nortear todo o nosso credo e discernimento. E este credo nunca será uma infelicidade para ninguém que tenha alguma dignidade e vergonha na cara, além de que é a única forma, certamente, de toda a nação ser responsável pela sua própria história.

Não somos a intelligentsia, não somos a intelectualidade, não somos Quadros, não somos a melhor parte da sociedade, a nata do povo, sem entender que os destinos da nação são o nosso primeiro dever e preocupação. É essa compreensão que faz de nós a elite e não a nossa formação académica, por mais completa e abrangente, que possuímos. Podemos doutorar-nos e “redoutorar-nos” mas nunca deixaremos de ser formados sin forma se não compreendermos esta verdade imortal.

Nunca devemos esquecer, para o bem do nosso povo, que um Quadro é sempre é mais do que isso. Um médico não é apenas um medico, ele não termina como ser humano onde termina a sua especialidade. A especialidade é apenas algo que a se acrescenta ao seu valor intrínseco, a sua sabedoria, que é maior e mais abrangente. Primeiro é membro de uma elite e só depois é um licenciado ou um especialista.

Ao especialista que entende que só pode servir o seu povo na sua especialidade, responderei que um membro de uma elite, que não é licenciado ou não tem altos estudos as vezes esta mais preparado para realizar o bem comum do que o licenciado; pois terá horizontes mais vastos e não estará fixado na sua especialidade, um quadro não se esgota na sua especialidade, pelo contrário isso é apenas uma ínfima parte das suas capacidades gerais de intervenção. Um inicio apenas de tudo o que pode realizar para o bem da comunidade do povo.

Para um país como o nosso, um Quadro não deveria ser uma unidade fechada que termina em si próprio ou nas suas realizações; um Quadro é a certeza do povo no futuro da nação, no amanhã que se advinha; pois um país que forma Quadros, é um país que sonha com o futuro. Os Quadros, diferentes de outros bens que um estado possui, nunca são permanentes; são altamente perecíveis, pois estagnam se não forem usados ou incorrectamente usados. E só valem e se realizam como tal se tiverem a possibilidade de transmitir o saber acumulado. Um Quadro é a promessa de outros Quadros; um Quadro é dois Quadros. Um Quadro é vinte Quadros que ele forma, num país que deveria ser o nosso. Num país que deveria valoriza-los como o sal da terra.

Mas se o que deveria não o é, então um Quadro é nenhum Quadro; pois um Quadro que não realiza não é Quadro. E como quase nunca são usados, habitualmente estagnam; e na sua estagnação acabam sendo piores que aqueles que não se formaram. Pois vivem num mundo onde nem são peixe nem são carne; onde são apenas aquela parte maldita do povo que foi arrancada das suas raízes e enxertada num novo mundo que se revelou uma quimera. E como aquelas plantas do deserto que apenas vão fenecendo eternamente a espera da chuva que não vem, não morem mas não vivem, não florescem… e aqueles que não puderam esperar pelo tempo da chuva, foram desaparecendo… assim outros morreram por falta de condições mínimas de vida, por falta de hospitais, por faltam de médicos, por falta de assistência, por falta de governantes capazes, por falta de comida, por falta da dignidade a que o ser humano tem direito.

ONDE ESTA A NOSSA GENTE? 

Quando terminei o Curso Complementar dos Liceus fui dar aulas na antiga Escola de Direito de Bissau, aos alunos do Curso Nocturno. Eram na sua maior parte funcionários públicos, bancários, trabalhadores diversos que só podiam estudar a noite; também havia membros das Forças armadas que queriam terminar o Curso Complementar do Liceu para poderem no futuro beneficiar de uma bolsa de estudos para irem continuar os seus estudos no estrangeiro. Tinha alunos da Base aérea, do Quartel de Amura e do Q.G. de santa Luzia. Depois passei mesmo a leccionar no novíssimo Liceu das Forças Armadas (vulgo Liceu das FARP) no Quartel de Santa Luzia. Muitos deles vieram a se formar em engenharia, licenciarem-se em direito e outras especialidades. De alguns ainda sou amigo. Mas nesse tempo já havia o crónico problema da falta de energia eléctrica; e embora adultos (a maioria eram muito mais velhos que eu) esses meus alunos, não deixavam de ser “estudantes” na “alegria de não ter aulas” quando a electricidade faltava.

O grito “luz bai” cortava a noite diversas vezes em plena aula, e era a debandada geral. Todos os alunos e professores saiam das salas, para ficar esperando a volta da energia, que na maior parte das vezes “não voltava”. Uns fumando, outros namorando, alguns apenas pensando na vida nova que a Independência trouxera. Eu e os meus alunos fazíamos o mesmo; quer dizer, eu não ia namorar ou fumar, mas pensava “na vida nova”. Até que um dia, farto dessa irresponsabilidade do Governo, decidi que nunca mais a falta de luz iria me incomodar: nem a mim, nem aos meus alunos. E quando a luz faltava em plena aula, eu proibia a saída de qualquer aluno e continuava a leccionar no escuro até ao fim do tempo regulamentar. E fiquei a ser “famoso” por isso; e os alunos dos outros professores que estavam nas varandas dos pavilhões enchiam as minhas seis janelas, de ambos os lados para me ouvirem. Como falo alto, a minha voz era ouvida no recinto inteiro para o gáudio de toda a escola que faziam questão de demonstrar, aos gritos, em certas passagens da minha oratória que os encantava.  Fazia isso porque sabia que literalmente que não tinha tempo a perder. Sabia que havia toda uma geração que tendo estado na Luta de Libertação, não teve oportunidade de estudar e estavam havidos do “saber”, querendo aprender, querendo recuperar o tempo perdido; e eu não tinha o direito de não ensinar, por falta de electricidade, que irresponsavelmente o Governo que devia ser o primeiro interessado, não fornecia.

Embora os outros professores achavam (e com razão talvez) que a culpa não era deles e portanto não tinham que seguir o meu exemplo. Na verdade as minhas aulas eram teóricas, e não precisava muito de electricidade, ao contrário dos professores de matemática, química ou ciências naturais, mas eu não dava aulas apenas para ter uma bolsa de estudos no futuro, como muitos; no meu caso, entendia que estava a fazer história. Entendia que estava num processo emancipador do povo, na linha do Paulo Freire e outros educadores que na América latina nesse tempo também trabalhavam para o progresso da humanidade. E embalado nesse sonho, desculpando os nossos incompetentes dirigentes aceitei o inaceitável como todos vós. E assim era um dos poucos professores que era “amigo” dos meus alunos, nas suas horas difíceis, nas suas alegrias; no seu trabalho e no seu lazer. Não havia um fim-de-semana que não era convidado para alguma cerimónia tradicional, um baptizado, um casamento, um fanado, Ramadão, toca tchur ou apenas um pick nick na praia do Suru. E hoje - como educador que, bem ou mal, também fui de várias gerações (dei aulas desde os meus quinze anos) -, eu pergunto com todo o direito que ninguém me deu, mas conquistei dia a dia nesse tempo:

Onde estão os nossos juristas de Coimbra e Lisboa? Os nossos antropólogos e sociólogos de Paris? Os nossos agrónomos e pescadores da América? Os nossos pilotos, geodesistas, linguistas, do Brasil? da China? As nossas educadoras infantis e enfermeiras de Armavir? Os nossos médicos da Rússia e Ucrânia, de Krasnadar e Moscovo? Os nossos jornalistas, locutores, carpinteiros, marinheiros, torneiros, arquitectos, engenheiros de todas as áreas? De Cuba, Rússia, Argélia, Jugoslávia e do Mundo Inteiro Onde estão os nossos diplomatas, as nossas hospedeiras, as dançarinas da
“Nossa Pátria Amada”, os músicos de “Cobiana Djass”, os técnicos de “Como Caiar”, os lavradores de “Contuboel” e os pescadores do “Projecto de pesca Artesanal” de Bubaque e de outros mares da nossa terra? Onde estão os nossos diplomatas autodidactas que apreenderam o oficio da diplomacia sozinhos, desde os tempos de Cabral, dia a dia, passo a passo, aprendendo esta subtil arte, não nos corredores da faculdade, mas “na amara”, realizando e conquistando cada dia? Onde estão os nossos valorosos professores que nada ganhando formaram gerações e gerações de seres humanos que de nada serviram? Onde estão os nossos “Nhu Bernals?” e professores “Hipólitos”? Onde esta o nosso cientista nuclear, o nosso biólogo emérito, onde esta a “nossa estrela negra”?

Onde estão os nossos tanquistas, para rodopiarem os tanques de guerra, mais uma vez a frente da Sé Catedral de Bissau, no aniversário da Independência, enquanto por cima das nossas atemorizadas cabeças de crianças, troavam os motores dos jactos da nossa força aérea, pilotados por nossos pilotos militares? Onde estão os nossos garbosos pilotos de MIGs (como aqueles meus antigos alunos da base aérea), Os nossos artilheiros da academia de Frunze, os técnicos de transmissão, mecânicos de aviões, parteiras de crianças… Onde estão aqueles cavalos (dois pretos e dois brancos) de Bafata, montados pelos garbosos ginetes que dão o compasso no desfile? Onde esta o nosso campeão que ganha com cores de outras bandeiras? Onde esta o nosso povo que perde debaixo das cores da sua bandeira?

Cabral permitiu com que fossemos o povo per capita com mais quadros na África Ocidental; esses quadros que formaram-se no mundo inteiro, seriam suficientes para alavancar qualquer projecto de desenvolvimento em qualquer país do mundo, em qualquer momento da história, mesmo que os governantes fossem os mais incompetentes do mundo, conquanto que permitissem o livre desenvolvimento da economia; mesmo que os governantes nada fizessem e apenas deixassem o povo viver e criar. Esses quadros fariam milagres se orientados e direccionados para tarefas concretas, debaixo de uma liderança esclarecida e nacionalista, mas por uma imensa incúria, incompetência e maldade, a semente não deu frutos.

No tempo de Cabral já havia centenas de quadros entre os de formação superior, técnicos, simples auxiliares, estudantes no estrangeiro e no país. Onze anos depois da sua morte, no ano em que fui estudar para a Rússia (1984) - só nesse ano - fomos mais de 200 estudantes, e lá já havia mais de seiscentos a estudar; e depois, a cada ano, foram mais centenas, independentemente daqueles que iam para Portugal, Cuba, Brasil, China, Jugoslávia, França, Estados Unidos, Alemanha, China, Argélia, Marrocos etc., etc., a lista é infindável. Hoje pergunto: onde estão todos esses quadros? Ou mais grave ainda, onde estivemos em todos esses anos de destruição e descalabro?

Outros partiram com esperança de voltar com alguma coisa que na sua pátria nunca teriam e nunca mais puderam voltar a pisar essa terra que os viu nascer. Outros desiludidos com a vida e incapazes de entrar em esquemas corruptos pouco a pouco abandonando-se a letargia, a bebida, ao suicídio não declarado, ao fatalismo, e como a sua pátria foram morrendo, depois de uma vida inacabada e sem nenhum significado. Assim espalharam-se pelo mundo e foram pais e mães de Guineenses que talvez nunca saberão que o são. E se o saberem, será apenas pró-forma, embebidos na cultura americana, russa, portuguesa, brasileira, angolana, senegalesa… e como seus pais nada serão para o seu país.

Nunca mais vou perguntar pelos nossos Quadros, pois eles não responderão; o seu silêncio me diz que é um exercício inútil, da qual nunca terei uma resposta que satisfaça o meu espírito. Então, resta-me o que? Pela minha parte vou pegar naquelas nossas recordações comuns “de um lugar onde o sol brilha forte, e a chuva não cai, mas irrompe … chamada pátria” e construir este texto -, não palavra a palavra, mas, dor a dor, lágrima a lágrima -, até que a junção desses instantes do passado, com os instantes de hoje, da nossa pátria e da nossa mundivisão, me dêem as respostas que tanto procuro.

E se porventura os não obter, estes instantes ficarão como os instantes de um Quadro Guineense, que os possui em comum com milhares de outros. Serão os nossos instantes de uma vida que não vivemos, de uma vida que tão depressa passou, para nos deixar com as mãos vazias e um olhar petrificado, sem saber como viemos aqui parar, neste deserto de almas.

Se as respostas não obter, estes instantes ficarão como uma tentativa de dar a minha modesta contribuição, tentando separar o trigo do joio e desta forma galvanizar os meus iguais para um recomeço limpo. De outra forma daqui há quarenta anos – quando nós também, como Cabral hoje, já não estarmos aqui - serão outros Guineenses, iguais a nós, sentados nesses mesmos lugares, a assentir tristemente com as suas cabeças, os oitenta anos da morte de Cabral. Também como nós, sem nenhum orgulho, na nossa pátria, sem nenhum orgulho de termos seguido o seu exemplo e realizado o seu legado.

E como nós estariam ali concordando e como nós procurando na memória recordações antigas - de escola, do ciclo preparatório, do liceu, da faculdade -, ligadas a Cabral, que tínhamos interiorizado na infância e juventude, enquanto estudantes, enquanto trabalhadores na nossa terra. E como nós teriam as mesmas recordações; as recordações de um lugar onde o sol brilha forte, e a chuva não cai, mas irrompe, como se fosse a última vez. Um lugar onde poderíamos poder caminhar de cara erguida; onde poderíamos realizar; onde poderíamos ter sido felizes. Um lugar distante, chamada pátria, as vezes com carrinho, as vezes com raiva. Mas sempre presente em todas as horas.

AQUELE QUE DETERMINA A HISTÓRIA

Antes de terminar este Primeiro dos Sete Instantes que irá ler, é necessário dizer que este texto foi motivado por dois momentos, separados no tempo por um interlúdio de cinco meses. Um dos momentos foi ao receber ontem (dia 18/01/2011) o amável convite de um Semanário de Bissau (jornal Última Hora) para escrever uma reflexão sobre Amílcar Cabral por ocasião de mais um aniversário da sua morte. Este momento despoletou outro, velho de cinco meses, por ter sido também ele “feito” de um convite similar, tanto pelo propósito como pela personagem. Esse outro amável convite, foi-me dirigido na precoce primavera do ano passado, por uma Associação Guineense em Portugal (A. G. P. D.). Mas neste ultimo caso, não como “escritor”, mas como “orador”, num tributo - pela ocasião do seu nascimento - a esse grande Guineense, a ter lugar na Fundação Mário Soares em Lisboa.

Tal aspiração não foi concretizada, por razões que agora e aqui não interessam, mas não pela minha indisponibilidade. Mesmo assim fui assistir, com certo cepticismo, esse evento que temia vir a ser apenas mais um, entre tantos outros colóquios, conferências ou seminários que habitualmente realizam-se, um pouco por toda a parte, em associações e instituições públicas ou privadas, em diferentes países, em homenagem a Amílcar Cabral no dia da sua morte.

Não errei por muito: como esperava, como tantas outras homenagens “iguais”, no passado e no presente, essa foi também, uma espécie de seminário “não participativo”, rico em representação e pobre na metodologia, substância teórica ou conceitos inovadores. Nenhuma pedra no charco da imobilidade política, cultural e económica Guineense; nada que aponte um caminho, que nos faça sentir o quanto valeu a pena todo o sacrifício consentido por esse homem e seus companheiros.

São eventos que geralmente só servem para um “desfilar” de encómios, elogios e lugares-comuns sobre Cabral, que não acrescentaram quase nada de novo ao que “toda gente” já sabe sobre esse homem e suas realizações. São de homenagens que servem apenas para dizer coisas bonitas, que o afastam cada vez mais do comum dos mortais: e assim, numa aura quase sobrenatural acabam remetendo-o para “um lugar” onde “não incomode”; pois a melhor maneira de fazer esquecer alguém ou neutraliza-lo, é endeusar essa pessoa (mesmo que com boa intenção).

Mas para que eventos como este não sejam os primeiros passos para o seu esquecimento, devemos a revelia deles repensar este nosso compatriota: Separar o ”antes” e “depois”, o homem e a lenda. Discernir o que o “empurrava para frente”. Pois não basta saber “porquê?”, é também necessário saber “como?” e “porque desta maneira e não de outra?” Para no fim constatar, que dentro da nossa simbologia nacional e a nossa mundivisão como ser humano Guineense, existe o Amílcar que viveu entre nós até o dia 20 de Janeiro de 1973, quando morreu; e o Cabral que nasceu nesse dia e que até agora vive entre nós.

Urge ressuscitar aquele que morreu para que em conjunto com este que está vivo, analisa-lo para além da sua dimensão humana, mas ao mesmo tempo tentar (na medida do possível) discernir - “por baixo” do amontoado das homenagens, simpósios, conferencias, palavras, textos e ideias feitas -, a têmpera de que ele era realmente feito. Pois como não existe o acto sem o seu pensar anterior, temos que por fim incidir uma luz única sobre os dois: o Amílcar e o Cabral, o morto e o vivo. Esses dois que hoje trocaram de posição, sendo o morto cada vez mais vivo e o vivo cada vez mais esquecido.

Só lembramos do morto, daquele herói imortal do nosso povo e da África; daquele que é o imortal Fundador da nossa Nacionalidade; daquele que fundou e comandou a Luta de libertação. Aquele que derrotou um império, não apenas militarmente, mas mais importante ainda, moralmente, filosoficamente, historicamente. E derrotando-o, libertou-nos, e a outros povos também pelo caminho.

Não nos lembramos daquele outro, daquele jovem recém-formado que foi iniciar uma guerra contra um Império espalhado por três continentes, de mãos nuas, só com a sua inteligência e o acreditar profundo; que nem tinha uma viatura para se deslocar, e tinha que calcorrear todos os dias, a pé, o poeirento caminho desde o subúrbio onde morava, para ir até ao centro da cidade de Conacri fazer o seu trabalho em prol do nosso povo. Aquele que não tinha onde cair morto, tão frágil como qualquer um de nós, nascido num fim do mundo que era a Guiné dos anos vinte, e a sua vila natal de Bafata, e mesmo assim ousou enfrentar com as mãos nuas toda uma concepção do mundo.

Esquecemos deste que um dia, emocionado - com uma criança nos braços? - disse a frase mais bela de toda a Luta de Libertação Nacional: As crianças são as flores da nossa Luta e a razão principal do nosso combate.

Quando lembramos do vivo, não lembramos deste que sonhando com o futuro da nossa terra, asseverava que depois da independência iríamos “fazer uma geografia humana nova”. Sim, enquanto esperamos por essa geografia nova precisámos saber realmente quais eram os seus sonhos, motivações e ambições; ir para alem do óbvio e penetrar na essência das coisas e saber por fim, quem é este Amílcar Cabral, que anos e anos a fio não deixa o nosso espírito comum repousar. Pois sou obrigado a constatar que por algum determinismo histórico, ainda não totalmente explicado, depois do que aconteceu nesse dia, que hoje recordamos solenemente nesta sala, tudo o que houve connosco como povo e com o nosso infeliz país - neste últimos quarenta anos -, não foi mais do que consequências desse fatídico dia. Consequências e nada mais do que “consequências”. E quando não são simplesmente “consequências”, são consequências de “consequências”.

E para sermos como as gerações do antigamente, recusando viver de consequências mas de realizações, temos que começar por arrancar essa decisão de dentro de nós próprios e vencer a nossa letargia nacional e exigirmos o que é nosso por direito, mesmo que seja apenas o direito “de fazer”, o direito de “participar”, o direito de também “ser”. Só assim faremos realmente parte na nossa História. Só assim seremos um povo com “História” e não com “Consequências”. Pois matanças, golpe de estado, guerra civil, execuções, golpes e contragolpes, destruição e mais destruição não são e nunca serão a nossa História; são apenas “consequências de consequências”, estertores de um passado criminoso e odioso que se arrasta no tempo; num tempo longo demais, sem nenhuma previsão de um futuro melhor, sem nenhuma esperança real num mundo melhor, pelo menos por enquanto.

E nunca se esqueçam que quem determina a história não é aquele que faz da politica um meio de subsistência, mas aquele que faz da politica o ultimo baluarte dos patriotas, o ultimo reduto dos nacionalistas. Aquele para quem a politica é apenas um meio para a realização do povo.

AINDA NÃO ACABAMOS COM CABRAL

Nestes pressupostos, sobre Amílcar Lopes Cabral, é necessário e premente dizer o que ainda não foi dito ou dito de maneira errónea. Os livros como “QUEM MANDOU MATAR AMÍLCAR CABRAL” de J. Pedro Castanheira, “OS TRÊS TIROS DA PIDE” de Oleg Ignatiev, ou o “O FAZEDOR DE UTOPIAS” de António Tomás (todos escritos por estrangeiros, o que permite certo distanciamento e independência necessária à uma análise descomprometida) e por fim, UMA LUTA UM PARTIDO, DOIS PAÍSES de Aristides Pereira (escrito pelo sucessor dele, com todos os inconvenientes que tal facto acarreta, para uma análise objectiva e acima de tudo credível), importantes que são, não deixam de ser começos, para outros ambiciosos voos, que espero que os nossos jovens historiadores Guineenses também venham realizar. Pois a nossa história deve ser feita por nós, sim, mas também escrita por nós.

Além destes que citei, existem dezenas de textos sobre Amílcar Cabral escritos por naturais de vários países; e creio que existem muito mais do que aqueles que conheço, por isso não posso citar todos, mas cito uma frase do embaixador Oscar Oramas - que numa carta a Aristides Pereira -, falando de Amílcar Cabral escreveu: “Creio que, como dirigente político, viu muito longe, tão longe porque tratou de construir as estruturas do futuro Estado (…). Penso que, neste aspecto, os historiadores, os amantes das ciências sociais deverão aprofundar bastante todas as análises.

Frase com que estou plenamente de acordo, tanto na caracterização de Cabral como político, como no enunciado do dever dos historiadores e “amantes das ciências sociais”, mas tenho que interrogar-me sobre até que ponto ele “tratou de construir as estruturas do futuro Estado”? Pois se devemos “aprofundar bastante todas as análises”, primeiro temos que faze-las (e não apenas enuncia-las) e só depois aprofunda-las. Este é apenas um exemplo de quanto falta ainda para conhecer Cabral e o seu pensamento.

A análise de um ser humano, poderoso e multifacetado como Amílcar Cabral, tem que ser feito das análises dos seus escritos, das suas realizações, dos seres que o rodearam e acompanharam durante a vida, das circunstâncias que o determinaram e condicionaram, e por fim da análise de como ele por sua vez influenciou, determinou e condicionou a realidade, as circunstancias e os homens. E todas essas análises devem ser efectuadas á luz do “seu tempo”, à partir da sua época, para assim poder “projecta-lo” para o nosso tempo, que tanto precisa de outros Cabrais vivos.

E deste modo, tentar centrar um debate, por ora inquinado, sobre ele e sua obra. E dessa forma (não há outra) acabar de vez com o aproveitamento indigno e permanente, do seu legado por gente sem escrúpulos. Tanto por parte destes que se perfilam como seus herdeiros - sem dignificar em nada essa herança - como daqueles que se “dizem” seus opositores - para beneficiar da aura que rodeia o seu nome - e assim se afirmarem num determinado espaço (podre e sujo), feito de gente da sua igualha.

Por isso é premente começar; e seguindo o “conselho”, do embaixador Oramas – aos ”historiadores” e “amantes das ciências sociais”, categorias a que infelizmente não pertenço -, pretendo aprofundar bastante todas as análises. Separar a personagem histórica do simples homem Guineense, igual a cada um de nós. O homem simples, frágil, propenso aos compromissos, que as vezes dilaceravam o seu ser e o levaram a cometer erros fatais, que não pôde acautelar: o último dos quais lhe custou a vida.

Por isso não direi que com Cabral ainda “não acabamos”, mas direi que com Cabral ainda “não começamos”. Pois o trabalho sobre o seu trabalho, o pensar sobre o seu pensamento, ainda estão por se realizar. A sua história, e a história da sua história ainda estão para se escrever. Sim, inegavelmente, com Cabral ainda não acabamos pois ainda nem começamos.

E assim, mesmo não tendo sido orador na homenagem a Cabral, na Fundação Mário Soares, esse encontro deu frutos; pois cada ser humano apropria-se da cultura com as armas que tem, com as capacidades inatas e as apreendidas durante a vida. O que não é perfeito pode ser aperfeiçoado; por isso, que no meio dos considerandos, lugares-comuns e trivialidades do costume, consegui reter sete instantes, que analisados, desenvolvidos, recriados me “ajudaram a enquadrar” a minha perspectiva singular do fenómeno Amílcar Lopes Cabral.



SEGUNDO INSTANTE
O TRIUNFO DA VONTADE
OU O MAIOR DOS GUINEENSES 

               
        Aparentemente, toda ideia comum recebe uma chance de se encarnar em um homem e atingir por seu intermédio o que se costumava chamar de grandeza histórica.

                        Hannah Arendt


Neste instante Mário Soares (que não fala por falar) fala da importância extrema que este Guineense teve para o processo democrático português e para a História dos outros antigos territórios portugueses. Conhecendo e reconhecendo esse contributo, empenhou-se pessoalmente na tentativa de salvar o “espólio de Amílcar Cabral” vindo da Luta, durante a guerra Civil de 1998; viria a ter um papel importante na “salvação” desse acervo; que agora se encontra nessa mesma FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, onde estávamos agora reunidos nesse triste dia para homenagear este nosso compatriota

Tudo o que este senhor dizia tinha significado e importância extrema - independentemente dos conhecimentos que possuía do nosso processo revolucionário -, porque ele mesmo foi um combatente, um lutador pela liberdade, que foi exilado em São Tomé, que foi preso político em Portugal e em África, que foi presidente de dezenas de organizações internacionais, que foi (ou é amigo) ou conheceu, durante a sua longa vida, todo a gente que vale (e valeu) alguma coisa neste mundo; desde Reis a Presidentes, de cientistas de renome, Prémios Nobeis; de milionários e deserdados da vida; que conheceu o mundo inteiro, que viveu uma vida plena e rica, que teve bastas honrarias e foi tudo o que um homem pode ser nesta vida… e muito mais… mas mesmo assim, diz com pena, que gostaria de ter conhecido esse nosso compatriota, conhecer tamanho vulto, tamanha personalidade… e lastima não ter tido a ventura de encontrar Cabral, uma vez que seja, nesta vida. Diz por fim, numa voz sincera, que lamenta profundamente terem-no assassinado.

UMA COLÓNIA PARA ODIAR, NENHUMA PÁTRIA PARA AMAR

Mas se oiço com atenção, este ilustre senhor, elucidando, contando… falando no importante papel de Amílcar na história dos nossos povos Guineense e Português; dizendo no fundo que Cabral era grande; enorme, com uma sombra que ainda paira sobre todos nós, africanos e europeus… e volvidos tantos anos depois da sua morte a sua grandeza não diminuiu, antes pelo contrario…

- Mas isto quer dizer o quê? Esta “grandeza” serve algum propósito, a não ser um orgulho jactancioso e inconsequente da nossa parte? Aonde nós, os Guineenses, situamo-nos em relação e defronte esta “grandeza”? Ou ficamos apenas pela sua contemplativa contemplação?

Esta pergunta, em forma de um pensamento, surgiu dentro do mim, desgarrada, sem ser criada, e foi atravessando o meu ser, pouco a pouco - juntando fragmentos de um filme vivo e vivido, feito de recordações de infância, de livros lidos e de livros ouvidos – até se transformar numa palpável percepção, de que com o tempo, o mito substituirá o homem real: esse que nasceu entre nos, viveu entre nós e caminhou connosco um dia. Esse que com o passar do tempo será a penas mito. Por isso urge repensar este homem, que agigantou-se tanto que quase não é mais palpável.

E como não sou homem para ficar “apenas pela sua contemplativa constatação”, começo por perguntar: o que motivava esse homem para além do amor ao Povo? Pois tenho que acreditar que havia “amor ao povo” - como base para qualquer acção dessa envergadura -, mesmo que apenas para poder raciocinar de forma clara. Porque devotar todos os pensamentos, actos e a própria vida a causa de um povo, sem ama-lo profundamente, para além de todo o entendimento, não tem lógica nenhuma.

Primeiro, porque ainda não havia uma Pátria “para amar”, apenas uma Colónia “para odiar”, habitada por um povo “por dignificar”. Os condicionantes então eram outros; pois se nós hoje temos uma pátria que amamos (que foi ele que nos legou), nem isso ele tinha quando começou; nem montanhas tinha para amar… apenas povo.

E isto me leva a uma segunda constatação: um carácter assim, só pode ser forjado quando o que esta em causa é o povo; quando este esta manietado e precisa ser libertado; quando este esta em perigo e precisa ser preservado. Porque não existe nada neste mundo, a não ser a pátria e o povo, que pode despoletar tamanha decisão no coração de um homem. Isso foi e será sempre assim, desde o tempo dos Gregos e Romanos, aos nossos dias. Por isso em todas as épocas, os homens morreram pela pátria e o povo sem nenhuma hesitação.

E como Amílcar e seus companheiros tombados, também não tiveram nenhuma hesitação - que Deus os tenha na sua glória (e nós nos nossos corações) – chegamos ao conceito de “grandeza” ou ao discernimento da “grandeza”.

ENTRE O ÓDIO E GRANDEZA

As minhas modestas análises me levam a constatar que por variadíssimas razões, Amílcar Cabral foi a figura mais extraordinária que viu a luz do sol na nossa pátria, desde a século XV aos nossos dias. Foi o maior dos Guineenses e só por isso suscita, ao falarmos dele, a questão da grandeza histórica.
Mas a grandeza é uma coisa difícil de carregar, mesmo depois da morte; pois quando a temos de verdade, ninguém preciso dize-lo, pois estamos sempre presentes. Diz-se que há mais de 30 anos que não há nenhum segundo no planeta Terra que a música do Bob Marley não esteja sendo tocada em algum lugar (ou em centenas de lugares ao mesmo tempo). Penso que não há um dia que Cabral não seja lembrado por alguém em todos os cinco continentes deste planeta, há quase 40 anos; isto é uma forma de grandeza.

No tempo colonial (no tempo da Luta) os portugueses diziam na rádio nacional (e no mundo inteiro) que o PAIGC era uma organização terrorista e que Amílcar Cabral era o terrorista nº 1. Naquela altura muitos pacíficos Guineenses - que não conheciam os fundamentos sagrados da Luta - em Bissau e noutros centros urbanos, sentiam profunda e sincera aversão por Cabral; pois parecia-lhes que todo o trabalho honesto de pessoas normais - como agricultores, ponteros, professores, funcionários públicos, comerciantes etc. - que ganhavam duramente as suas vidas, estava a ser destruído por este e seus companheiros. Patriota ou terrorista, para eles, Cabral era o destabilizador do seu modo de vida.

E como não gostavam nada que as suas vidas e o futuro dos seus filhos fossem destruídos por quem quer que seja, odiavam o causador principal dessa desgraça. Quando os primeiras baixas entre os soldados portugueses e Guineenses começaram a ter lugar, uma parte dessa gente revoltou-se intimamente contra Amílcar Cabral e a sua “teimosia” em fazer a guerra quando toda a gente só queria a paz, para viver, trabalhar e educar os seus filhos.

A mãe de Amílcar Cabral, Iva Pinhel Évora, que era conhecida (amiga?) da minha avó materna Henriqueta Lopes Vaz Pereira (deus as tenha), uma vez disse a esta, o seguinte: será verdade tudo que dizem na rádio sobre o meu filho? Que ele é terrorista e responsável por tantas mortes? Não posso crer que Amílcar, que eu criei, com tanto carrinho e canseira, seja capaz de fazer alguma maldade as pessoas.

Quando os bombardeamentos indiscriminados (ou inábeis) começaram a ceifar a vida de civis inocentes a “revolta íntima” passou à aversão e ao ódio; pois era difícil de entender, nessa altura, esses “massacres” - esta gente, embora involuntariamente, deram com o sacrifício das suas vidas, o seu contributo a nossa liberdade, embora delas ninguém fale e nenhum manual de história lembre deles. Recuso-me a considera-los apenas “vitimas colaterais” – de civis inocentes em nome de um radioso amanhã.

Eu mesmo, criança curiosa, com nove anos, uma vez “fugi” de casa (em Farim) para ir a ao bairro, perto do aeroporto (Nema?), ver corpos decepados de pessoas (depositados lado a lado na varanda de uma cubata) que tinham sido mortos pelos indiscriminados bombardeamentos do PAIGC, na noite anterior; e assistir com ódio e com lágrima nos olhos o choro angustiado e impotente dos familiares desses inocentes e pacíficos filhos do povo, que tinham sido mortos durante o sono pelos bombardeamentos indistintos da guerrilha. Menino ainda, mas mesmo assim, “não entendia” como se podia matar inocentes, mesmo em nome de um ideal mais elevado. E na minha mente de criança Cabral já era o culpado?

E aprendi a viver com o terror desses bombardeamentos noite após noite, quando eu e meu irmão mais velho, a estudar éramos violentamente interrompidos pelo ribombar de mísseis e tínhamos que fugir para um abrigo improvisado na nossa despensa, onde a minha mãe (com as minhas irmãs menores) rezava a todos os anjos do céu, pedindo que poupassem os seus filhos para que não morressem, inocentes nessa guerra que ela não conseguia entender; ainda me lembro das caritas cheios de sono e de espanto das minhas irmãzinhas na altura com sete, quatro e dois anos; as vezes só pela manhã nos davam tréguas para dormirmos uns instantes antes de rapidamente preparar-nos para ir a escola. Como então não crescer a odiar Cabral?

Amílcar Cabral - clarividente como era -, no seu tempo, entendia tudo isto, pois desde o inicio da Luta que foi assim: Foi tenazmente combatido pelos portugueses, cabo-verdianos, guineenses, senegaleses e naturais de Conacri. Sabia que era odiado em muitos círculos que ainda não percebiam os fundamentos da sua Luta. Mas “sabia” também que depois da Independência, quando o nosso povo fosse finalmente livre, quando a “construção da felicidade” começasse, quando fossemos o tal país que ele sonhou -“onde haverá uma vida de felicidade, uma vida onde cada homem respeitará todos os homens, onde a disciplina não será imposta, onde não faltará o trabalho a ninguém, onde os salários serão justos, onde cada um terá o direito a tudo o que o homem construiu, criou, para a felicidade dos homens…” – então tudo seria explicado; e tudo seria entendido; e tudo seria perdoado por fim. Os mortos descansariam em paz; e por fim os vivos entenderiam que a grandeza não poderia existir sem derramamento de sangue. E que esse sangue derramado tanto do lado do povo, como do lado dos combatentes, não foi em vão.

ARMADILHA HISTÓRICA

Infelizmente para Cabral, nada disso aconteceu. Depois da Independência, o nosso povo só conheceu desilusões e mais desilusões; governada por gente extremamente mal preparada, do sonho dele, nada, absolutamente nada, foi posto em prática. Pelo contrário, a vida de todos piorou. Das elites, dos camponeses, e dos poucos operários e trabalhadores assalariados. E ainda por cima, como o mentor da Independência, a maior parte da condenação (moral, e não só) - por parte de muitíssimas pessoas - caiu injustamente sobre dele e a sua memória.

Chegou-se a criar uma falsa ilusão, de que até as culpas da má governação do PAIGC eram de Cabral também; ou podiam ser-lhe assacados pelo menos. Além de outros mitos não menos nefastos que nenhuma relação verídica, têm a ver com a realidade dos acontecimentos. Havia uma percepção, disseminada nos primeiros anos da Independência, de que “essas gentes que vieram do mato” não sabia nada, mas como eram de certa forma “heróis” que tinham sacrificado a sua juventude para a libertação do povo, tinham um “desconto”. Mas em relação a Cabral, em particular, esta “compreensão” nunca existiu; pois se os primeiros eram inocentes - ignorantes, mas inocentes (ou como o nosso povo diz nocentasco i pa purda) -, de Cabral não se podia dizer o mesmo: esse não era (e nem nunca foi) inocente; esse não tinha desculpa; esse sabia o que fazia quando começou a Luta; e se não preparou esta gente, que “pós a mandar em nós”, que agora (infelizmente) têm o nosso destino torpemente nas suas mãos, então era ele culpado de tudo. Cabral, esse, não teve desconto.

Assim apanhado nesta armadilha histórica, neste fogo cruzado - entre as normais expectativas do “povo libertado” e a incapacidade gritante de as concretizar, pelos “libertadores” -, Cabral não tinha onde se esconder. Era preso por ter cão e por não ter. Por ter libertado, mas não previsto o futuro e não ter deixado “instruções claras” de “como fazer”; por não ter deixado um manual de instruções, para “essa gente” - que ele criou, educou, ensinou e deu ideologia - governar, como deve ser.

Cabral teve - juntamente com o nosso povo - o azar, e a desgraça, de os seus próprios companheiros desbaratarem toda a sua grande obra e o seu legado numa orgia de desgovernação, que veio desembocar numa luta fratricida entre eles - sem nenhum respeito pelo povo - pelos despojos que sobraram de uma nação totalmente destruída.

Destarte desde o dia da Independência Nacional, nunca ninguém deixou de fazer tudo que ele condenava, e ao mesmo tempo que dizia que “como ele não havia ninguém”. Esta é a praga de Cabral da qual ninguém o pôde ainda libertar; “serve para tudo” e não “serve para nada”. Ele é ainda omnipresente em tudo que se faz na nossa terra, na bajulação, na imitação, na roubalheira, nas matanças, nos ajustes de contas, golpes de estado e rebeliões armadas. Sempre que acham necessário, uns louvam-no até a exaustão; outros fazem o contrário denegrindo o máximo que podem. Alguns dizem algo e o seu contrario, e quando não têm argumentos, inventam. Até os mais bandidos entre nós, falam dele como se fossem seus discípulos, em todos os seus actos. Mas esse fenómeno decorre de que, mesmo os bandidos admiram-no (e até são, de certa forma, sinceros quando dizem banalidades sobre ele ter sido “um grande homem”).

A sua memória serve para aplacar tudo e justificar tudo; uma memória usada de modo inconsequente, separada de factos reais; separada do dever para com a pátria (coisa que não interessa a ninguém); uma memória, que cada dia mais desaparece na bruma do esquecimento e desinteresse.

O interessante nisto tudo é que Cabral (talvez conhecendo a tempera dos seus camaradas de Luta e a idiossincrasia de alguns Guineenses) já advinha esta situação no futuro, e dizia que “Se nós, amanhã, trairmos os interesses dos nossos povos, não será porque não o soubéssemos, será porque quisemos trair e não teremos então qualquer desculpa”. Mas eles “tiveram” desculpas; eles “arranjaram” centenas de desculpas depois, para os seus actos; só Cabral não teve desculpa. Eles não entenderam que a Luta de libertação era apenas uma ponte para passarmos de Colónia a País independente; mas a própria Independência Politica não era, também, mais do que uma ponte, que por sua vez nos levaria a cidade de Deus: a Nação.

E a luta de Libertação não podia servir de modelo para governação e nem para a edificação da Nação. Mas como infelizmente só conheciam a realidade da Luta e pouco mais, usaram os métodos da Luta na resolução dos problemas da governação: a repressão; ajuste de contas; fuzilamentos; centralização do poder; improvisação constante. Tudo isto tendo como base e suporte ideológico - não a realização do programa de Cabral e valorização dos princípios sagrados da Luta de libertação -, a sobrevalorização do Partido (e de seus militantes) para além de toda a realidade; endeusamento de Cabral e companheiros caídos, numa liturgia de valores inconfirmáveis.

Todos os golpes e contragolpes, assassinatos e ajustes de conta, foram feitos para repor a verdadeiralinha de Cabral”. Todo o sofrimento imenso a que foi submetido este povo - foi-nos dito – era em nome do ideal de Cabral. Tudo era feito portanto na senda da realização do sonho de Cabral. Então como não odiar Amílcar Cabral?

Se elementos do seu próprio Partido, me dizem vil e mentirosamente que Cabral não queria o nosso bem (de Guineenses) mas o nosso mal, como - sendo patriota - não me revoltarei contra ele e tudo que ele representa? Então como não odiar Amílcar Cabral? Todo o mal que nos sobreveio depois da Independência, tudo de mal que foi feito nesta terra - disseram-nos enganadoramente – foi, seguindo a “linha de Cabral”.

Se, se criam artificialmente ódio entre elementos do mesmo povo, motivados pela pertença tribal e pela cor da pele e me dizem que isso era em consonância com a doutrina de Cabral, como posso não execrar este homem e tudo que ele representa? Pois se colonialismo era mau, a ditadura do PAIGC era pior. Pois o colonialismo significa estrangeiros a subjugarem o nosso povo. A ditadura deles significava os próprios filhos do povo a subjugarem o povo.

Se me prendem ou prendem meus pais, se me matam ou matam meus filhos, se destroem o trabalho de gerações de uma penada e me dizem que essa seria a “vontade” de Cabral, a ideologia de Cabral, o que me impedira de abominar este homem com toda a força do meu coração? Se há mais de doze anos, temos um “problema militar” (e também “um problema politico” diga-se em abono da verdade) e me dizem que o culpado é Cabral, porque foi ele que “deu armas” as pessoas erradas e sem preparação, como não vou odiar este homem de uma vez por todas?

Se depois da Luta de Libertação Nacional, em tão pouco tempo de libertação, foram cometidos mais crimes (não só crimes de sangue contra o ser humano, mas também económicos e sociais) do que durante todo o período colonial; se o Massacre de Pindjiguiti não é nada, quando comparado com outros massacres (tanto em numero como em variedade) que os nossos (leia-se PAIGC) fizeram depois de nos libertarem, então é legitimo perguntar: Lutou-se para que? Morreu-se porquê? Sacrificou-se em nome de quê? Será que os companheiros de Cabral, depois de conquistada a Independência, não tiveram a capacidade de compreender esta simples questão?

O maior inimigo ideológico das ideias de Cabral - contemporâneo do seu pai, Juvenal Cabral, que era admirador deste -, o fundador e mentor ideológico do Estado Novo, António Oliveira Salazar, disse uma vez que “só devemos chorar os mortos se os vivos os não merecerem”. Referia-se aos mortos portugueses da guerra do Ultramar, que nós chamamos de Libertação Nacional. Mortos de uma guerra que Cabral desencadeou, e que com o seu génio, forjando a unidade ideológica e de acção com outros Movimentos de Libertação, potenciou de tal forma que, com o avolumar dos mortos e feridos, a elite portuguesa pedia a Salazar que a pusesse fim, mesmo a custa de perder as colónias. E nessa contradição histórica - entre o povo e o governo -, Salazar (entre a espada e parede) assim respondeu. Mas o seu significado assenta-nos como uma luva. Pois a nossa tragédia é maior: nos devemos chorar e chorar muito os nossos mortos, pois não os merecemos. Nunca merecemos o sacrifício consentido. Esta é a nossa tragédia. A tragédia de Cabral, este pobre Guineense, que quis alcançar o Céu.

E assim, infelizmente, no julgamento da História ele aparecerá também - nu e descalço, como réu - ao lado deles, em vez de ser apenas mais uma testemunha de acusação. Espero que a História o absolva por fim, pelo bem que fez e por tudo o que quis fazer e não deixaram.

DESPREZADOR DA REALIDADE

E muito quis fazer; e muito mais poderia fazer, mas não deixaram. Não se esqueçam que não era só uma questão de libertar o Guineense e o Cabo-verdiano (coisa mínima!); pois se o problema fosse somente libertar o povo da Guiné e Cabo-verde, esse já tinha sido realizado, de certa forma, mesmo antes da sua morte. Isso ficou demonstrado com a sua morte: com ele vivo ou morto íamos ser independentes politicamente, de uma maneira ou de outra, pois o trabalho “de base” já tinha sido feito.

Mas o problema era maior, embora associado. Na altura em que ele começou, entendia que unilateralmente não libertaria as duas colónias que tomou “a seu cargo”. Quer dizer, nem no estrito âmbito teórico, isso era exequível; pois isso era tarefa impossível para qualquer “ser humano”. Era claríssimo que com aquele Estado Novo Português de Salazar, simpatizante do nazismo, isso forçosamente só seria conseguido com a libertação do Angolano e do Moçambicano e por extensão libertando o próprio Povo Português pelo caminho, ou vice-versa.

E Cabral foi o primeiro a entender isso de uma forma pragmática; tinha noção exacta disso, mas pensam que isso o assustou? Não, apenas o incentivou mais, por isso, participou activamente na fundação do M.P.L.A., pois assim a Luta seria mais complicada para o colonialista. Como já disse ele se apercebeu da enormidade da sua tarefa, embora compreendia a sua extrema fragilidade como ser humano. Não só no domínio físico, mas mesmo no complexo domínio ideológico e filosófico. Tinha que construir de raiz, toda uma nova compreensão do mundo, todo um sistema ideológico para contrapor os ideólogos do Estado Novo e as suas “verdades seculares” que só viriam a cair no Continente inteiro quando Mandela assumiu a presidência da África do Sul, trinta e tal anos depois de ele começar.

Estas “verdades” dogmáticas definiam as colónias portuguesas em África como a última trincheira de luta contra o comunismo internacional. E para legitimar a pertença destes territórios, vieram a chama-los de províncias em igualdade jurídica com as do Portugal continental. E este entendimento ideológico da “barreira”, de “última fronteira” que o Ocidente Cristão necessitava proteger custe que custasse (“até ao ultimo soldado”) contra as hordas do comunismo herege que já se tinham apoderado de partes significativas de África e do mundo, tinha apoios não negligenciáveis no mundo inteiro. Desde a África do Sul racista, passando por Alemanha Federal, Japão, Estados Unidos e outros tantos países ocidentais e asiáticos.

Cabral entendia isto de uma maneira clara, portanto sabia portanto que a sua tarefa era algo de titânico; mas mesmo assim (ou obrigado pelas circunstancias esmagadoras), contra todo o bom senso, julgou que podia fazer ainda mais do que isso. Por isso ousou pensar o impensável: não se tratava não mais, de apenas libertar Angola, Moçambique, Guiné, Cabo-verde e S. Tomé. Elevou a fasquia ainda mais, afirmando: “Mas nós podemos lutar em todas as colónias portuguesas e até ganhar a nossa Independência, mas se o racismo continuar na África do Sul, não podemos acreditar numa independência a sério em África.”. Portanto tinha que se libertar também a Africa do Sul. Sonhava acordado? Não, apenas teve a capacidade e força de vontade de pensar o impensável; imaginar o inimaginável, e realiza-lo.

Pensava em termos continentais e mundiais. Isto é tão verdade que Marcelo Caetano, antigo Primeiro-ministro Português, conta que, ao ser confrontado com a aceitação por Cabral de um encontro com o Spínola para discutir a “questão Guineense” não ficou nada satisfeito. O problema era que o General Spínola, temendo perder a guerra na Guiné, queria resolver o conflito Guineense diplomaticamente; Daí os seus encontros com o presidente Senegalês Leopold Senghor, em Cap Skirring; mas Spínola era um militar de carreira sem visão da geopolítica mundial, e não tinha capacidade para discutir com Cabral que nesse aspecto era um espírito superior. Ele analisava a Guine isoladamente das outras colónias (Senghor também), coisa que Cabral com a sua visão, já tinha demonstrado ser impossível. Marcelo Caetano, jurista emérito, professor de Direito, e homem de uma educação mais requintada entendia isto tudo, e sabia ainda que se Spínola fosse discutir com Cabral este o “comeria vivo” pois as capacidades do líder guerrilheiro eram por demais conhecidas em todos os quadrantes (e pela policia politica portuguesa ainda mais) do mundo. Por isso proibiu terminantemente ao Spínola de se encontrar com este. Sobre isto, nas suas memórias escritas no seu exílio Brasileiro diz o seguinte: observei ao General que por muito grande que fosse o seu prestígio na Guiné – e eu sabia que era enorme – ao sentar-se à mesa de negociações com Amílcar Cabral ele não teria a frente um banal chefe guerrilheiro, e sim o homem que representava todo o movimento antiportuguês, apoiado pelas Nações Unidas, pela Organização da Unidade Africana, pela imprensa do mundo inteiro. (...)

Estas palavras de Marcelo Caetano servem para esclarecer o enorme prestigio que Cabral gozava em diferentes círculos. Mas não cito este antigo estadista especialmente para demonstrar isso. Pretendo demonstrar que Marcelo Caetano também já alcançava nessa altura o que Cabral tinha compreendido antes. Pois a aceitação da sua parte em encontrar-se com o Spínola, depois dos encontros deste com o Senghor, devia ter sido baseado em cálculos claros: isso era uma maneira inteligente de fazer Portugal reconhecer o PAIGC (sem querer) como uma força legítima; como um representante do Povo Guineense e não um “bando de terroristas” como afirmavam nos fóruns internacionais. Por isso o Caetano recusou a Spínola essa possibilidade de negociação directa com Cabral, dizendo em continuação: “assim (com o encontro) ia-se reconhecer o partido que ele chefiava como sendo uma força beligerante e reconhecia-se mais, que essa força possuía importante domínio territorial, uma vez que aceitávamos negociar com ela um armistício (cessar fogo) como preliminar de um acordo.”

Ainda havia considerações de ordem táctica, politicas e puramente militares que este estadista conseguia discernir, mas que o General Spínola parecia não ter capacidade intelectual para ver. Pois Cabral, nessa altura, um “chefe de guerra” consumado, mas ao mesmo tempo um pensador refinado, aliava essas duas facetas a consecução de um objectivo premeditado. E não sendo apenas um militar como o Spínola, percebia muito bem certas nuances e interiorizava a máxima de Clausewitz de que a “guerra é a continuação da política por outros meios”.

Mas infelizmente não conseguiu jogar essa inteligente cartada, porque atrás do Spínola encontrava-se um homem, ainda hoje subestimado, mas que era superior a este, tanto no intelecto como na cultura política, que via mais longe e em virtude de disso recusou um cessar-fogo com argumentos seguintes: “ (…) “durante o armistício, nós, o exército regular, ficaríamos com as mãos presas, enquanto o movimento insurreccional conservaria a sua liberdade de manobra subversiva encorajado pelo êxito.”

Já disse que quanto a Cabral entendia clarividentemente que a libertação “total” do nosso povo nunca seria unilateral, e isso é característico no seu pronunciamento programático: “(…) Mas se nós na Guine em Cabo Verde, lutarmos muito, e os povos de Angola e Moçambique não lutarem nada, se porventura os tugas puderem tirar as tropas de Angola e Moçambique e manda-los para a nossa terra, não sei quando conquistaremos a nossa independência (…) estamos a ver, portanto, que a realidade da nossa Luta faz parte da realidade da Luta das colónias portuguesas, que nós queiramos ou não (…) tivemos grande influência na criação da FRELIMO porque era preciso lutar em Moçambique e depressa.

Agora chegamos a parte mais importante desta visão realista do então Primeiro-ministro português. Para ele a equação era clara, pois para quem como Marcelo Caetano que sentia-se ameaçado pelos ventos que começavam a soprar de todos os quadrantes contra Portugal, por influência directa de Cabral (o seu encontro com o Papa, a seu relacionamento (amizade?) com Olof Palme, só para dar dois exemplos) mesmo no seio de tradicionais aliados de Portugal, o combate não podia passar por conversações com ele. Por isso na continuação do seu pensamento sobre a proposta do general Spínola que acima transcrevi, diz: “Finalmente, ao cessar-fogo seguia-se logicamente a negociação do acordo definitivo abrindo um precedente quanto ao resto do Ultramar português a cuja força não se poderia fugir. Ora, se Portugal tivesse apenas para resolver o problema da Guiné, o método talvez fosses utilizável. E mesmo assim não sabia se seria, uma vez que os dirigentes do PAIGC eram cabo-verdianos e, incluindo a independência do seu arquipélago nos objectivos do movimento, não poderiam deixar de reivindica-la nas negociações facultadas quanto à Guiné. Ora em Cabo-verde havia absoluta paz e a sua entrega a Amílcar Cabral, com as graves dificuldades provenientes da secura do clima e da pobreza da população, só poderia significar a passagem para o domínio do mundo socialista de uma posição chave no Oceano Atlântico. Essa seria sempre um obstáculo intransponível nas negociações com o PAIGC. Admitamos, porem, que as negociações eram método praticável quanto a Guiné. Não se podia esquecer que tínhamos a Angola, e tínhamos Moçambique, com centenas de milhares de brancos e milhões de pretos afectos que não podíamos sacrificar levianamente. A dificuldade do problema da Guiné estava nisto: em fazer parte de um problema global mais amplo, que tinha de ser considerado e conduzido como um todo, mantendo a coerência dos princípios jurídicos e da politica que se adoptasse.”

Tudo o que disse acima, quando analisado de modo leviano e sem profundidade, apenas espanta a nossa inteligência e repele a nossa percepção sobre Cabral. Todos gostamos de super homens, mas nunca queremos ser confrontados com eles, nem mesmo apenas intelectualmente; nem mesmo na quietude das nossas salas de estar. E Cabral, não sendo um super-homem, mas apenas um pobre Guineense cu ca cunsi si lugar, causa-me mais admiração que o próprio Clark Kent. A isto devo acrescentar algo, que a primeira vista parece um lugar-comum, mas que serve para definir a genialidade de Cabral, de uma forma que creio nem ele se apercebeu em vida, pois como é sabido, não é dado ao ser humano conhecer-se a si mesmo na totalidade. 

Mas para entenderem do que falo têm que primeiro ler o que digo agora: Durante toda a vida, nós os homens, fazemos - mesmo que de modo inconsciente - um esforço titânico, na tentativa de conciliar os nossos sonhos pessoais com a crua realidade que nos cerca e põe permanentemente obstáculos no nosso caminho. e pouco a pouco, pressionados pelas contingências da existência, pelas dificuldades do dia-a-dia, com o passar do tempo, vamos abandonando certos sonhos, que antevemos já impossíveis de realizar nesta curta vida. A assim, dolorosamente, compenetramos que já não daremos volta ao mundo e nem seremos campeões de maratona. Conforme o tempo vai passando, sabemos que já não seremos pilotos de jactos, como também entendemos que já não casaremos com aquele amor da nossa vida; que já não construiremos aquela casa de sonho e que nunca visitaremos as Pirâmides de Gizé ou Capela Sistina; que os nossos olhos provavelmente nunca contemplarão a “Pieta” de Miguel Ângelo e nem as nossas pernas caminharão pela Grande Muralha da China… e a mão de Nelson Mandela não apertaremos…

E sabendo isso, sabemos que temos que viver segundo as nossas reais possibilidades nesta vida e almejar o “possível” e não o “sonhado”. Por isso a realidade é dolorosa e o sonho maravilhoso; mas como temos que viver com a realidade e não com sonho, acabamos resignando e adaptando o nosso destino e realizações a sensatez do nosso espírito. A essa sensatez, chamamos a “lei da vida”, pois sempre acompanhou os homens, desde o alvor dos tempos, seja o pobre lavrador dos confins de Quinara ao brilhante Professor Doutor da Universidade Católica de Lisboa.

Mas este é o pensamento, a sensatez, e o aceitar do comum do mortal. Ao génio, a equação é totalmente outra. Para ele a questão não é adaptar os seus sonhos à realidade, mas pelo contrário, adaptar a realidade aos seus sonhos. Ou por outro, moldar, dobrar e romper a “realidade” por fim, se preciso for, até que ela se encaixe nos seus “sonhos”, de uma maneira ou outra. Se preciso for, violentamente, com toda a força do ser, num triunfo de vontade só dado a seres escolhidos. Sem esquecer claro que a vontade só vence a realidade quando não se tem medo da morte. É esse o combustível da vontade: a coragem de morrer pelo que acreditamos.

Cabral provou este pensamento à exaustão, adaptando a realidade Guineense aos seus sonhos e realizando na prática “parte do sonho”. Só não conseguiu mais, porque não bastava ser “brilhante, dotado de uma inteligência e visão superior”, que ele possuía a saciedade; mas alem disso era preciso “possuir um grau de dureza extrema” e não hesitar perante nada “para atingir esses nobres fins”. O que ele manifestamente não possuía.

Difícil de realizar, mas possível, desde que acreditemos profundamente que podemos faze-lo e estarmos dispostos a fazê-lo. E quanto a parte categórica da sentença: “brutalidade que não olha meios” se ela tivesse sido exercida “quando necessário” centenas de inocentes Guineenses que perderam as suas vidas, na sequência da sua morte, seriam poupados a essa sorte. Pois a brutalidade só seria exercida sobre essa clique de meia dúzia de bandidos e traidores (que depois o assassinaram), e o passo do povo não seria tolhido, e nem o encadeamento Histórico seria interrompido. E hoje, os bandidos não estariam ainda entre nós.

Intuindo isso, Cabral desprezou a realidade que lhe dizia que nunca poderia realizar a gigantesca tarefa que se propunha. Toda a realidade lhe era adversa, toda a realidade lhe dizia (não dizia apenas - gritava nos seus ouvidos -, e ressoava dentro da sua cabeça) que nunca poderia juntar todas as tribos da Guiné e realizar a maior epopeia do nosso povo. Coisa que de resto não carecia de nenhuma demonstração, apenas a simples constatação que nenhum dos nossos chefes tribais (por mais valoroso que fosse), tinha conseguido isso, durante séculos.

E não seria ele, um intelectual, um engenheiro, pertencente a outra condição superior ao analfabeto povo da Guiné. Ele que é descendente de cabo-verdiano e não de papel ou mandinga; ele que é cristão e não muçulmano ou animista; ele que não acreditava em chifres e “djambacus” (e combateu-os durante a Luta. Por isso me dá pena ver ainda hoje em dia, nossos quadros, intelectuais, doutores, a andar atrás dessas práticas atrasadas que o resto da humanidade esclarecida já abandonou há séculos) naquela sociedade animista em que isso é de certa forma determinante para se poder viver.

Ele que ainda por cima, falava mal o nosso crioulo Guineense; ele que era de “cor castanha” (burmedjo, ma i ka wak) e não “preto nock” (como alguns detractores diziam na altura em Dacar, Conacri, e os colonialistas em Bissau, passando um certificado de racismo aos Guineenses, tentando desta forma mostrar falsamente que para os Guineenses (racistas como eram) a cor da pele era algo de muito importante, mais importante que a própria independência e a liberdade.

Para complicar tudo, ele que era casado com uma Portuguesa em vez de uma mancanhe ou manjaca. E para piorar ainda mais a sua situação, ele não sabia falar línguas das tribos da Guiné. Portanto, este homem contra o qual, até a própria natureza conspirava, dando-lhe um físico que não o ajudava em nada: sendo baixinho e míope; Tudo estava contra ele. Nunca a realidade foi tão cruelmente real.

Portanto, toda a realidade “dizia-lhe” que não era ele o “homem”, o “tal”, o “predestinado” para essa “missão impossível”, de ser o nosso Simão Bolivar; de ser o nosso José Marti, Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara numa só pessoa.

Estas circunstâncias poderiam dobrar qualquer ser humano, independentemente da sua coragem e força de vontade, mas não dobrou Amílcar. Não o fez hesitar um instante na sua decisão. Coisa sumamente difícil em termos políticos (que aqui tratamos) pois temos que fazer todo um povo sonhar os nossos sonhos, querer o nosso querer, acreditar no que acreditamos, marchar ao compasso da nossa vontade e almejar um futuro conforme a nossa visão.

Como explicar esta disposição inabalável? Homens, dotados de uma visão superior? Sim, mas também dotados de uma vontade férrea e inquebrantável, libertos do medo físico, do medo psicológico e não entrevados na sua acção por superstições, liberto da mundivisão tribal, de classe, de educação e da religião. Libertos das amaras que a realidade nos impões, num desprezo pela realidade que despoleta uma decisão limite em nós e dá-nos a coragem de sonhar; permite-nos tentar realizar o impossível; permite-nos ser mais deuses que homens, daí a nossa vontade de tentar conquistar o inconquistavel. 

VISIONÁRIO REALISTA E SONHADOR

Cabral foi o mais moderno homem político da sua época na Guiné, antes de começar a Luta. Em relação aos seus companheiros das outras colónias, era também o mais moderno, por isso ele teve o ascendente que teve nos três movimentos de Libertação das três colónias portuguesas. E por isso viria a ser também um dos mais importantes factores para a revolução portuguesa. E a “modernidade” não é um factor de somenos importância numa Luta politica. Atentem nesta categoria, pois à frente falaremos dela quando falarmos do tribalismo.

Percebemos que era um mundo novo que estava a começar quando Cabral “chegou” por isso ele tinha amigos de todas as etnias e sabia que não era um estranho entre eles. Essa compreensão foi um dos motivos que o fez desafiar a realidade de um modo tão peremptório. Por isso pedia ao “homem grande” na tabanca, com toda a tranquilidade, que deixasse os rapazes irem a Luta; irem estudar no estrangeiro e serem engenheiros em vez de irem “tadja catchu na bolanha”. Irem destruir o exército colonial com os seus aviões e carros de combate, em vez de irem “pirmi cadju” na “Nhabidjon”, de irem libertar o povo… em vez de irem lavrar bolanhas… queria dar grandeza a este povo, fazer de nós guerreiros e não lavradores; libertadores e guerrilheiros de fama mundial, em vez de “baqueadores de baca” na Pirada. E isto advém da sua modernidade, pois devo dizer que a sua “modernidade” que o permitiu perceber que todos os homens na Guiné eram iguais, por mais que os colonos dissessem o contrario. E não teoricamente, mas na pratica. O fula e o beafada, o balanta e o padjadinca, mandinga e nalu, eram aos seus olhos iguais entre iguais, e com eles poderia derrubar um império se quisesse. Pois não interessa a raça, a cor da pele, a formação académica do ser humano. O que interessa é a ideologia: fazer o homem acreditar que ele tudo pode e ele fará isso mesmo. Com três mil jovens altamente preparados do exército poder-se-ia ir “buscar” Casamance e uni-la a mãe pátria? Bastaria apenas convence-los que isso é possível, necessário e premente, para eles realizarem esse antigo direito do nosso povo. Mas isto é apenas um exemplo no âmbito da teoria política, sobre o que poderia ser feito ainda antes da Independência.

Como quis significar acima, ser realista (de verdade), as vezes pressupõe, desprezar a própria realidade. Se César levasse em conta a realidade, ele que era epiléptico de nascença, não conquistaria todo o mundo conhecido na altura. Se Alexandre, o Grande, não desprezasse a realidade não conquistaria o maior império do mundo aos 27 anos de idade. Na verdade quem era realista eram estes gigantes do génio humano (e não os seus contemporâneos que sempre os aconselharam a prudência), embora a primeira vista parecesse o contrário. Mas é preciso uma impressionante força de vontade para isso. Há que pensar o impensável e realiza-lo. E acreditar que o impossível sempre acontece. A realidade (aquela visível e evidente a todos) é inimiga do sonho e da realização. É inimiga do acreditar profundo, é inimiga do vencer. Porque só quando desprezamos a realidade, é que nos alçamos acima do comum dos mortais e conquistamos o Céu.

Mais adiante falarei da particular relação entre Amílcar Cabral e o antigo Presidente da República da Guiné (conhecida entre nós por Conacry) Ahmed Sekou Touré, mas por agora, devo dizer que é facto conhecido que Sekou Touré o considerava um obstáculo aos seus sonhos hegemónicos em relação a nossa pátria e ao Casamansa; e que conspirava contra ele sempre que podia: chegou inclusive a dizer a uma a jornalista italiana que Cabral não prestava porque era mestiço (fazendo confusão entre mestiço e mulato). E dizia depreciativamente, tentando apouca-lo, que este era um visionário e sonhador. Mal sabia ele que sonhar não tem nada de mal, pelo contrário, aliais “não sonhar” é próprio de animais e não dos homens. ou como Cabral disse: “Ai dos revolucionários que não sonham. A questão que se coloca é apenas saber como lutam para viabilizar o sonho”.

Na verdade, sem sonhos não existe realização. Usando a nossa linguagem arquitectural, os sonhos são os planos arquitectónicos de uma realização que por analogia é a obra construída. Mas quem era sonhador no sentido de “lunático” era o Sekou Touré que “sonhava” (dormindo acordado) com a anexação da nossa pátria pele seu país como uma província. Na sua tresloucada ambição, queria sob o seu domínio não só a nossa pátria, como o Casamansa, Sera Leoa, uma parte de Costa de Marfim, sem esquecer do Sudão e por fim o Senegal inteiro. Tudo isso porque tinha um sonho de vir a anexar todos estes territórios numa “Grande Guiné”, dos tempos de Almamy Samory Touré de quem reivindicada parentesco por parte da de sua mãe. Haveria maior sonhador que este? Ao lado dele Cabral era um “realista” seco e enxuto, com os pés bem assentes na terra, que tinha aliais como um dos princípios doutrinários “partir da realidade da nossa terra”.

Modestamente, se me é permitido, digo hoje: “ai de Guineenses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e portugueses se Cabral se não sonhasse e se não desprezasse a realidade…” ! Mas ele fez mais do que isso, não só a desprezou, como transformou as suas insuficiências pessoais, que ele não podia mudar, em oportunidades, numa desconsideração total e inabalável por essa maldita realidade que o cercava por todos os lados; mas tudo isso em consonância com a sua mentalidade, que anos depois a frase acima retrataria

Mas Sekou Touré tinha razão num ponto (mesmo os relógios parados dão hora certa duas vezes): Cabral era um visionário. Sim, daqueles que só aparecem de séculos a séculos numa nação. Tão visionário como todos os verdadeiros grandes homens; e como todos estes, também desprezava a realidade por convicção. Parece um contra-senso, ser realista e desprezar a realidade, mas há casos que não o é.

Este visionário só queria juntar dois territórios que entendia povoado por povos do mesmo sangue, cultura e língua, na base de uma constatação histórica e científica que ele explicava em termos populares da seguinte maneira: “Claro que para nós o problema da unidade da Guiné e de Cabo Verde não se põe por uma questão de capricho nosso, não é porque Cabral é filho de cabo-verdiano, nascido em Bafatá, que tem grande amor pelo povo da Guiné, mas também grande amor pelo povo de Cabo Verde. Não é nada disso, embora seja verdade. Eu vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer de açoites na Guiné (com bofetadas, pontapés, trabalho forçado). Compreendem? Essa que é a razão da minha revolta. Mas a razão fundamental da luta pela unidade da Guiné e de Cabo Verde é a própria natureza da Guiné e de Cabo Verde. São os próprios interesses da Guiné e Cabo Verde que nos levam a isso".

Num mundo globalizado o nosso povo não esta imune as influencias e cruzamentos. Quando me dizem que em Cabo verde (que quando foi descoberta era apenas ilhas desertas) as pessoas mais claras são de São Vicente e Santo Antão porque os fulas foram para lá levados para lá e os de São Tiago são mais escuros porque os manjacos e papeis foram levados para esta ilha acredito piamente nisso. Pois há provas visíveis e históricas disso. Quando vejo os Cabo-verdianos a edificar a sua nação com o nosso sangue Guineense correndo nas suas veias e vejo que ainda tem gente do meu pais dizendo idiotices até hoje, percebo que de facto não estamos atrasados só economicamente, mas também socialmente, para não dizer intelectualmente. Quando vejo atletas negros cubanos ganhando medalhas de ouro nas olimpíadas e sei que centenas e centenas de filhos do meu povo foram levados para cuba como escravos e sei perfeitamente que o muito do sangue que corre nas suas veias é sangue do nosso sangue.

Sobre este assunto Cabral escreveu seguinte: Os tugas estão desesperados. Então são eles mesmo, por exemplo, que hoje nas suas revistas, como esta, que se chama «Ultramar», têm grandes artigos, estudando a questão da Guiné e Cabo Verde, e escrevem: «A Guiné e as Ilhas de Cabo Verde - a sua unidade histórica e populacional». E sabem quem fez este artigo? Carreira. Porque ele conhece de facto muitos problemas de história. E neste artigo ele reuniu todos os documentos que há nos arquivos dos tugas e estudou para onde é que os filhos da Guiné foram, quando foram enviados para Cabo Verde. Para S. Tiago? Balantas, mandingas, beafadas, etc. Para S. Vicente ? Foram fulas, etc. Com relatórios, sobre a chegada destes, etc. No princípio eram contra, mas eles sabiam que nós somos a mesma gente, na Guiné e Cabo Verde.

Não é que isto interessa muito hoje em dia - entendo que hoje faz muito mais sentido a unidade da Guiné com Casamança, pois dessa unidade é que viria a redenção da pátria - mas há muita gente que houve falar deste assunto, sem nunca entender de que é que se tratava na verdade - do que é que estava em jogo, e a necessidade disso - quando se falava da “unidade”; pelo menos no entender de Cabral, que é o que tratamos aqui.

Mas já falei deste assunto num dos meus textos anteriores demonstrando que no geral este assunto não tinha nenhuma importância para a maioria da população da Guiné, que nem pensava nela uma vez por ano que seja. Só serviu de bandeira a alguma certa gente para justificar uma ou outra atitude. Entendo inclusive que mesmo que Cabral tivesse sobrevivido a Luta, neste momento não haveria nenhuma unidade Guine Cabo-verde, nos moldes inicialmente preconizados. Pois mais que uma questão económica (a meu ver benéfica), o seu desenvolvimento no âmbito da cultural e geopolítica é que Cabral preconizava e magistralmente da seguinte maneira: “(…) não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso. O tuga sabia isso muito bem. Carreira, com todos os seus abusos na Guiné, sabia - o bem. Mas eles fingem não saber para nos dividirem. A sua esperança era - se Cabo Verde pega na luta, mobilizar os Guineenses para combater os cabo-verdianos que não prestam e que estavam na Guiné como chefes de posto. Se os filhos da Guiné pegarem na luta, mobilizar os cabo-verdianos, tanto na Guiné como em Cabo Verde para combater duro contra os filhos da Guiné, para não deixarem levantar, para não deixarem ser livres”.

E todo esse antagonismo advinha da questão da “Unidade Guiné e Cabo-verde” que muita gente não sabe, mas este desejo (realista de ou não) de Cabral, foi mais recusada pelos naturais de Cabo-verde do que pelos Guineenses (falo do povo e não dos militantes do PAIGC). Portanto Muito antes da independência, nos inícios mobilização para a Luta, os cabo-verdianos já eram contra Cabral porque era inadmissível para eles a unidade com a Guiné. Muitos partiam do princípio que Cabo-verde sendo uma sociedade que já tinha ultrapassado a fase tribal de desenvolvimento sócio económico, unindo-se com a Guiné - que tirando “meia dúzia de civilizados” (como diziam) - ainda estava nessa fase de “primitiva” de desenvolvimento humano, seria um atraso enorme para os cabo-verdianos. Nas palavras de um “deve-se unir com quem sabe mais que nós e não com quem não sabe nada e é mais atrasada” .

Esta mentalidade tinha a ver com a própria definição e tratamento que os colonialistas davam aos povos da Guiné considerando-os gente que não tinha um nível de desenvolvimento que lhes permitisse ser cidadão. Ao contrário dos cabo-verdianos; esta é também a origem e o substrato ideológico da Lei do Indigenato, que antes de Cabral, nenhum outro Guineense combateu consequentemente. Pois para muitos que se diziam verdadeiros “fidjos de tchom”, embora seja uma lei vergonhosa, protegia-os contra os indígenas, permitindo que continuassem a ser a “classe dirigente” depois dos tugas.

Mas essa tal “Unidade” não seria na prática diferente da unidade que hoje temos com Cabo-verde no seio da CEDEAO, ou a que estamos a construir dentro da UMOA (e da CEDEAO) com os Países vizinhos (e noutros fóruns unitários de África) para potenciar o desenvolvimento económico. Estes por sua vez inspirados nas “unidades” que se constroem um pouco por varias latitudes do mundo, como essa da Europa dos 25, com um parlamento e em breve uma moeda comum para todos e não só para os actuais dezasseis.

Simplesmente Cabral já via mais longe e nesse longínquo tempo já percebia que esse era o caminho. Mas o oportunismo da parte de Guineenses e cabo-verdianos sempre lhe tolheram o passo. Pois se hoje alguém disse-se aos Guineenses “vamos fazer uma parceria com cabo verde para ajudar o nosso desenvolvimento nacional”, ninguém diria que não e muito menos os milhares de Guineenses que lá vivem e trabalham e prosperam ajudando a economia caboverdiana.

Mas Cabral viveu noutro tempo, e muita gente não alcançava a sua visão; por isso conseguiu mais facilmente unir-se com os Angolanos e Moçambicanos para fazer uma frente comum contra o Colonialismo, do que uma união entre Guineenses e cabo-verdianos, mais lógico e mais pratico, para lutar contra o colonialismo.

Em suma, acredito que só um homem na sua plenitude, no auge da sua maturidade como ser humano, libertos de todas as considerações que não sejam o futuro do povo, libertos até de si próprios, (das fraquezas humanas como filhos e outras) - acreditando totalmente na sua missão, e tendo apenas como objectivo ultimo a libertação do povo e a sua preservação – é que pode realizar aquilo que se propôs.

Se bem que descurou a questão do Casamance que a meu ver era importantissimo; com a dinâmica da luta na Guine essa questão podia ser suscitada de um modo mais abrangente e alcançar fóruns internacionais de grande audiência. E nessa altura o estado senegalês ainda não estava consolidado e seria mais frágil do que actualmente. Mas disso falarei noutra altura de um modo particular

ORDEM E ORGANIZAÇÃO

Brasil, esse país multicultural, onde vivem todas as raças do muno -, inclusive Guineenses que para lá foram levados há mais de 400 anos (ver Casa Grande e Sanzala) -, escreve na sua bandeira nacional os dizeres “Ordem e Progresso”, mas nós, com a simples ordem e organização interna, teríamos o “progresso” . Mas quem esta interessado nisto? Viver na desorganização foi sempre mais fácil para espíritos débeis. Pois com um Estado organizado e ordeiro como se faz as falcatruas, os roubos, os embarques e desembarques de drogas, matanças e prisões arbitrárias? Há quem diga que “devemos deixar tudo como esta”, numa criminosa rendição as forças mais retrógradas da nossa sociedade. É este o retrato actual de um “certo Guineense” que foi “criado” por anos de estupidez e atraso e recalcamento; ouvindo e sendo condicionado pelas “cabeças de vento”, de outros “certos Guineenses” que -, hoje despidos de todas as mentiras, nus perante Deus e os homens -, apenas tem para exibir um vão e disparatado orgulho de ser “puro Guineense”, que desde o tempo de Cabral, nunca foi arvore que desse frutos.

Amílcar Cabral foi o único, do panteão de personalidades históricas referidas atrás (não falo aqui evidentemente de Mondlane), que não foi Chefe de Estado ou Presidente de República; e consequentemente também foi o único que não pôde “dar provas", de como seria a sua governação se chegasse a dirigir o Estado.

Teria sido a excepção que confirma a regra, se tivesse podido governar? Teria tido a grandeza que tem hoje se tivesse assumido o poder? Mais importante, teria compreendido à sua grandeza e agido em conformidade? e onde estaria a Pátria agora? Estas são algumas questões que me impus a mim próprio e que tento dar respostas sérias nos meus escritos e neste em particular, porque os “problemas" de África não foram propriamente as Lutas de Libertação, as rebeliões ou revoluções; As falhas foram sempre depois. O problema em todos esses países foi sempre “a questão governativa”. Foi sempre a velha questão de la bonné gouvernance…

À primeira questão, respondo que quero crer que sim. Aliás acredito que com ele como Presidente na Guiné teríamos uma gestão da coisa pública parecida com a actual de Cabo Verde, mas superior. Seria uma mistura de “ambição” desmedida, mas inconsequente, de Luís Cabral com um pragmatismo “a la carte” de Leopold Senghor (só para dar dois exemplos próximos e conhecidos dos Guineenses); tudo isso “embrulhado” numa mundivisão superior aos dois. Pois enquanto Senghor estava “amarado” a França, Cabral não estaria amarado a nada, pois desde os seus primórdios como líder político evitou inteligentemente se comprometer unicamente com uma determinada visão do mundo. As únicas barreiras que poderia ter, seriam o seu profundo senso de justiça e de decência. E nisso seria sempre amparado pelo seu acreditar profundo no povo.

Claro que não faltará alguém para dizer que “não tenho provas” disso; mas eu responderei que acredito nisso porque para nós Guineenses o acreditar foi sempre mil vezes mais valioso do que provas. Claro que neste mundo moderno, materialista, feito mais de dúvidas, medos, oportunismos, interesses obscuros e permanentes interrogações, isso não basta. Mas eu replico que da mesma maneira que acredito profundamente que podemos tirar o nosso país da miséria profunda, do subdesenvolvimento crónico, e do atraso centenário, em meia dúzia de anos, acredito que esse homem poderia ter feito a diferença. Alem de uma questão elementar: se não acredito neste Guineense então no qual é que hei de poder acreditar?

E não digo isto porque sou um admirador extático de Cabral; longe disso, “conheço” muitos dos seus equívocos, hesitações ou de certa forma “falta de análises objectivas”, o último dos quais custou-lhe a vida. Digo o que digo baseado na forte convicção de isso poderia ter sido feito. Mas esta certeza me advém sobretudo por saber que, mesmo sem Cabral - tudo isso poderia ter sido feito tivesse havido ambição, tivesse havido a visão, tivesse havido homem. Pois tivemos certas condições objectivas e subjectivas para isso, que o PAIGC desbaratou torpemente -, mas com ele, com o povo do seu lado, seria uma realidade com certeza.

De certeza não seriamos o Dubai de hoje, mas seriamos mais que a Gâmbia, o Senegal, Cabo Verde, República da Guine, Mauritânia, e outros Congos, por aí. Não voltaríamos das missões de serviço de Burkina Fasso, ou do Mali, para não falar de Cabo-verde e do Senegal, com boca aberta de admiração, cabeça cheia de contradição, vergonha no coração e lágrimas nos olhos. E mais importante, teríamos um nível de organização mais elevado e acima de tudo ordem. E não há nada que nos faça mais falta neste momento do que estas simples categorias: ordem e organização.


Há instantes perguntava: “se não acredito neste Guineense então no qual é que hei de poder acreditar?”, desengane-se quem pensar que isso era retórica ou “força de expressão”. Mas isto tem a ver com o seu carácter individual que me foi dado “observar” tantos anos depois da sua morte. Embora é justo dizer que hoje, com a tranquilidade que a distancia no tempo nós da, e sabendo o que já sabemos, é “fácil” analisar e criticar. Por isso cada acto, pronunciamentos ou decisões dele, devem ser analisados à luz da época em que aconteceram, e em relação com os acontecimentos e personagens que os condicionaram ou determinaram.

LUGAR NA HISTÓRIA

Na nossa História comum da humanidade houve grandes homens, que conquistaram o mundo inteiro quase, mas não deixaram nada de perdurável como legado. Pois o que faz “grande” um homem não é apenas o que fez em vida, mas aquilo que deixou depois de partir (instituições que criou em vida) e que lhe sobreviveram. É claro que a sobrevivência de instituições ou doutrinas que criamos em vida não dependem obviamente de nós, depois de mortos, mas se realmente “valem alguma coisa”, perduram e têm “uma vida” própria para além do seu criador. De outra forma não há como lhes dar valor. É tão simples como isso.

Mas têm uma importância incontestável para a posteridade as Instituições que criou em vida, leis que legislou, artes que influenciou e a cultura que aprofundou; em suma doutrinas e ideologias que fundou ou influenciou, para parafraseando Neste sentido, o legado de Cabral, tanto o teórico e como o real, é imenso e só não será perdurável se formos tão fracos e incompetentes que não o possamos honrar com realizações. Como acontece agora, de resto.

Há alguns consensos entre historiadores, que só depois de uma geração (no mínimo) se pode escrever com objectividade - mais do que com imparcialidade - sobre um acontecimento histórico. Por isso entendo que neste momento chegou a hora de escrever uma grande biografia de Amílcar Cabral (se fosse por um Guineense seria o ideal a meu ver; por isso correndo o risco de ser imodesto, direi que tivesse possibilidades reais, a escreveria com toda a certeza). Mas tudo a seu tempo, por enquanto trabalharemos com o que temos, e dizer que o lugar de Amílcar Cabral na história da Guiné e de Cabo Verde é relativamente pacífico. Aqui, bem entendido, falo de estudos sérios, realizados por intelectuais capazes e reconhecidamente competentes; de análises feitas e opiniões emitidos por Chefes de Estados, políticos internacionais de renome, membros de organizações internacionais, revolucionários contemporâneos, e personalidades particulares de reputação mundial.

Não falo portanto de dislates, afirmações disparatadas e opiniões pessoais (não baseadas em nenhum estudo sério) e calunias, que nenhuma importância tem, no cômputo geral, para uma abordagem competente e séria do fenómeno Cabral. Por isso não dou absolutamente nenhuma importância a afirmações avulsas que surgem “de tempos a tempos” - pondo em causa o homem com argumentos no mínimo”pobres e suspeitos” na vã tentativa de autopromoção dos seus fabricantes -, por não merecerem que se perca tempo com eles; Mas não apenas por isso, também é por uma questão de bom senso, pois infelizmente, sei que não há rigorosamente nada que eu possa fazer, para “defender” Cabral disso; alem de que obviamente ele “não precisa” para nada da minha defesa. Não há argumentos que possamos esgrimir que sejam superiores aos do próprio homem e sua obra. Ele defende-se por si, sobrevivendo e sendo perene no tempo e na memória das gerações vindouras. Nesse aspecto estou tranquilo. Ele agigantou-se tanto na memória dos homens, que os detractores não o fazem mossa, assim como apologistas (verdadeiros) são impotentes para o “resguardar” de alguma calúnia ou maldizer.

Engraçado que os detractores de Cabral não falam do seu papel no continente Africano e no mundo; não dizem que era incompetente, ladrão, corrupto ou algo assim; isso lhes ultrapassa, por isso falam da sua cor da pele - dizendo que era mestiço, mulato, que não era preto nock (um crime aos seus turvos olhos) – dos seus pais, de onde não nasceu, etc., coisas absolutamente disparatadas, e irrisórias para determinar a honra, o carácter e a “decisão” de um homem.

Tudo isto, sem deixar de lado a percepção que o “homem comum”, o vulgo “homem da rua”, tem dele e da sua obra, tanto na Guiné como em Cabo-Verde. Mas não só nesses dois países: perguntem na Baixa do Chiado em Lisboa, a qualquer português que passe quem foi Amílcar Cabral e o que acha dele, a sua reposta não variará muito da resposta que um Angolano que abordemos na Mutamba em Luanda. É geralmente sempre um misto de admiração e respeito pelo homem, pela obra e condenação subsequente dos assassinos (na verdade, embora me doa admiti-lo, o único sitio no mundo em que vi um certo sentimento de simpatia para com os assassinos de Cabral foi na Guiné e entre alguns Guineenses). 
 Mas se quanto a Guiné e Cabo-verde a questão é pacífica, o “lugar” Amílcar Cabral na história de África está longe de estar totalmente definido e clarificado, tanto em termos puramente históricos, como no sentido mais amplo da grandeza histórica de que já falei; e outras questões não menos importantes, como o facto de saber se ele era um revolucionário ou apenas um combatente da liberdade como tantos outros que a partir dos anos sessenta lutaram (de armas na mão ou não) contra o domínio colonial. E esta questão não é de somenos importância pois define entre outras coisas o seu ideário e a questão de que se algum dia ele acreditou nas patranhas de “socialismo africano” e qual seria a orientação politica da Guiné se ele tivesse sobrevivido a Luta. 

Em África (e com relação a África) existiu sempre uma tendência de o “colocar” ao lado de Patrice Lumumba e kwame Nkrumah para com eles compor a “tríade” de eternos heróis Africanos que pela sua suposta (ou real) grandeza representam o continente negro, no que ele tem de mais belo: Um deles, também mártir de África, como Cabral; o outro, um dos primeiros pan-africanistas sérios (o criador do positivismo africano, segundo Cabral,) que encarava a união dos povos africanos como saída única para os problemas o nosso continente. Assim o aprendemos a conhece-lo, na nossa juventude, nessa sua faceta que ja não tinha nada a ver com a Guiné. Lembro-me ainda do lindo poster em que estes três mosqueteiros africanos apareciam emoldurados pelo mapa de África, que como que confirmavam as suas não pertenças nacionais, mas continental; e como a visão desse poster nos fazia sonhar com o porvir maravilhoso do nosso continente e da nossa pátria. Sabíamos lá o que viria a acontecer com a Pátria…

Mas como poderíamos compara-lo (hoje), por exemplo, com Nelson Mandela ou mesmo com o Presidente Obama (sim, naquela vertente da dignificação do homem negro e africano)? Como confronta-lo com personalidades como Leopoldo Sedar Senghor, Houphouet Boigny ou o hoje esquecido intelectual Sir Dauda Jauara (nesta nossa costa Ocidental)? Com companheiros de percurso como Eduardo Mondlane (também assassinado), Agostinho Neto ou mais tardiamente com Samora Moises Machel, ou a geração ainda mais nova - os primeiros frutos da sua mundivisão, o “homem novo”, que veio assumir o seu papel, na senda do seu legado - como o José Eduardo dos Santos em Angola?

Abro um parêntese aqui: Os angolanos, mais do que todos, tiveram grande respeito por Amílcar Cabral, que ao longo da sua história esteve sempre ao lado deles: como engenheiro agrónomo, como especialista agrícola, a fazer estudos para grandes grupos económicos que queriam investir ali, ajudando a fundar o M.P.L.A. e a divulgar a luta heróica desse povo no mundo inteiro. E eles o retribuíram, dando o seu nome á ruas, bairros, escolas, brigadas em batalha, cooperativas de produção (toda agente que viveu nos inícios da Independência em Angola lembra dos comités revolucionários Amílcar Cabral dos bairros de Luanda), etc., e nunca permitiram que o nome dele fosse arrastado na lama como alguns nossos compatriotas fazem impenitentemente. Fecho parêntese.

Mas por ser uma personalidade multifacetada, da qual se diz com razão que é um herói africano, e não apenas da Guiné e Caboverde ou dos PALOP, a nossa analise de Cabral deve ser expandida a personalidades tão marcantes como os presidente Kenneth Kaunda da Zambia e Jomo Kenyatta, “lança rutilante do Kenya”, ou ao mítico jovem martir Thomas Sankara, ou mesmo o controverso Hastings Kamuzu Banda que nasceu vinte oito anos antes de Cabral, mas só vem a falecer quase vinte anos depois deste, com 101 anos.

GRANDEZA HISTÓRICA

A grandeza é um conceito ou categoria historicamente importante no estudo biográfico de qualquer vulto importante. Mas a questão da grandeza histórica sempre suscita dúvidas de várias ordens; desde já, a começar pela necessidade de “um certo consenso” necessário - numa nação ou num continente – (entre historiadores e no povo em geral) sobre quem pode ter o epíteto de grande e quem não. Mas isto não é meramente uma questão de ordem historiográfica. Por isso quando digo epíteto não é no sentido de acrescentar a palavra “grande” ao nome de uma personagem, como por ex. Alexandre, o Grande ou milhares de anos depois, Pedro o Grande (imperador da Rússia), mas no sentido de podermos ou não considerar Amílcar Cabral uma personagem histórica de um determinado gabarito ou não, atendendo o seu lugar na história mundial e africana. Pois Cabral agigantou-se tanto na memória dos povos do mundo, que hoje ele já não é mais um herói Guineenses e Cabo-verdiano apenas, para passar a ser um herói Africano e pertencer aquela galeria estrita de homens que deixam um legado universal.

Antes de continuar, preciso abrir aqui, parênteses para dizer que o hábito de comparar vultos históricos a países peca por subjectividade, embora transmita mais do que qualquer outro exemplo a imagem de grandiosidade. Além de que é uma prática antiga da humanidade, tanto em versos, prosa ou mesmo escultura. Ainda em pequeno, vi foto de uma estátua do imperador Romano Augusto, em que o escultor, para mostrar a grandiosidade dele, representava o Império Romano (o maior do mundo na altura) como um pequenino bebe, pendurado na aba da sua toga. Imagem tão arrebatadora que nos sentíamos instantaneamente esmagados pela “grandeza” representativa de Augusto).

No caso de Cabral a comparação é tanto mais legítima pelo que aconteceu, depois da sua morte, com o seu País. Mas mesmo que a Guiné não fosse o que é hoje, mas pelo contrário (como espero que seja um dia) um país próspero, a comparação seria feita na mesma, e o prato da balança penderia sempre para o lado de Cabral. Pois o possui, não só em relação a dois países que o elegeram como herói nacional, mas em relação ao continente Africano pelo menos (se não podemos afirmar isso peremptoriamente quanto ao planeta). Somente por aquilo que fez para outros povos africanos, já seria um imortal. Por ter sido o coveiro do colonialismo numa grande parte da África, e até pela maneira que foi morto (por gente que nunca entendeu essa grandeza, atrasados e parados no tempo, vivendo de complexos de inferioridade baseados na cor da pele). Sim, teve esse azar, de ser morto por gente sem nenhuma grandeza, nem os mandantes, nem os executantes, nem os beneficiários. Portanto a questão da sua grandeza histórica é peculiar, sui generis, pois é independentemente do povo da Guiné - e é justo dize-lo -, independentemente, do Povo de Cabo-Verde.

Grandeza Histórica, como categoria filosófica, tem uma segunda dimensão, não menos abrangente, que procede da “pessoa em si”, no sentido mais ordinário; pois independentemente dos feitos nobres e corajosos de um indivíduo em prol de uma causa nobre, a sua “pessoa humana”, tem que ser, não só, gerador de alargados “consensos”, mas também de suscitar “heroísmos” em terceiros. Claro que a sua capacidade intelectual, o grau de cultura, os seus escritos, ditos, frases, a atitude perante as derrotas e as vitórias (até a beleza exterior e interior, tenho que dize-lo, tem a sua importância neste somatório) são a montra por excelência da grandeza; por isso não se pode pretender grandeza sendo assassino, racista, tribalista, ladrão, trampolineiro, invejoso, mesquinho e de vistas curtas. Mas só somos grandes na verdade quando tudo o que fazemos e pensamos tem como objectivo e engrandecimento do povo. Pois para que serve a grandeza se não é para servir o povo e faze-lo ainda mais grande que nós?

Mas acima de tudo, por mais estranho que pareça, o “definidor” por excelência da grandeza é a bondade. A bondade interior, pois sem bondade nada vale a pena; mas não apenas a piedosa bondade cristã; não apenas porque fazer o bem é mil vezes mais difícil que fazer o mal; mas a bondade como capacidade para imaginar o bem para realiza-lo no seu sentido mais amplo, como por exemplo libertar um povo (a bondade de matar – na Luta de Libertação - se preciso for, para alcançar esse sagrado objectivo). A bondade de fazer coisas menos grandiosas, mas necessárias, como dar uma vida melhor as crianças, fazendo, maternidades, creches, jardins-de-infância e escolas, por exemplo. Em suma a bondade de mudar a nossa concepção do mundo, de nos fazer sonhar com o melhor para a nossa pátria, de nos fazer acreditar que tudo é possível. Acreditar por fim que o “impossível” sempre sucede. Tudo isto somado é que “dá grandeza” histórica a um homem.





TERCEIRO INSTANTE
UM SONHO QUE NÃO SE REALIZOU

As vezes construímos sonhos em cima de grandes pessoas... O tempo passa... e descobrimos que grandes mesmo eram os sonhos e as pessoas pequenas demais para torná-los reais!

                                               Bob Marley


E assim chegamos ao terceiro instante desta primavera, despoletado por uma voz forte e clara que vem de um senhor alto que esta na primeira fila; é um português, quase na casa dos cinquenta, Engenheiro Agrónomo, professor no Instituto de Agronomia, onde estudou e onde também estudou Amílcar Cabral há muitos e muitos anos. Interrompendo com ímpeto o curso dos meus pensamentos, vibrante e orgulhoso, diz que até agora Amílcar é respeitado nessa instituição; e não apenas como o “ex aluno” mais famoso de todos os que ali se formaram, desde a fundação dessa centenária Instituição. Diz também que a fotografia dele esta sempre presente, no átrio, num local destacado. Mas que o respeitam assim, não só pelo seu percurso posterior a sua licenciatura - o percurso de grande politico africano -, mas também por aquilo que foi e fez enquanto esteve entre eles.

AMÍLCAR, O JOGADOR DE FUTEBOL

Claro que não conheceu Amílcar Cabral, mas “conhece” as excelentes notas que ele teve nessa Instituição, onde foi aluno brilhante (um dos mais brilhantes). E sabe que era um dos melhores jogadores (se não o melhor) que tiveram nesse Instituto até hoje. Que ele se não tivesse seguido o seu instinto e resolvido compartilhar o seu destino pessoal com o destino dos seu povo, além de engenheiro, poderia ter sido um grande jogador. Impressionante; isso me fez lembrar de um famoso jogador da selecção brasileira chamado Sócrates que era médico de profissão; sempre o que o via a jogar, apreciando as jogadas incríveis que fazia, pensava que isso de alguma forma (que não conseguia explicar) era influenciado também pelo facto de ele ser médico. Será que Amílcar algum dia pensou em ser um jogador profissional? No caso engenheiro jogador? Pois creio que, pelo carácter, nunca abandonaria os estudos. Esta discreta faceta de Amílcar, que eu já conhecia de outras leituras (e por ouvir dizer) era curiosa, mas não deixa de ser interessante saber se poderíamos ter tido outro Eusébio (Guineense) em vez de Abel Djasy, se Amílcar quisesse?

Não sei, e ninguém saberá provavelmente. Mas isto me faz pensar nas voltas que a vida dá e não dá, e como as vezes vamos parar a um lugar que nunca deveríamos estar. Mas uma coisa vos digo, Abel Djasy foi tão extraordinário naquilo que realizou, que não o trocaria nem pelo Rei Pelé e Ronaldo Fenómeno juntos.

Mas não deixa de ser curioso, que tudo que escutamos sobre Amílcar Cabral (como a sua faceta de bom poeta, excelente aluno, competente engenheiro, organizador admirável, politico extraordinário), as vezes me faz pensar em coisas simples, tentando humaniza-lo e “faze-lo igual a nós”; ou pelo menos na nossa mente ver como esse ser humano era realmente: será que ele gostava de peixe frito com salada de tomate e alface? Se lhe déssemos “tchaben” ou “caldu di mancara”, qual escolheria? Já agora, jogava bem o Ping Pong? Otelo saraiva de carvalho disse que segundo ouviu contar um tio dele, colega de Amílcar no tempo da Casa dos Estudantes do Império, Cabral era um daqueles homens multifacetados; tinha um jeitão para jogar futebol, tocava viola, cantava e era um excelente aluno, era, o que podemos considerar, um homem completo.”

Parecendo que não, estas pequenas coisas são importantíssimas para se entender o ser humano na sua plenitude. Pois o que determina a nossa personalidade e valores são momentos das nossas vidas que parecem a primeira vista, as mais prosaicas. Como exemplo pessoal, há mais de trinta anos, tive a sorte (ou azar) de passar três dias na ilha de Rubane no arquipélago dos Bijagós, onde fui parar com o meu amigo Orlando Martins (Djamba) ao tentarmos dar volta a ilha de Bubaque e perdermos o controlo (e os remos) da nossa pequena canoa. Lá, acabamos por ficar na cubata de um natural dessa ilha, enquanto esperávamos a canoa grande que fazia a ligação a ilha de Bubaque e a imaginar uma história verosímil para contar ao dono da canoa que tínhamos extraviado. Independentemente de tudo que era novo e maravilhoso para nós, rapazes da cidade, tolos estudantes sem conhecimentos sobre o viver dessa gente (alem do que ouvíamos e analisávamos superficialmente) não esqueci até hoje os seus pratos feitos de diversos mariscos frescos. Havia uma comida feita de feijão, óleo de palma e açúcar que eu adorava de sobremaneira, que todos os Bijagós, da pequena tabanca já me gozavam quando ela ficava pronta. Havia se não me engano três principais tabancas nessa paradisíaca ilha que acabei conhecendo mais ou menos bem; mas quem sabe, não esqueci essa gente, essa ilha, e esses três dias da minha existência até hoje, também por causa dessa deliciosa comida. Mas se a comida é algo material, as pessoas que o cozinharam com carrinho e mo ofereceram com amor, são os que sem querer marcam a nossa existência para todo o sempre.

Tudo o que vivenciei, que originaram as minhas” crenças e sentimentos” consubstanciados numa revolta profunda acerca do que aconteceu no meu País nestes últimos quarenta anos, não produziram em mim apenas ódio, mas também um amor profundo ao mesmo, originados por certos episódios como este que narrei. Assim, entendo, que falar de alguns factos da minha vida, como forma de falar de acontecimentos políticos capitais da vida do nosso país, é uma maneira tão legítima, como qualquer outra, de fazer passar uma mensagem que se quer positiva e útil as novas gerações. Assim, nesse entendimento, falei-vos de factos acontecidos do tempo ainda da escola primária, do liceu e depois da minha licenciatura trabalhando no país. Mas sempre com algum pudor pois poderão ser erradamente interpretados como uma forma de afirmação pessoal que as minhas reflexões podiam não me dar.

Mas também entendo que não se pode falar do país e do povo “em abstracto”, com teorizações apenas, sem exemplos concretos; e uso os meus, amparado na certeza que os meus leitores também viveram histórias como as minhas; nossas historias particulares, que no seu conjunto, no fundo são a verdadeira história deste povo. Daquele povo simples, daquele cidadão comum que nunca fez mal (e nem bem, infelizmente) a este povo. Por isso muitas vezes durante a minha vida (mesmo em países distantes), “voltei” a essa ilha de Rubane, embora apenas na minha imaginação. Nunca esqueci essas lindas praias, ladeadas de verdes palmeiras, que os meus infantis olhos contemplaram uma vez na vida, e quero crer que as sensações com que impregnam a nossa alma, esta muito para alem dessa materialidade, pois mudam o nosso ser de forma indelével. E assim “voltando”, vim a encontra esse povo simples de novo, anos e anos depois, na Rússia, através dos romances de Fiodor Dostoevski. Este Dostoevski, para mim o ser que depois de Deus, melhor conheceu a natureza humana, me fez olhar para dentro de mim, e desenvolver o amor pelos “Humilhados e Ofendidos” desta vida, que tinha nascido em mim nessas praias de Rubane; o respeito por “Gente Pobre” deste injusto mundo é desse tempo, pois tudo tem um inicio e um fim. Mas a certeza de que o “Crime e Castigo” andam de mãos dadas, é deste outro tempo, deste tempo que não é tempo. E quando lia estes três livros (dele, os meus preferidos) de Dostoevski, que se passam nas ilhas que formam a cidade de São Petersburgo, as ilhas do frio rio Neva, a única comparação que me vinha a cabeça eram com as minhas ilhas do arquipélago dos Bijagós (o nosso com 90 ilhas e o deles com 100), e a sua maneira também dessa “gente pobre”, a sua maneira também, “humilhados e ofendidos”, como estes que encontrava neste romance escrito cento e cinquenta anos antes.

Mas hoje os “Humilhados e Ofendidos” desta vida estão em todo o lado e somos todos nós. Mesmo aqueles que defendem um”status quo” que a eles perece seguro, a longo prazo serão perdedores. E não estou a falar apenas dos malandros, estou a falar de gente séria, de gente que como eu também querem o desenvolvimento deste país. Falo de Quadros que têm que deixar as mulheres e filhos fora do país, em Portugal, Senegal e outros países, pois este nosso não tem condições para eles estudarem ou viverem. Quadros que não podem ver os seus próprios filhos a crescer, porque o país não tem hospitais normais (até uma pequena vila do interior do Senegal como Casamance tem melhor sistema de saúde e hospitalar que a nossa capital), escolas ou faculdades para estes se tratarem quando necessário e estudarem normalmente. Sabem que toda a gente que pode viver fora, já abandonou o país e que todos os dias, até os nossos analfabetos do interior do país procuram um caminho para sair, como se uma praga há muitos anos tivesse invadido esta terra. Eles mesmos ainda não abandonaram apenas porque pensam que lá podem ganhar mais do que aqui fora. São pessoas que sabem que mesmo que ganhem muito dinheiro na Guiné, nunca poderão dar aos filhos uma educação esmerada e uma vida em paz no seu país. Dirigentes e Governantes que já não acreditam no seu próprio país (nem os seus filhos acreditam) e a única coisa que procuram desesperadamente é os “encaixar” numa qualquer embaixada ou organismointernacional no exterior. E passam a vida a fazer “corredores” para isso, esquecendo que tudo poderia ser diferente, com outra atitude.

Mas inexplicavelmente, contra todo o bom senso, são essas mesmas pessoas que querem que tudo fique na mesma, apenas porque desempenham uma ou outra função no aparelho do Estado, concedido por obséquio de alguém, que enganadoramente acham, que gostaria que as coisas fiquem “tudo na mesma”; as vezes esse seu benfeitor, por sua vez, tem ideias avançadas mas não consegue realiza-las porque, por sua vez, pensa que esses seus subordinados preferem que tudo “fique na mesma” (e como esses é que são o seu suporte, não ousa ir contra eles); e nesse círculo vicioso, as coisas realmente acabam “ficando tudo na mesma”.

E assim quadros válidos acabam “apoiando” a estagnação social, política e económica. Mas quanto tempo dura a vida humana? o resto não interessa? Se o país melhorasse não seria bom, infinitamente melhor, mesmo para esses? Há pessoas que já não são meus amigos, pois eu escrevo coisas que para eles é mau, pois querem que tudo “fique na mesma” e “suspeitam” que eu quero que as coisas melhorem. Meu Deus, meu Deus, porque nos abandonas-te? Esquecem que a perdição vem justamente pelo facto de “tudo ficar mesma”. A estagnação e a imobilidade atraem o descalabro, a perversão, a libertinagem e anarquia.  

PRIMEIRO POSTULADO: O LUGAR DE NASCIMENTO

Há muito que é dito - por uma variedade de razões que não posso enumerar aqui -, que a grandeza de Amílcar ultrapassou as fronteiras da sua pátria natal, a Guiné. O escritor português Álvaro Nóbrega sobre este particular diz com razão: Figura sebastianista (…), Cabral ultrapassou largamente as pequenas fronteiras da Guiné-Bissau (…). Por isso, num certo sentido, é redundante falar de um Amílcar Cabral Guineense (ou até de um Amílcar Cabo-verdiano) apenas. Aliás, por continuarem a ser os dois Países tão insignificantes e medíocres (no sentido da sua importância económica, politica ou militar no mundo e não pela boa ou ma gestão que se faz da pobreza), que mesmo no seu conjunto, ainda não “chegaram ao “seu calcanhar”; ao “calcanhar” da genialidade, da realização (se é que assim me faço entender), para poderem reivindicar algum direito particular sobre o seu nome património ou pertença (isto bem entendido, não no sentido formal).

Não faz nenhum sentido olhar para a grandeza de um Nelson Mandela, pensando apenas na África do Sul; ele é pertença de todos os africanos e por inerência de todos os seres humanos dignos neste mundo. Pensar que Gandhi foi o que foi porque nasceu na África do Sul ou no Punjab indiano, é redutor e disparatado. Ou indo mais longe, analisar a gigantesca obra de Marx (pelo volume, consistência, só comparável a duas ou três mentes em toda a história da humanidade) pensando no seu nascimento na Prússia Renana, só pode ser tarefa de gente limitada ou de toleirões. Por isso não passa na cabeça dos Gregos reivindicar a pertença particular de seres universais como Sócrates, Platão, Péricles ou Leónidas. Pois cada um desses homens, fizeram com que só somos o que somos, neste planeta; porque eles existiram e fizeram “o que fizeram”.A grandeza de um homem nunca teve “nada a ver”, especificamente, com o local de nascimento. A grandeza é inata e em cada cem anos, num país, num povo, é dada a uma pessoa.

Por isso se eu aceitar, mesmo que por uns instantes apenas, a afirmação de que Amílcar Cabral não nasceu nestes acanhados 36000 Km2 que agora nos restam como território nacional, o que é que essa aceitação me daria? Como Guineense, apenas uma grande dor de cabeça: Pois se tivesse nascido mais para cima, digamos no Senegal, seria uma grande alegria para os Senegaleses (estes diferente de nós aproveitam tudo que pode engrandecer a sua Pátria.

O amado Presidente deles, Leopold Sedar Senghor, chegava ao ponto de dizer (sem nenhum problema) que ele era originário da nossa terra e que o nome dele, afinal, vem da corruptela do vocábulo português “Senhor”. Mas - felizmente para ele -, sabia que não vivia no meio de racistas e complexados, por isso podia dizer isso e muito mais, sem se esconder.
A sua linda frase “mon sang portugais s`est perdu dans la mer de ma negritude” demonstra que até no campo da poesia ele não ignorava a sua mestiçagem, embora fosse mais “preto nock” que muitos que se dizem “preto nocks”. É “se dizem” pois isso é para consumo dos incautos que conseguem enganar.

Se Cabral tivesse nascido em Cabo-verde, seria uma “grande perda” para nós e para aqueles que se dizem “puros” cabo-verdianos; os que se acham, “verdadeiros fidjo di tchom de cabo-verde”, e que dizem que “Cabral é um estrangeiro, um Guineense que foi imposto aos Cabo-verdianos” como Herói Nacional. E dizem não aceitar um Guineense como seu herói nacional”. Mas isto não é dito por dizer, serve para esses oportunistas terem um certo protagonismo, e assim criarem condições para virem ocuparem postos no aparelho do Estado, aparecendo aos olhos dos seus ingénuos compatriotas como os genuínos “fidjos di tchon”, os verdadeiros “burmedjo waks” aqueles que defendem os genuínos Cabo-verdianos, contra àqueles misturados com Guineenses, como Cabral. e gostariam que os cabo-verdianos pretos não fossem assim tantos.

São eles que fomentam a teoria pateta de que os cabo-verdianos não são Africanos. São aqueles que odeiam a imigração Guineense para Cabo-verde, esquecendo que os Cabo-verdianos não caíram do céu, e que querendo ou não, o nosso sangue corre nas suas veias. Embora há quem nós queira fazer crer que a população de Cabo Verde caiu do céu, ou surgiu do nada por obra e graça de Deus, que um dia resolveu derramar vidas naquelas ilhas desertas. Esses, como os nossos, quando lhes dá jeito (e para poderem diminuir Cabral), também dizem que a Independência foi um erro, pois podiam ser como a Madeira e Açores (ironicamente alguns Madeirenses querem Independência, baseando-se no sucesso Cabo-verdiano).

Estes usam este argumento para tentarem atingir fins ilícitos, como alguns Guineenses seus iguais, os tais nossos “verdadeiros fidjo di tchom de Guiné”. Esses também o usam, mas no sentido contrário, mas o objectivo é o mesmo, para também obterem benefícios ilícitos. E tantos uns como outros usam a memória de Cabral, denegrindo-o, para atingir fins obscuros.

Mas se tivesse nascido de verdade ali naquelas ilhas, mas seria uma grande alegria para a maioria dos cabo-verdianos que se identificam com a sua heroicidade e seus ensinamentos. Como de resto qualquer país africano teria orgulho de ter entre os seus filhos (e como seu herói nacional) um vulto de tamanha envergadura.

Resta o quê? Será que nasceu no alto mar (como o antigo presidente do Brasil Itamar Franco), num navio que vinha de Portugal para África? Ou noutro que ia de África para Portugal? Mas a dor de cabeça é ainda maior do que pensam algumas mentes fracas, senão vejamos: Cabral libertou o nosso povo, dignificou os Guineenses como nenhum outro. Trouxe a Independência Nacional, formou - ou criou bases para a formação futura - de centenas de quadros. Traçou um rumo para o desenvolvimento e ainda deu a sua vida por nós (sendo ainda por cima criminosamente morto por nós). E agora, no fim do dia, descobrimos que o “tipo” era estrangeiro. Mas “que ganda complicação”! Então, nós como Guineenses, sabemos que temos deveres sagrados para com o nosso povo, mas nunca fizemos nada pelo nosso povo e este estrangeiro, que não tinha nenhum dever e nenhuma obrigação para com este povo, apareceu do nada para organizar-nos e devolver-nos a liberdade que há quatrocentos anos nos foi usurpada? Como explicar isto e como inserir isto numa análise consequente da história do nosso povo? Pois Cabral resolveu sacrificar-se por ele: Unir este povo, chefiar este povo e lutar por ele durante mais de 12 anos, pondo em risco a sua própria vida e da sua família, perdendo os amigos, cortando relações com os antigos professores, colegas de formação, perdendo todos os privilégios que tinha como engenheiro e súbito português, só para…? ….? ……………….? enfim………………….

Coitado, não devia ter nada mais que fazer na vida. Olha, podia ir para Angola ser um dos directores da CUF ou da Diamang, e receber balúrdios de dinheiro ou continuar como consultor das empresas agrícolas… Olha, se não gostava do clima, podia ir para Nova York, trabalhar nas Nações Unidas (daria um óptimo Secretario Geral, talvez melhor que Kofi Annan) como o Eduardo Mondlane e muitos outros (e ganhar um dinheirão). Paciência…, não se lembrou… e foi para Conacri e assim teve a imensa sorte de conhecer Boké, kindia, Labé e depois Madina de Boé e outras dezenas de madinas que não faltam no nosso país (eu mesmo no meu tempo estive em tantas) … enfim; dizer o que?......... para que?  %%%%%%%%%%6566666666&&&&&&&&&6 Bissilay

Então a nossa divida como povo - e como elementos isolados, desse povo - para com Cabral, esse estrangeiro, por esse Cossaco do Rio Don, apaixonado por Cassaca e Madina de Boe, que nos amou mais que aos próprios filhos, agora aumentou imensamente. Quanto aumentou? Não sei, mas pelo menos o dobro; e nem estou a falar dos juros, pois como não tinha nenhum dever de fazer o que fez…. e nos sabemos que em África aos cooperantes paga-se dez vezes mais que os nacionais…Enfim!  Rapazes! Sabem uma coisa? Para não ser malcriado, digo que o melhor que têm a fazer, é fazer algo de útil para esse povo, que é vosso e quem sabe consigam superar este estrangeiro, vocês, os nacionais, os verdadeiros “fidjos de tchom”.

Tolos, tolos, tolos. Ignorantes, ignorantes, ignorantes. Racistas, racistas, racistas. Imbecis, imbecis, imbecis. Cada um que ache que faz parte dos que identifiquei em cima, escolha a palavra que achar que se adapta melhor ao seu grande carácter. E assim um dia quando, for um grande herói, maior ainda que Cabral, e estivermos a escrever a sua biografia, poderemos saber que cognome usar para o identificar (pode escolher até três palavras de uma vez, pois não estão repetidas por acaso: alguém pode querer ser racista ao quadrado ou imbecil ao cubo).

Quando falamos de gigantes que deram sentido ou mudaram o sentido da existência humana como Júlio César, Jesus Cristo, Napoleão Bonaparte, Moamé, Simon Bolivar, não faz nenhum sentido preocupar com o sítio onde as suas mães deram luz, seja numa manjedoura nos confins da Galileia ou na fria Patagónia. Quando pensamos em homens verdadeiramente grandes não podemos “liga-los” a países específicos, como forma de “reduzir” e “manietar” o seu legado. É este Cabral Africano, Universal quiçá, que não é demarcado por nenhumas fronteiras geográficas, sócias (ou psicológicas), como “ser” Guineense ou cabo-verdiano, que para a sua genialidade seria limitativo (e em certos casos redundante). São estas considerações, que entendo aplicáveis para uma análise estrutural e consistente do “fenómeno Cabral” que ainda temos de analisar no futuro com imparcialidade.

Portanto, quando Leopold Sedar Senghor, Presidente e fundador do moderno estado dos senegaleses, diz sem nenhum complexo, a frente de toda a nata da sociedade intelectual senegalesa, que tem sangue português e que seus antepassados são da nossa Guine, que o nome dele é dos portugueses, não posso deixar de ter piedade de alguns dos nossos analfabetos funcionais para não dizer totais, que embora com uma licenciatura qualquer, conseguida Deus sabe como e onde, que deviam ser apartados do povo por dizerem tantas barbaridades.

Por isso não permitam que nenhum analfabeto funcional, nenhum kalabanté, vos diga que este Guineense é melhor que o outro: por ser de determinada tribo, por ser menos ou mais escuro, por ter menos ou mais formação, por viver no país ou fora, por ter nascido fora ou dentro dos miseráveis 36.000 km2, que ainda nos restam como pátria. Pois o vosso dever de “amar o povo” se consubstancia também em “proteger” e “reunir” povo na sua totalidade e plenitude; e não separar, alienar e excluir criminosamente, do concerto da Nação filhos deste povo. Este povo que esta a desaparecer todos os dias transformado em etnias desgarradas, grupos inconstantes, partidos irresponsáveis, indivíduos isolados, sem um projecto único, sem um futuro comum.

Fiodor Dostoevski já dizia que a pobreza não é vergonha, mas a miséria sim. Pois a miséria leva ao aviltamento, e o miserável deve ser apartado de gente de bem. Eu vos digo que a pobreza intelectual já é má por si só, mas a miséria intelectual é aviltante. Pois conspurca o seu possuidor e aqueles que ao seu redor, indefesos, caem nas suas armadilhas, mentiras e cantigas. E como geralmente são sempre os mesmos que cometem as duas torpezas, que aqueles que não contentes em levar o povo a pobreza, ainda pretendem remete-lo a pobreza aviltante, não têm perdão. E na Guine há muito que saímos da pobreza e embrenhamos na miséria: miséria existencial, miséria intelectual, miséria como Estado, miseráveis como seres humanos. Há que estancar a miséria, pois a miséria avilta e os provocadores da miséria, os “transformadores” do povo em miseráveis, devem ser afastados dos seres humanos.

A INCAPACIDADE DE SOBREVIVER

Por índole e formação, não considero “acabado” nenhum texto meu; entendo que por mais brilhante que seja, tudo carece de melhoramento; e se entender acrescentar algo aos meus textos, em qualquer momento, não hesito, mesmo que nunca mais venha a ser republicado; embora a s ideias principais permaneçam sempre. Se atentarem nos primeiros dois capítulos deste “Sete Instantes”, que já vos enviei, em comparação com os mesmos que agora envio juntamente com este Terceiro e Quarto, percebem que já sofreram correcções, acrescentos e alterações importantes, embora as ideias básicas permanecem. Mas neste caso concreto, este capítulo, que na versão original deste texto, era o capítulo final, aparece aqui, como o terceiro dos sete; muito cedo portanto. Mas resolvi mudar a disposição dos capítulos, para primeiro “responder a estas prementes questões” e só depois falar de outras, embora não menos importantes. Se não elas iriam pairar no nosso subconsciente durante toda a leitura, tornando a mesma mais pesada.

Mas isto vem propósito de algo mais importante. Da pergunta que ainda não me fizeram mas que vão fazer obrigatoriamente: se Amílcar Cabral era um campeador tão excepcional, como é que os seus companheiros e discípulos falharam tão redondamente? E assim chegamos ao cerne da questão: sim por mais voltas que dê, acabarei nesta pergunta, e dela não podemos apartar. Porque ela é a origem de diversas interrogações existências sobre a nossa vida nacional e a sua resposta é parte da resolução das mesmas.

Estas questões de ordem existencial que são determinantes para a Nação e não pequenas quezílias e “fait divers” do nosso dia-a-dia, que nunca serão primordiais para quem pensa em termos de Nação. Eu não penso em termos de indivíduos mas de gerações. Pois na verdade, embora pareça o contrário, nunca quis falar do passado, mas somente do futuro. Só falo do passado para poder “situar” o meu ouvinte (ou leitor) no cerne do meu pensamento, pois como eu não gosto de pensar em termos de anos, mas de decénios, no mínimo, sou obrigado muitas vezes a usar atalhos históricos para o levar mais rapidamente a compreensão necessária, senão exacta, do que digo. Por isso a minha atenção e prioridades são dirigidas para estas questões de fundo, pois delas que se originam outras mais graves para a saúde do povo.

Na minha resposta a questão – o porquê da não realização do sonho - começo por dizer que o mundo está cheio de exemplos iguais aos de Cabral e seus companheiros. De povos que perderam o seu campeão num momento critico e assim tudo foi perdido. Os portugueses na sua mitologia nacional nunca se esquecem daquele momento, em Alcacér kibir, em que o jovem Rei D. Sebastião desaparece para sempre. Ou os franceses o momento que a menina e moça Joana d`Arc aparece do nada para salvar uma França perdida. Desde os tempos de Gengis khan, que quando o idealizador desaparece a obra soçobra; os reinos são divididos e impérios são destruídos. Cartago não sobreviveu Aníbal, nem Roma por muito tempo ao César. O império de Alexandre só não foi maior, só não sobreviveu ao seu génio, pela incapacidade dos seus companheiros acreditarem que podiam conquistar o mundo inteiro. E foi vergonhosamente dividido em várias partes pelos seus discípulos numa luta pelo poder depois da sua repentina morte (envenenado?).

Mas isso é falar-vos da história universal, embora muitos partidos e movimentos muito bem estruturados e dinâmicos também não sobreviveram aos seus fundadores. O PAIGC também não sobreviveu a Cabral. A verdade é essa por mais que doa a alguma gente. O nome existe, recordações esparsas e pouco mais. Dividido em duas partes, restou o que restou. Pois na verdade qual é o verdadeiro Partido de Cabral? Este nosso, ou aquele chamado de PAICV? Venha o diabo a escolha. Pois na verdade nenhum é o partido de Cabral. Cada um é um novo partido - inventado, refundado, repescado, como quiserem entender – que usa as siglas e cores desse que já desapareceu a muito. E para se afirmarem os dois utilizam como mais-valia poderosa o nome valioso de Cabral e a sua recordação e escritos deixados. Pois Cabral é ainda o único activo - limpo e não conspurcado - que resta da odisseia da libertação, depois de todo o ror de crimes inomináveis que foram cometidos.

Mas o que levou a criação desses dois novos partidos foi a “incapacidade de sobreviver” daquele primeiro “Partido de Cabral”. Sobreviver da maneira que Cabral o tinha deixado no dia 19 de Janeiro de 1973, com os sonhos intactos e com uma certa ética e moral; pois embora a partir do dia 20 de Janeiro, era já outro Partido. A autoridade que Cabral incarnava, e que “segurava” e unia das diferentes facções, desapareceu de um instante para o outro com a sua morte. mas mesmo assim, mesmo sabendo que algo não ia bem no Reino da Dinamarca, que havia traidores e assassinos entre os militantes, ainda havia saída. Mas tinha que haver uma espinha vertebral forte, que nunca se dobraria a partir dessa data (e por causa dessa data), e que seria resistente a todos os oportunismos e tentativas de desvios a linha traçada. e isso devia ser garantido por um grupo coeso de militantes que poriam tudo em pratos limpos e inteligentemente precaveriam o que veio a acontecer no futuro.

Dentro da filosofia deste meu ensaio, é minha convicção que a partir desse sagrado dia 20 de Janeiro o PAIGC no seu todo, como força política, como o fiel depositário dos anseios mais sagrados do nosso povo deixou de existir. Disse atrás que a “alma da nação” , o espírito do nosso povo, esta petrificado no tempo desde essa data; devo agora acrescentar que nenhuma Nação floresce e se desenvolve quando o seu espírito esta parado no tempo, quando o povo não tem alimento e substância espiritual, quando não tem um espelho para se rever. Pois aqui não é a matéria que determina o espírito, mas o seu contrário.

Desse dia em diante o “sagrado” o “excelso” o “transcendental” deixou da fazer parte para todo o sempre do léxico que caracteriza a acção desse movimento. E a partir desse momento era um barco a deriva, sem norte e sem barcos salva-vidas. É esta deriva que leva ao monumental e terrível ajuste de contas que sobreveio depois da morte de Cabral. Nesse primeiro descalabro, já ninguém mandava em ninguém. Ouve consequentemente o aproveitamento da situação para saldar contas antigas e novas, como consequência, como se conta, fuzilaram-se muitos inocentes.

Portanto tratava-se de sobreviver, primeiro, para só depois tentar realizar. E quem não consegue sobreviver e conservar a sua matriz inicial tão pouco poderá realizar. E neste caso, quando chegou a hora de realizar, já não havia a matriz inicial; e jamais foi recuperada. Aqui não vou falar ainda da “incapacidade de realizar”, que era gritante, vou lembrar apenas que José Carlos Schwarz cedo percebeu este meu ponto, e estava coberto de razão no tchebendo quando cantava: gossi ki hora de canta tchica, ninguim ca tem garganti…

A REPUBLICA DOS REUNIDORES OU A INCOMPATIBILIDADE ANTAGÓNICA COM O SONHO

Nem garganta nem cabeça e nem mãos; pois o que se passa na prática é que depois da Independência, a realização do “Sonho de Cabral” tornou-se um pesadelo para muitos deles. As possibilidades infinitas, que se abriam a frente dos militantes, como viagens ao estrangeiro, possibilidade de terem viaturas e condutores, mulheres bonitas, casas excelentes, tudo isso começavam a entrar em conflito com os ensinamentos de Cabral (na verdade eles é que tinham um entendiam deturpado das coisas; pois num país que produz riqueza os dirigentes têm todo o direito de ter uma vida normal) e ele tornou-se pouco a pouco num estorvo. Pois a herança de Cabral dizia por exemplo que os homens e mulheres eram iguais e se os dois foram a Luta, não é justo agora deixar as companheiras de lado; mas as tentações da cidade eram grandes e a carne era fraca e ninguém queria ficar com Apili (José Carlos, de novo “vigilante” não deixou passar este desregramento); e quando ficavam tinham que arranjar amantes. Arranjar amantes era contra os ensinamentos da Luta? Pois bem que se lixem os ensinamentos. E assim vamos prevaricando; mas se os ensinamentos da Luta dizem que temos que ser modestos e viver só com o nosso salário, então como sustentar as amantes? Malditos ensinamentos! e assim por diante, e assim a coisa foi degenerando.  Pois como se pode conciliar os princípios de luta com arranjar uma bolsa de estudo para um sobrinho que não tem direito, ou uma casa para um primo que não trabalha nesse ministério, ou um sofá para sala que a nossa mulher reclama, mas o salário não da? Para que serve ser alto dirigente se não consigo resolver as coisas por isso mesmo?

Naquele tempo os próprios militantes é que “vigiavam” uns aos outros. E quem ainda fiel a doutrina da Luta e queria voltara as origens, tentar salvar a matriz inicial do Partido, também tornava-se num empecilho. A moralidade de cada um era olhada com atenção pelos outros e não raro havia queixas a “instâncias superiores” (cada designação que usavam) sobre actos de um ou outro militante; a censura do Partido ainda funcionava e muitas coisas eram feitas as escondidas ainda. Mas isso só foi possível durante um curtíssimo tempo. Pois só quem não faz nada de mal é que pode apontar o dedo aos que fazem. E esses rareavam cada vez mais, alem de cada vez mais já serem também empecilho. E aqui não haverá moralidade que valha, nem para uns nem para outros, e será a lei da selva.

Se Cabral não tivesse sido morto durante a Luta teria que ser eliminado em Bissau. Pois não era ele que antes de morrer dizia: “Chegou o momento de acabarmos com responsáveis e dirigentes que têm mais do que uma mulher e que, na luta, têm feito mais filhos que trabalho. Chegou o momento de acabarmos com os responsáveis e dirigentes que não são capazes de estudar para melhorarem os seus conhecimentos, mesmo no meio do mato, para serem cada dia mais responsáveis, mais dirigentes a sério. Chegou o momento de acabarmos com os responsáveis ou dirigentes que, quando se lhes
pergunta qualquer coisa sobre o seu trabalho, dizem mentiras. Chegou o momento de acabarmos com responsáveis e dirigentes que são capazes de prejudicar os outros para não os deixarem avançar, com medo que lhes tirem o lugar.”?

Mas se a vida privada dos militantes já era incompatível com a realização do “sonho”, a vida colectiva estava ainda em pior estado. Pois como realizar um simples sonho (e não o sonho de Cabral) de por exemplo educar os filhos se não se trabalha e não se produz nada? Mas os dirigentes em geral entendiam ainda que os seus actos tinham algum valor e serviam para alguma coisa. Mas a única coisa que faziam realmente era “ter reuniões”. Parecia que acreditavam que o facto de reunirem e tomarem decisões - quaisquer que fossem, não fundamentadas em nenhum estudo serio - era suficiente para o pais desenvolver. Era aquele mundo surreal de faz de conta que falei atrás. Vivia-se entre reuniões; as vezes um dirigente tinha três reuniões num dia. Pois se pertencia a três comités tinha que ir a todas. e não havia coisa que desse mais prestigio que ir a reuniões. as reuniões eram tão importantes que se houvesse uma reunião e um trabalhador não fosses convocado, em vez de ficar aliviado e aproveitar esse tempo para ir pescar ou ler, ficava chateadíssimo.  Quando o Comité Central do Partido reunia, durante dois ou três dias, o país parava; as reuniões eram noticiadas pela rádio e jornais com dias de antecedência, como se fossem desastres naturais ou qualquer coisa do género. Quando os militantes saiam dessas reuniões para ir almoçar ou jantar, saíam dali como estrelas do cinema. As pessoas paravam para vê-los. E eles orgulhosos de terem estado reunidos oito horas seguidas, iam jantar e voltavam outra vez, e num “sacrifício enorme” pelo povo, voltavam a “reunir” mais oito horas, até as três da manhã. O povo ficava impressionado: como reuniam! Como eram “reunidores” e “sacrificadores”.

Parecia que só sabiam fazer reuniões. Reuniões intermináveis que duravam horas e horas e não serviam absolutamente para nada. Hoje calculo que só 10% das decisões que ali eram tomadas servia para alguma coisa, mas nem esses podiam ser implementadas, porque sempre faltava meios para os implementar. Mas nada os demovia das reuniões que as vezes eram realizadas apenas para cumprir um calendário. As reuniões eram, as vezes, um objectivo em si, ou a maior parte das vezes. O povo acreditava piamente, numa espécie de “síndrome de Estocolmo”, que serviam para alguma coisa. Depois de algum tempo o povo também começou a reunir-se também; nos comités de bairro, nos locais de trabalho, nas escolas nos fins-de-semana; as pessoas em vez de produzirem, reuniam e discutiam. Discutiam e faziam a “crítica” e “auto crítica”; critica “construtiva” (era na verdade totalmente destrutiva), num enorme disparate nacional, que nunca serviu para nada, apenas para arruinar o país até as ultimas consequências, sem apelo nem agravo.

Claro que o nosso descalabro nacional não se resume apenas a isto; mas não pensem que estou a ser leviano, apressado ou mesmo simplista (já para não dizer a escamotear factos); mas este é apenas um pequeno texto e não um livro (que espero um dia escrever) e aqui infelizmente pouco mais posso dizer, pois mesmo estes meus “pequenos” textos são já olhados como muito “grandes” por algumas pessoas que eu estimo e adoraria que os lessem (aliás pela erudição de alguns, pensava que lessem obras de centenas e centenas de páginas). Além de que sobre este particular, se alguém se interessar, escrevi algumas coisas nos meus textos anteriores.

Para terminar direi que assim fomos andando (completamente à deriva) até chegarmos ao actual deserto Guineense que nos remete outra vez para a conclusão que chegou o biografo de Amílcar Cabral, António Tomás, quando diz: “E o que me chocou na Guiné foi sobretudo a desproporção entre o destino que Amílcar colocou sobre os ombros do seu povo e a situação em que hoje se vive.”. E não deixa de reafirmar esse pessimismo dizendo: “a Guiné ainda não encontrou o seu caminho e é provavelmente um dos mais pobres países do mundo”.

Sobre este epitáfio já disse antes, mas a palavra “provavelmente” é apenas uma delicadeza, pois é “de facto” um dos mais pobres, senão o “mais pobre” em algumas áreas pelo menos. Quanto a isso, não tenham duvidas, e nem percam o tempo a analisar; somos um país que nada significa para a economia africana, para não falar da economia mundial, nem em termos de produção nem em termos de exportação (ouso até dizer que economicamente não existimos).

Somos um país que nada significa em termos de desenvolvimento humano; a nossa contribuição para o desenvolvimento da cultura e da ciência africana e mundial é quase nula. Somos um país que ainda anda de chapéu na mão pedindo vergonhosamente pelos quatro cantos do mundo. Mas vergonha perdemos faz muito tempo, eu era ainda um rapazinho. Só vivemos de ajuda, todas as obras efectuadas são fruto de ofertas, ajudas e empréstimos que nunca pagamos. Há anos que andamos sempre em falta para com as nossas simples obrigações em contribuições para uma serie de organismos internacionais. Não temos capacidade de vigiar o nosso mar, de cultivar a nossa terra, de rentabilizar os nossos recursos naturais e todos os outros (como os quadros, os técnicos e recursos culturais), de urbanizar e desenvolver o turismo, a pesca e vários sectores de actividades, que por tanto tempo estarem inactivos já esquecemos que existem.

O ESTADO “MANDJUANDADE” E OS DINOSSAUROS DA LUTA DE LIBERTAÇÃO

Antes de ir estudar, com os meus vinte e tal anos, já na plenitude da minha capacidade de compreensão que, ainda possuo hoje, temia que quando voltasse as coisas não fossem melhor do que no presente. Pois qualquer estudante do terceiro ano do Liceu sabe que a lei da inércia postula que "Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento rectilíneo e uniforme, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças a ele impressas."; aquele nosso estado que igual a um corpo inerte assim permaneceria se nada fosse feito, mas eu não vislumbrava nenhumas forças capazes de empurrá-lo para o desenvolvimento. Mas tinha uma ténue esperança (e convicção) de que essa gente que nos desgovernavam, que criminosamente nos impediam de desenvolver como os outros países nossos vizinhos, um dia iram-se embora; pois a inexorável lei da vida, os levaria a reforma e libertariam o país das suas garras e deixariam o país às novas gerações que o devolveriam ao bom caminho.

Estava redondamente enganado: nunca “foram-se embora” e pior, nunca mudaram a sua triste mentalidade. Oito anos depois quando voltei da minha formação, continuavam lá, mais inertes que “pis cabalo” e como este saciando-se de tudo a sua volta, sem nada produzir. Trabalhei no país durante mais oito anos, até a eclosão da revolta de Ansumane Mané em 1998, e durante todo esse tempo continuavam lá. Continuavam a chafurdar no seu nepotismo, a colocar os filhos e netos (bisnetos?), sobrinhos e amigos aqui e acolá nas embaixadas, nas empresas, no aparelho do Estado. Desse fraco e inqualificável Estado que nem esse nome merecia. Pois era apenas uma mandjuandade de pessoas, ligados por certos interesses, sem nenhum projecto verdadeiramente nacional.

É sobre estes comportamentos nefastos e antipatriotas que o malogrado (também assassinado?) presidente de Moçambique Samora Moises Machel disse num dos seus discursos o seguinte:A corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca do conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade, e em particular dar preferência nos empregos aos seus familiares, amigos ou a gente da sua região fazem parte do sistema de vida que estamos a destruir.”

Mas eu estou a falar de quê? Quando começamos a pautar a nossa vida colectiva pela frase acima? O problema maior é que nos países desorganizados, economicamente dependentes, subdesenvolvidos socialmente, estes comportamentos não são nunca apenas um vício que pode ser tolerado, ou um desvio das normas sancionado com a reprovação geral. Pois eles tendem imediatamente a multiplicar e só podem ser parados por medidas draconianas (há países, como a Libéria, em que só foi possível acabar com este estado de coisas por fuzilamentos).

E este irresponsável comportamento não fica apenas restringida a esta classe de indivíduos (eram uma classe), pois os maus exemplos tendem a multiplicar-se mais do que os bons. E esta maneira de agir, como uma hídra foi-se espalhando pela nossa sociedade. Eu, que quando a Luta de libertação terminou, tinha 12 anos, vim a assistir vinte cinco anos depois, já técnico do Ministério das Obras Públicas, um recenseamento, feito nesse Ministério para determinar o número de “combatentes de liberdade da pátria” nos nossos efectivos. Foi estranho e surrealista até, pois havia combatentes “de liberdade da pátria” mais novos que eu aos molhos. Tinham combatido com três e quatro anos de idade, alguns; outros nem tinham nascido quando a Luta de Libertação terminou. Aquilo espantou certas mentalidades obtusas e consciências impreparadas; a mim absolutamente nada; era apenas o povo a reivindicar um pouco da sopa dos pobres do PAIGC. O nosso espelho “de ver” não deve ser os nossos dirigentes? Os Pais da Pátria? E se eles roubavam como saninhos, o que restava ao povo fazer? Respondam-me; comer capim? Eu não vos disse que ganhava 23 dólares e para vergonha minha tinha quase que ser sustentado pelos meus velhos pais? e eu era licenciado, imaginem então o resto da “malta”; na Guiné a “pouca vergonha” tinha deixado de ser um defeito humano para ser elevado a “Política de Estado”.

Hoje 39 anos depois da Independência, 31 anos depois do 14 de Novembro, 13 anos depois da Guerra de 1998 ainda estão aí. Rijos e valentes. A “governar” e a “aconselhar”. Com o apoio de muita boa gente. Sim, hoje, onze anos depois do novo século, ainda aqui estão. Tenho medo - eu que os conheci quando tinha onze anos - que quando os meus netos já forem homens feitos (pois a minha filha já é mulher feita), ainda estarão por cá, a “aconselhar” e a “governar”, para também infernizarem a vida deles como infernizaram a minha e as vossas. Pois se nem com a Guerra de 1998 saíram, talvez só sairão quando a juventude, o povo, sair para rua como nestes dias de ira, nos países árabes, para tudo destruir e leva-los na enxurrada. E assim a lama do Pindjiguiti cubra-os e aos seus pecados, para que por fim o povo posso respirar e tirar umas férias bem merecidas.

A TRIPLA TRAGÉDIA: A DE CABRAL, A DO PAIGC, A DO POVO GUINEENSE

A tragédia é que o PAIGC nunca realizou uma verdadeira mudança geracional. Radical e completa, cortando o fio umbilical com aqueles que não serviam. Com os que estão ultrapassados, com os que há muito deveriam ir para casa. Os velhos dinossauros da Luta de Libertação nunca permitiram a nova geração desempenhar um papel preponderante e normal como em qualquer sociedade sã.

Dez anos depois do fim da Luta de Libertação, há trinta anos atrás, já deviam ter pedido demissão dos cargos e retirado com honra e cobertos de glória. Mas não, preferiram acabar as suas vidas, assim, enlameados em escândalos, cobertos de sangue de seus companheiros, que estão a espera deles no outro mundo. Mas como podiam proceder de outra maneira? Pois tenho que aceitar que de facto eles sempre estiveram ali para o seu bem-estar e não para ajudar o povo. Na verdade consciente ou inconscientemente, eram o que antigamente, no tempo da Revolução Francesa, se chamava “os inimigos do povo”. Daqueles militantes que não pertencem e nunca pertenceram a esta categoria, daqueles que chamei “honestos e impolutos filhos deste povo, que foram a Luta, durante o mesmo, tornaram-se homens e mulheres melhores; infinitamente melhores na compreensão da sua dignidade de Guineenses e de seres humanos; na compreensão de que são parte de uma coisa grandiosa chamada Pátria que a todos unia”, desses falarei mais uma vez, mais tarde. Pois é necessário destrinçar, quem fez o quê; quem foi eleito; quem ajudou este povo. Não se deve misturar o que não se deve.

Se João Bernardo Vieira, depois de 14 de Novembro, num momento de lucidez e bom senso tivesse dito a essa gente manifestamente incompetente que o cerceava de todos os lados, querendo ser ministros e altos dirigentes da Nação, sem nenhuma preparação o seguinte: vocês não podem ocupar estes postos pois eles não me pertencem, são propriedade do Estado e a sua ocupação obedece a critérios rigorosos. Eu mesmo estou aqui tentando concluir o liceu ainda e já sou o Presidente da Republica e Secretario Geral de um grande partido histórico, o substituto de Amílcar Cabral em suma, o que é manifestamente exagerado e colossal para mim. E sei que os que me rodeiam não me dizem isso apenas porque através de mim esperam conseguir “tachos” e bons postos no Governo. Mas eu não sou burro (e não era) e percebo isso muito bem, embora não diga nada. Mas se vos nomear a vocês, as coisas vão piorar ainda mais. Vocês não me ajudarão em nada, nesta já minha difícil tarefa, e só me darão problemas; pois se eu tomei o poder, não é para fazer pior que o meu antecessor, mas melhor.

Com o carisma e respeito que tinha na altura, podia reformar muita gente que até agora, continuam a lutar por postos) e manter apenas aqueles (que todos nós conhecemos pela sua competência, probidade e bom senso) que ajudassem o País a dar um salto em frente. E assim patrioticamente e com moderação, faria uma boa coisa que o anterior presidente nunca seria capaz de fazer, por motivos vários que falarei a frente. Infelizmente para o povo (e para o próprio Nino Vieira) tal não aconteceu.

Na verdade muito antes desse instante, Cabral devia ter explicado essa gente que mais importante que libertar o povo, é preservar o povo. Pois um povo pode perder uma guerra, não ser livre, ou ser colonizado por outro mais forte (estas condições as vezes fazem com que esse povo tenha mais consciência de si, enquanto povo, do que quando é livre), mas se preservar as suas “instituições”, a sua cultura, a união nacional e nacionalista de todos os seus filhos, quando se libertar será mais forte do que antes. Mas no outro extremo, um povo livre (como o nosso), que se decompõe e fragmenta-se por culpa exclusiva dos seus dirigentes, está pior do que o primeiro.

Mas será que não explicou? A própria Luta de Libertação Nacional não é em si uma explicação? Não foi uma explicação que baste? Luta de Libertação Nacional: Lutar para libertar o povo: lutar para que o povo tenha uma nação. Lutar e morrer se preciso for para trazer o progresso e felicidade ao povo.

Qual é a parte da frase “Luta de Libertação Nacional” que não compreenderam? Como explicar de outra maneira? Metendo uma bala na cabeça de cada um deles, como fizeram com ele e com tanta gente inocente depois? Mas seja como for, sendo este o Partido fundado por Amílcar Cabral por um lado é difícil de entender como que o Partido que devia ser mais aberto, mais cosmopolita, mais progressista e aberto as influencias da modernidade mundial, pelo contrario, revelava-se nessa altura ainda recente, um Partido retrógrado e ultrapassado pela história e pelo nosso povo. Ainda com uma mentalidade dos anos cinquenta, anterior a Luta de Libertação, anterior a Cabral. Contra os ensinamentos de Cabral, contra a figura e o legado de Cabral, que hipocritamente continuavam a apresentar como seu Guia Imortal. É também fácil de entender que os que apossaram do ceptro de Cabral nunca tiveram nada a ver, e nenhuma relação, seja ideológica ou formal com este. E que foram as práticas vergonhosas anti-cabralistas desse partido que nos levaram para o abismo.

Digo isto sem nenhuma satisfação, pelo contrário, apenas com pena, pois esse Partido pela glória com que se cobriu no tempo de Cabral, merecia outro destino. Nós tínhamos tudo para vencer, só não vencemos porque fomos mal governados desde o primeiro dia. Graças a Cabral, não éramos apenas mais um país em África, como muita gente pensa; éramos o País daquele povo que demonstrou que se pode vencer o colonialismo europeu pela força das armas no campo da batalha. Mas não estávamos “limitados” a isso, podíamos vencer também politicamente, com razões morais e históricas em todos os fóruns internacionais, graças a liderança clarividente deste homem.

Esse que se tivesse sobrevivido e realizado por fim o sonho, todas as vidas perdidas, todos os sacrifícios consentidos, teriam por fim uma justificação e mais que isso, teriam a honra de terem caído por algo perene e sagrado; pois a liberdade e sobrevivência do povo nunca é conseguida facilmente, exige sacrifícios tremendos, e até a morte de companheiros (há que dize-lo); mas aos vivos, em seu tempo, exige-se também que esses mortos sejam honrados; exige-se que façam com que estes não tenham morrido em vão. Isto é o mínimo que se pedia a quem de direito. E a minha revolta com o modelo implementado pelo PAIGC desde 1974 no nosso país, advêm também de entender muito cedo que a asneirenta tragédia que estava a tentar ser implementada na nossa terra iria custar caro a várias gerações futuras. Por isso falei anteriormente de conspiração baseado no pressuposto de ninguém deu algum poder - seja poder temporal, seja direito espiritual ou moral - a “essa gente” para tomar conta do País e realizar todas as nefastas experiencias que entenderem à revelia do bem-estar do povo, apenas pelo a seu “bel-prazer”.

ONDE TODOS SÃO CULPADOS NINGUÉM O É

Preciso aqui dizer de novo que não podemos por toda a gente no mesmo saco? Não é suficiente, para alguém que lê estes textos com atenção, entender que aqui não se trata de “escrever por escrever”, “acusar por acusar “ ou “denegrir por denegrir”? É necessário permanentemente dizer que muita gente que foi a Luta e tornou-se dirigente neste país desempenhou as suas funções com honra e dignidade e deu o melhor que podia dar e fez o melhor que sabia e as vezes com o risco da própria vida foram contra as politicas nefastas do seu próprio Partido e de outros dirigentes? Dizer que alguns preferiram abandonar a própria Governação, outros, o próprio país, em desacordo com os regimes tanto de Luís Cabral como de Nino Vieira? Alguns que continuaram no Governo porque acreditavam ingenuamente, que sem eles, o descalabro seria maior e a ocupação de postos pelos incompetentes das suas fileiras seria terrível? Ou aqueles que pensavam que tinham um dever para cumprir por isso não podia sair? Ou aqueles que tinham apenas medo de ficar mal vistos? Preciso enaltecer mais uma vez o sacrifício e patriotismo de tantos e tantos que deram a vida nas fileiras do PAIGC como tenho aliás feito? Preciso chamar seus nomes? E nomes que não conheço, vidas que vindos do interior do PAIGC foram também desperdiçadas, vilipendiadas e destruídas, sem que os seus companheiros de Luta levantassem um dedo para os defender?

Para os que me lêem pela primeira vez, digo que estive dez anos calado, vendo todas as barbaridades acontecer com o meu povo, com o meu país. Como eu, milhares e milhares também ficaram calados. Mas hoje escrever tornou-se um dever para mim. Porque somos todos, mesmo que involuntariamente, responsáveis desta desgraça de que se fala nestas páginas. A culpabilidade de cada um é diferente, mas nos vários graus de responsabilidade que há, facilmente encontramos um onde cabemos por inteiro. Houve, é certo, os que destruíram objectivamente o País por maldade ou incúria; ouve os que destruíram por manifesta incapacidade, sagacidade e incompetência para os postos que ocuparam. Mas mesmo os que “batiam palmas nas reuniões de “Comités” de bairro, os que ficaram a ver a impunidade, o nepotismo, o crime a tomar conta deste pais, sem mexerem um dedo, todos têm a sua dose de culpa.

Mas repito: “a sua dose”, apenas a sua e não dos outros. Para que me entendam: se eu não escrever agora, de forma a ajudar o meu país, a “minha dose” particular de culpa aumenta; e isso independentemente das consequências que tiver que sofrer. Por isso quando disse anteriormente “todos culpados” devo ser entendido na acepção de Hanna Arendt que alertava para o facto de que nunca devemos aceitar a culpa colectiva, pois “onde todos são culpados, ninguém o é” na verdade. Mas nós sabemos que há culpados; sabemos quem foram os que destruíram as nossas vidas pessoais, a nossa Nação, a nossa Pátria e o futuro do nosso povo. Por isso nunca devemos cair na tentação de permitir (para depois aceitar) as “confissões de culpa colectiva” pois “são a melhor salvaguarda possível contra a descoberta dos culpados”. E nem desistir de saber, de condenar e execrar, perante a extensão do crime, pois as vezes, é “a própria extensão do crime a melhor desculpa, para não se fazer nada”.

Disse atrás que há pessoas que eram e já não são meus amigos “pois eu escrevo coisas que para eles é mau” ; claro que sabem que nada que digo é mau; há apenas aqui há uma questão de “natureza humana” a por na balança o que pode perder e o que posso ganhar. Pois no fundo eles não querem que “tudo fique na mesma”, porque ninguém quer ser chefe num deserto, ninguém quer que toda a gente interessante vá embora - ninguém quer que não tenhamos escritores, poetas, pintores, cineastas, dramaturgos, músicos etc. (qualquer dia nem meninas bonitas sobrarão neste país e será preciso ir ao Senegal para arranjar mulher) - mas têm medo de que se tudo “não fique na mesma” eles venham a ser perdedores. Mas estão enganados, não necessariamente as pessoas ficam mal num país melhor, devia ser o contrário; e espero que aqui na Guiné do futuro, um dia seja precisamente o contrário.

Mas é este pensamento que é o embrião de todas as torpezas e malfeitorias. Pois enquanto penso em mim e em minha gente, não penso no outro e na sua gente. E não só não penso, como denigro e tento destruir. E assim pouco a pouco este país, ano após ano, foi se transformando naquele deserto que um dia, nos idos de 97 - tendo atravessado S. João, de canoa, e chegados a Bolama, sentados naquela praça central, totalmente deserta - um Alemão estranhando a arquitectura e urbanismo daquela urbe, totalmente abandonada pelos poderes públicos, me disse que talvez a população não tenha uma cultura urbana própria para viver nesse tipo de espaço. Querendo com isso dizer que por isso a praça não era usada pelos moradores e as casas abandonadas, a cair de podre. Lhe disse que não era isso, pois esse abandono eu vinha observando em Bafata, Gabu, Bissorã, Cantchungo e em quase todas os centros urbanos do país que  a mercê de asfixia económica vão morrendo pouco a pouco. Essa urbe nascida em 1871 chega a cidade em 1913 como capital da Guiné, era uma cidade cosmopolita, cheia de vida e progresso. hoje os filhos de Bolama estão por toda a parte do mundo, da América ao Canada, de Portugal a Escandinávia e só não estão em Bolama.
Mas como agora “ninguém ficou”, assim velhos e novos, mais culpados e menos culpados, todos que podem querem sair deste nosso país. Isto tudo é tão surrealista que nem lembrava ao Salvador Dali. A mim faz lembrar àqueles filmes americanos de ficção científica em que os extraterrestres de uma galáxia qualquer depois de terem consumido todos os recursos naturais e destruído todas as fontes de regeneração da mesma, metem-se em naves a conquista de outro planeta para onde se transferirem e consumirem os recurso. Pois de igual modo, parece que alguns, depois de terem roubado tudo que havia para roubar, destruído e todas as fontes de regeneração do nosso país, os velhos dirigentes agora procuram outros planetas para habitar.

Então de repente toda a gente resolveu ser diplomata. Eles e as respectivas mulheres, filhos e netos. Afinal eles “descobriram” que estranhamente (para a Guiné), o diplomata ganha bem, e os países estrangeiros são todos (todos sem nenhuma excepção) melhores para viver que o nosso que já destruíram totalmente. Mas não são apenas os velhos “camaradas de luta” que procuram saídas, pois também existem os “novos camaradas de Luta” que nos anos que antecederam a guerra de 1998 e depois nos anos do descalabro e confusão “amealharam” fortunas, roubadas em manigâncias e com essas fortunas agora pretendem viver em paz no estrangeiro, sendo diplomatas, representantes, etc., e de vez em quando irem de férias para o nosso destruído país dizer umas banalidades. Até fico com impressão que meteram na cabeça que este país lhes pertence, por algum direito divino (ou direito do salteador), por isso podem fazer o que entenderem e deixarem de entender. E hoje em dia, alguns até que foram eleitos, mas outros ainda continuam, mas outros nada disso, apenas a lengalenga estafada de “n`bai Luta.

Já é hora de tirar de uma vez para sempre da cabeça essa nefasta compreensão de que existe “quem foi a Luta e quem não foi”. Pois a verdadeira herança da Luta sempre ultrapassou os simples homens que estiveram envolvidos na sua aplicação.

E alguns, poucos, que procuram um caminho para voltar são raros e têm muita dificuldade. Pois, falando do próprio exemplo, desde que vim para esta diáspora - pois emigrar é uma coisa, mas quando somos expulsos do país por bandidos e selvagens que fazem uma guerra no meio da cidade (para não dizer “santchos na fassi santchundadi” como um amigo dizia) por despojos de um país e herança de um povo que não lhes pertence, isso é uma diáspora – procuro um caminho de regresso que nunca consegui e que em virtude dessa procura perdi quase tudo que consegui, confiando em Guineenses aldrabões, tentando sociedades e negócios que nunca deram nada. Pois habituados a essa vida de aldrabice, nela continuam, sem respeitar nada e minguem.




QUARTO INSTANTE
ABASTARDAMENTO DO POVO

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu carácter

Martin Luther King, Jr.
In ,"I Have a Dream"



Estou de novo nesta sala da FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, é quase noite, a tarde está partindo, nesta cidade de Lisboa, que já começa a esfriar; daqui a pouco a sessão vai acabar; as pessoas fazem as perguntas de praxe; inofensivas, inócuas; perguntam o que se espera que perguntem. E recebem as respostas, que se esperam que recebam. Outros perguntam por perguntar, perguntas sem resposta. Perguntam por coisas de que já sabiam as respostas. Mas mesmo assim perguntam, como num ritual. Outros não perguntam, apenas fingem perguntar, para poder explanar a sua sabedoria e nos iluminar um pouco do seu imenso saber. Mas devíamos estar todos calados, tanto os que perguntavam, como alguns que respondiam. Os perguntadores e respondedores, pois a hora era de termos todos alguma contenção e escutar o velho amigo de Cabral, que como que indiferente a tudo e a todos, continua a falar; as lembranças surgiam pouco a pouco arrancadas a custo das paredes da alma. O que Cabral lhe disse no aeroporto de Argel, na academia Militar na Rússia, no seu pequeno apartamento na capital Argelina, no caminho, de carro de aeroporto a casa, etc., contava tudo isso, normalmente, sem demonstrar nenhuma admiração “deslumbrada” em relação a Amílcar; nas suas palavras apenas se apercebia dor pela perda, respeito e o orgulho de ter feito parte, de uma forma ou de outra, da gesta de Cabral.

OS OUTROS CABRAIS QUE TAMBÉM FICARAM PELO CAMINHO

Velho combatente, os teus velhos ossos estão pousados nessa cadeira, os ossos dos outros combatentes que não puderam ser velhos, estão espalhados pelas florestas e matas da Guiné. Você esta desiludido, eles não. Não viveram o suficiente para serem velhos; não tiveram tempo para se desiludirem; Deus poupou-os da vergonha. Nunca saberão o que é a dor de corpo, a dor da velhice. Nunca experimentaram o desengano; e felizmente não souberam que nunca houve “amanhã”.

Neste momento, como aqui nesta Fundação, há sombra na mata de Cantanhez, os pássaros chilreiam e o fumo da mata, que queima de mansinho, vai cobrindo o sol pouco a pouco; e nessa penumbra que cobre de tristesa esse remanso, os espíritos repousam e recordando o passado feito presente. Pois quem já morreu não tem passado, só os vivos. De repente a voz de um deles surge dentro da morte e chama - baixinho, quase num sussurro, para não espantar a “alma beafada” que debica uma fruta encima da sua campa há muito desaparecida, debaixo de folhas secas de mangueiro: – Ninaté! Ninaté!

A velha estrada separa as suas campas. Sempre juntos em vida, agora repousam na morte, separados pela estrada velha. Onde raramente passa alguém. Enterados separadamente de lados opostos da estrada, os que os enterraram não sabiam da sua amizade: mas a mata e o capim pouco a pouco vão cobrindo a estrada velha, e um dia estarão de novo como em vida, e no dia da morte, do mesmo lado; pois não mais haverá a estrada para os dividir.

-Am!!! I ké?- responde um que em vida respondia por esse nome. Falam em crioulo, a língua com que sempre comunicaram um com o outro, pois são de etnias diferentes. Aliás, pensam que falam em crioulo, mas na realidade no mundo dos mortos não existe crioulo, nem, mandinga, a língua que deu as palavras ao crioulo, só se fala pelo pensamento, pois os espíritos não têm língua.

- Ma… Baio ca muri? (será que Baio não morreu?)

- N ka sibi, ma se té gosse no ca papia ku el, i pabia i bibo inda… (deve estar vivo ainda, se não conseguimos falar com ele)

- Nka sibi dé; ba djubi i muri na utro lado… (vai ver que morreu longe daqui)

- kila i ka nada; si muri, nó na ojal… li nê lado pali, lundju ca tem (se morreu havíamos de saber, aqui não existem distâncias)

- El i konta dé… Cuma i na odja Cabral ku si dus udjo; to ki na dal mon, son si ca el.. (ele jurou que havia de conhecer Amílcar Cabral e apertar-lhe a mão)

- Será que ganhamos a Guerra? Será que Baio chegou a conhecer Cabral?

- Não sei! El ku Issa é fala bá cuma si guerra caba é na bai Fulacunda um biass. Cuma la ke é na bai raposa. (ele e o Issa diziam que se a Guerra acabar iriam para Fulacunda para descansarem (repousarem) para sempre.

- Raposa?

- Issa cuma assim ku brancus de Guiledje ta fala “discansa” (Issa disse que assim é que os portugueses de Guildeje dizem “descansar”)

- Ma Issa i ca di Fulacunda dé; e di Sintcham N. lá ki padido…

Ainda estão fardados; e ainda seguram as suas AK-47. O Sol está a desaparecer para os lados do rio. O pássaro assusta-se e parte para os céus. O silêncio grita nas suas almas e a noite cai entre os dois amigos … Morreram no mesmo dia, no mesmo combate, ambos soldados que ainda não tinham galões. Ninguém sabia as suas idades, foram para a Luta antes de completarem vinte anos e morreram antes dos trinta.

- Será que Cabral agora é Presidente?

- Claro; quem pensas que iria estar no seu lugar? Mas ele ensinou-nos que isso não interessa para nada; não é o lugar ocupado que interessa. O que interessa é o que fazemos nesse lugar; ou não é assim Umaru?

- E sim dé Ninaté… quando é que ele ensinou isso? Nundê? Esquece, o que interessa é que “nô paga nô quinhom, pa ki povo nunca mas ca lebissido”. (o que interessa é que cumprimos o nosso dever para que onosso povo nunca mais seja desrespeitado)

- Tens razão, nó paga nô quinhom, pa ninguim mas ca explora nó povo; pa ninguim mas ka disquici cuma Cabral i balanta… (tens razão; cumprimos o nosso dever para que nunca mais se explore o povo)

É noite cerrada para os vivos; para os mortos o tempo é sempre igual. Nem noite nem dia; algo entre o dia e noite do fim da tarde, ou entre a noite e o alvor das seis da manhã na guiné. Estes nossos mortos, só vivem de lembranças, das lutas, do dever cumprido, de saberem que fizeram o que deviam; de outro modo a eternidade seria terrível de suportar. Mesmo na sua terra, na sua maravilhosa terra, na terra dos seus antepassados.

 Agora -nesta hora que não é dia nem é noite, que já não é dia por este ja ter partido, mas enquanto o tempo espera, a noite que demora a chegar -, essa terra toma uma cor dourada, amarelando a água das bolanhas. É a queimada silenciosa que de tanto permanecer já esta quase apagando. Amanhã é dia de semear; amanhã meninos correram por cima das suas desconhecidas campas de soldados desconhecidos e plantarão arroz novo… e no fim do dia matarão a “alma beafada” que ainda não tinha apreendido a ter medo dos homens, nem das crianças…

- Ca bu medi nada, um dia nô na pudi bim tchomado tam… kilis ku ka ta muri… (não receies nada, um dia será feita a justiça e seremos…

É Ninate que fala depois de um longo silêncio; o vento leva a sua voz que se perde nos confins do tarrafe, e atravessa célere as bolanhas, os matos e por fim o rio oceano, até ao mar oceano, atravessa um chamado Atlântico e ao chegar a um lugar chamado Cais das Colunas, num país chamado Portugal, para descansar um pouco no Terreiro do Paço; mas como ali agora não há bancos para repousar, não se detém, para por fim atravessar Lisboa e entrar pela grande janela da FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES, a tempo de o velho combatente da Liberdade que continua a falar, ouvir num sussurro a última parte da frase:

… seremos …imortais) … nó na rispitado també suma Cabral aós um dia (um dia seremos como Cabral hoje; seremos também respeitados).

Por fim na FUNDAÇÃO, o velho combatente silencia a sua voz, por respeito aos jovens combatentes mortos.

Tanto disse, em tão pouco tempo, que não dá ainda para dissecar. Dizem que se tivessem gravado tudo o que Jesus Cristo disse, essas palavras caberiam em um simples cd de duas horas. Não é o dizer muito que faz a diferença, mas o que é dito. Jesus morreu pela humanidade, pelos homens; sorte tiveram os homens. Cabral e os combatentes da liberdade morreram por todos nós; sortes tiveram os Guineenses. Nós que aqui estamos, talvez não valemos nada, mas mesmo assim, pessoas morreram por nós. As vozes dos nossos combatentes, mortos por nós, continuam a ressoar nas paredes da FUNDAÇÃO. Só quem não queria, é que não as escutava.

AS VACAS DE TOMBALI VERSUS VACAS DE BISSAU OU ERGUENDO BUSTOS DE AMÍLCAR CABRAL PELOS RIOS DA GUINÉ OU DERRUBANDO MARIA DA FONTE E IDEIAS ERRADAS OU A CIDADE SENDO CONQUISTADA PELA TABANCA

Antes de continuar preciso mais uma vez esclarecer um ponto: Já afirmei várias vezes que as minhas modestas reflexões, são pontuadas com narrativas sobre factos reais passados na Guiné, que feliz ou infelizmente assisti ou participei, durante vários anos, não apenas para tornar a leitura dos meus textos menos penosa ou mais agradável, embora tal não deixe de ser verdade. Mas também tomei a decisão de escrever sobre eles por entender, como já disse antes, que num país jovem como o nosso, ainda sem muitos instrumentos de afirmação nacional como a sua própria Historia, o nosso imaginário colectivo, a nossa própria história comum, é ainda feita de historias particulares de cada um de nos.

Mas também por uma questão de concisão, pois a partir desses acontecimentos vividos na primeira pessoa (eventos em que participei pessoalmente voluntaria ou involuntariamente), presenciados ou relatados a mim por terceiros, é que surgiram muitas das minhas convicções, sentimentos, o meu credo e a própria “decisão de escrever” nesta altura da minha vida.

Mas não quero ser mal entendido, desnecessariamente, naquilo que digo. Não por temer alguma forma de represálias, mas para poder andar de cabeça erguida e depois não ter que pedir desculpas por ter sido injusto com pessoas inocentes. Pois no fundo apenas procuro o bem de todos nós, da nossa terra e do nosso povo. Cada um deve fazer o que deve (e pode) para mais cedo chegarmos a este desiderato. Se pelo caminho procuramos justiça, devemos saber também que acusar é fácil, e num instante pode-se destruir reputações construídas durante anos.

E se criticamos, é porque não devemos e nem queremos ser como aqueles que criticamos. Se eles não respeitaram a pessoa humana, nós devemos respeitar; se não amarem o povo devemos amar. Por isso, tudo que escrevo - poderia faze-lo de “cara tapada”, como muita gente por aí - também o faço por respeito a meus ancestrais e a mim mesmo; e não o teria se escrevesse escondido atrás de pseudónimos.

Mas não o faço apenas, por ter obviamente coragem de o fazer, mas por respeito a essas pessoas que acabei de frisar, que sacrificaram a sua juventude para dignificar esta terra, por aqueles que um dia farão deste país um lugar melhor, pelos jovens que precisam de uma orientação na vida e por todas outras que já não estão vivas infelizmente.

Mas não sendo ingénuo, sei que o que escrevo pode originar eventualmente, incompreensões de vários tipos e quadrantes. E a incompreensão pode originar também dúvidas não só de índole existencial, assim como também intelectual.

Há tempos fui acusado de ser Marxista-leninista, e só não respondi a acusação porque a pessoa escondia-se atrás de um pseudónimo, e como devem calcular, por aquilo que penso e disse sobre esse procedimento, que acho indigno, não podia estar a polemizar com um “fantasma”, por mais interessante e fundamentada que fosse a acusação.

Pois não é “justo”, alguém de “cara descoberta” (aceitando as consequências possíveis), discutir com outro que se esconde sob uma falsa identidade (fugindo de todas as consequências possíveis). Só por isso não respondi a esse indivíduo; pois aquilo que ele escreveu, podia também ser o pensamento de outros; mas embora correndo o risco de ser mal entendido o meu silencio ao não responder, infelizmente, o que disse da primeira e última vez que respondi a um leitor sobre a ética de falar com “cara coberta” aplica-se a este senhor (na verdade nem sei se é homem ou mulher) também; pois não honesto, nem é digno polemizar com alguém que não tem a coragem suficiente de dar a cara pelas suas ideias ou palavras, mas acha que tem o direito de opinar sobre o que outros que de “cara destapada” escrevem e assumem as consequências.

Mas esta gratuita acusação fez-me graça e fez-me lembrar do antigo Presidente Senegalês Leopold Sedar Senghor, que quando quis permitir que jovens senegaleses fossem estudar na União Soviética, lhe avisaram do risco de voltarem dali comunistas; ele com sabedoria de quem conhece bastante esta vida, lhes disse o seguinte: se querem fazer de um jovem, um anticomunista ferrenho, mandem-no estudar na então União Soviética.

E nisso tinha certa razão, pois vivendo ali, convivendo todos os dias com esse povo, só um perfeito idiota que não se daria conta do monumental disparate mundial que estava a ser realizado a frente dos nossos olhos. E estou falando de qualquer estudante, sem mesmo destacar pessoas com uma capacidade de análise superior, que permitia ler entre linhas da imprensa oficial e entre palavras não ditas de amigos, namoradas, esposa, familiares e colegas de turma russos que tínhamos.

Mas como um homem com medo não pode escrever - não era o E. Burke que dizia que o medo era o mais ignorante, o mais injusto e cruel dos conselheiros”? - não sendo tão inteligente como ele, direi apenas que há muito que percebi que o medo é também inimiga da criação. E desde os meus tempos da Rússia Soviética que observei que nos países onde reina o medo geralmente não há criação.

Por isso apenas digo que o velho Marx, e a teoria marxista nada tinham ou algum dia tiveram a ver com os crimes, disparates e desvairos de Lenin e Stalin. O bolchevismo e marxismo são visceralmente contrários e mutuamente incompatíveis. Assim como a teoria de Amílcar Cabral nada tinha a ver com a prática do PAIGC. O cabralismo e o paigeceismo eram, e continuam a ser, visceralmente contrários e mutuamente exclusivos.

II

Já depois de voltar da minha formação no exterior, trabalhando no Ministério das obras Publicas, uma vez tive como missão instalar o busto de Amílcar Cabral em Bafada. Foi a primeira vez que pensei em Cabral realmente como um simples Guineense e não como um herói. Para escolher o lugar onde ficaria o busto (embora não fosse uma decisão minha, mas eu como técnico devia dar o meu parecer) fui visitar a casa onde nasceu, e o resto da cidade que já conhecia desde os meus tempos de escola, pois fui lá passar ferias duas vezes na casa dos meus tios. Fui ao monumento jugoslavo dedicado a sua obra, para por fim decidir pela praça do mercado. Imaginei-o menino correndo descalço por essas ruas, atrás de uma bola de trapo e percebi que o homem quando possui força de vontade suficiente, não tem limites.

 Conto este episódio da minha vida, porque foi a primeira vez que “cruzei” com Cabral nesta vida; mas também porque ao aceitar essa missão iria testemunhar algo que mudaria a minha personalidade para sempre. Confesso que era uma missão, com todas as suas dificuldades, gratificante para mim, pois quis o destino, que eu fosse eu a pessoa que ia implantar o busto do Fundador da Nacionalidade na sua cidade natal. Era emocionante, independentemente da canseira imensa que viria a ser, pois naquela altura, naquela idade, isso era muito importante para uma pessoa com o meu carácter e formação. Avisaram-me que tinha que me desenrascar sozinho, pois não havia dinheiro (como habitualmente para coisas realmente importantes nunca havia dinheiro) e eu tinha mais ou menos uma semana e meia para realizar esse trabalho.

No dia seguinte, eu e o Umaru (nosso condutor) fomos buscar ao “nosso Amílcar” à sede do Partido, e embrulhamo-lo melhor que pudemos para o proteger da viagem e metemo-lo no Geep, e sozinhos, sem nenhuma outra ajuda arrancamos para cidade de Bafada para ir realizar a missão.

Havia três bustos que há muito se encontravam mofando, cobertos de pó na sede nacional do PAIGC na Praça dos Heróis nacionais, a espera de melhores dias. Nesse ano as “altas instâncias” do Partido e Governo de então, tinham decidido que um dos bustos deveria ser colocado no “Pindjiguiti” em Bissau (a capital), outro em Bafada (berço de Amílcar) e o terceiro em Catió (onde decorreria a cerimonia central de homenagem em comemoração ao seu nascimento.

Como tinha um orçamento reduzido (pouco menos que dois mil dólares em moeda nacional), tinha que “desenrascar-me”. Ao chegar a Bafada, aconselharam-me um empreiteiro local, que contratei por ter sido formado por nós em Quinara, no quadro do Projecto; e assim inspirar-me mais confiança. Tendo alguma influência, escolhi como local de implantação a praça do mercado e não o terreno a frente da casa onde nasceu, como alguns responsáveis queriam. Pois sendo a feira um ponto de encontro por excelência de toda a população da cidade e arredores não podia haver sitio mais central (aqui a minha mentalidade de urbanista também influenciou a decisão). Chegados a um acordo, expliquei o empreiteiro quase pedindo desculpas em que situação me encontrava. Para mostrar a minha boa vontade e confiança que depositava nele, e face a urgência, entreguei-lhe de uma só vez, todo o montante destinado a obra (também o dinheiro era tão pouco que nem dava para dividir por três tranches como habitualmente fazíamos para controlar a execução de obras). Mas isso não o impressionou nem um bocadinho. Achou que o dinheiro nem para o pedestal do busto, chegava (e eu queria ainda pintar toda a fachada da feira e cimentar a parte onde o pedestal ia ser erigido). por fim depois de o ir buscar pessoalmente na casa de sua comadre num dos bairros de Bafada (rua Porto?), aceitou por fim, mas pediu-me que lhe arranjasse ajudantes; dizia que com esse irrisório montante só podia pagar um, e ele mesmo teria que trabalhar como pedreiro (coisa que manifestamente não queria).

Vendo as dificuldades que se acumulavam, sem saber ainda como resolve-las, ainda liguei para o Ministro pedindo ajuda: mas ao que parece ele estava ainda pior do que eu, e não me podia ajudar em nada. Reuni-me com o Governador da região, e falei-lhe sobre a possibilidade de usarmos os prisioneiros de delito comum (havia muitos nessa altura na prisão local e nada produziam, pois não havia um sistema organizado de usar prisioneiros em trabalhos cívicos) para fazerem um trabalho para a comunidade, que era cimentar, limpar e pintar a praça em frente da feira e ajudar a fazer blocos para o pedestal que ia levar o busto. Recusou liminarmente, dizendo que não tinha coragem para tal, pois a Liga dos Direitos Humanos e outras organizações iriam “cair sobre ele”.

Enfim sai dali decepcionadíssimo, com mãos a abanar, eu a lutar para melhorara a cidade deles e ninguém a querer ajudar. Até hoje não sei como consegui, numa semana e meia erigir esse busto em Bafada. Ainda por cima pintei a feira e consegui por luzes na fachada e lâmpadas no chão, ao lado do pedestal, para a noite projectarem claridade no busto. Foi uma semana que não dormi mais que duas a três horas por dia; e a justiça seja feita, também o Umaru; e nada tinha para lhe pagar tirando palavras de agradecimento. Trabalhávamos na feira até a meia-noite e arrancava para Bissau para ir dormir (não tinha dinheiro para pagar uma pensão em Bafada, embora tivéssemos combustível que conseguimos através dos alemães de Buba) e outro dia cedo punha-me a caminho outra vez para voltar a Bafada; isso durante sete dias seguidos. Naqueles dias não sabíamos o que era uma refeição decente. Passava a vida a comer carne de cabra “ilado”. E não parava um instante, ia arranjar material eléctrico em Buba (pedindo ajuda aos alemães do projecto), arranjar gerador emprestado em Gabu, consegui alguma tinta branca em Bissau (acho que num armazém do Ministério das Obras Publicas); se bem me lembro falei com uns rapazes e do bairro de Nema ou Ponta Nobo (?) a ajudar a peneirar areia e fazer tijolos juntamente com o empreiteiro; já não me lembro de tudo, mas assim aos tombos, a luz de projectores improvisados, trabalhando até a meia-noite e as vezes mais, como disse. Assim conseguimos terminar dentro do prazo, que era o dia do aniversário do nascimento de Amílcar.

E no dia da inauguração que seria feita pelo Presidente da Assembleia Nacional (naquela altura Malam B. Sanha) ficamos a caiar as paredes da feira e pintar o pedestal até as quatro e meia da manhã. Para por fim entrar no carro e chegar a Bissau já com Sol alto. Fui para Bissau cansado mas com a satisfação do dever cumprido (tinha esperança de poder tomar um banho, vestir um fato, e voltar ainda atempo da cerimonia oficial de inauguração; mas tal não foi possível, pois o condutor ao deixar-me para descansar um pouco, tomar banho e mudar de roupa, foi também descansar e não apareceu mais, por motivos que não cabem aqui; quando acordei e ele não estava a minha espera, liguei para O ministério e soube que a delegação do Obras publicas já tinha partido). Assim fiquei em Bissau sem maneira de lã chegar. A noite a minha mãe chamou-me para ir ver a inauguração que estava a ser dado pela televisão (na altura ainda vivia na casa dos meus pais, pois nem possibilidades de alugar uma casa tinha). Quase com lágrimas nos olhos (de satisfação) fiquei a ver e a ouvir os discursos, o cortar da fita. Como desejei ter estado ali; sentia um misto de orgulho e de decepção. Orgulho de ter realizado algo de gratificante e decepção de não assistir o coroar da minha obra.

A noite Umaru que também viu a transmissão em Pilum, apareceu me visitar a fim de contar o que também tinha visto na TV; como a falta de luz era permanenete ele não sabia se na minha zona foi possível ver a transmissão. Estava  triste e zangado, pois doeu-lhe tanto como eu ou mais, termos trabalhado tanto, e ninguém reconhecer de uma forma ou de outra; disse que nem nos mencionaram nos discursos da autoridade local, para que alguém saiba que o monumento, que se inaugurou nesse dia, também foi obra nossa. Acho que tinha lágrimas nos olhos; tive tanta pena dele. Tinha razão de chorar, trabalhou incansavelmente dia e noite; foi e veio comigo de Bafata todos os dias, infatigável, também comendo e dormindo mal, pior que eu, sem se queixar; e sei que (pelo seu carácter) ele gostaria muito de participar nessa festa do povo de Bafata. Disse-lhe que a vida é assim, que os trabalhos realmente importantes são geralmente feitos por outros que nunca “aparecem na fotografia” e bla, bla, bla… Como pareceu não acreditar em mim (e lamentou o facto de eu mesmo não poder ter ido), para o animar lhe disse que para mim estava tudo certo, pois na verdade o trabalho que fizemos ia para além da inauguração ou festejos de um dia; e que o grande ausente não fomos nós, mas o próprio Amílcar. Ausente da inauguração, da cidade e da nação.

Não sei se “nha sabi boca” das minhas palavras mitigaram a sua dor, mas sei que nesse dia consegui enganar a mim mesmo. Mas hoje depois de dezenas de anos, sempre que encontro um natural de Bafata em Lisboa pergunto se a minha estatua de Amílcar ainda lá esta; e quando me dizem que sim, não consigo conter-me (por mais que tente) e digo sem nenhuma modéstia: eu participei na sua implantação! Geralmente não acreditam pois nunca me viram em Bafata, mas não importa; não é isso que disse ao Umaru? Só espero um dia ver esse busto de novo e tirar uma foto atrasada de 15 anos, antes de morrer.
III

Mas vamos deixar Bafata e suas hospitaleiras gentes, para continuarmos para o Sul profundo, pois ainda não chegamos no que é verdadeiramente importante. Acontece que, eu e o Umaro, também participamos nessa mesma semana de que vos falo, nos trabalhos de Catió, onde também foi posto um busto que viria a ser inaugurado pelo então Primeiro-ministro (na altura M. Saturnino da Costa). Enquanto trabalhávamos na cidade de Bafata, os nossos técnicos da Delegacia Regional do Sul (Buba) do ministério das Obras Públicas, estavam a implantar o outro busto de Cabral, na vila de Catió, Região de Tombali. Por nessa altura desempenhar as funções de Coordenador Regional do Ministério, o Ministro solicitou-me ir até Tombali ver como as coisas corriam, pois tinha havido um atraso inesperado ali (e como faltavam apenas três dias para inauguração), ele estava muito preocupado.

Quando cheguei, fui informado que o busto tinha sido montado na noite anterior, mas uma forte chuvada, que tinha corroído a argamassa, o tinha derrubado; parece que não se tinha acautelado a ligação entre o busto e o pedestal com ferros. Então estávamos a analisar a melhor maneira de coloca-lo de novo (eu, os nossos Engenheiros de Buba e técnicos juniores do Ministério) no pedestal, quando nesse ínterim três vacas atravessaram calmamente a estrada que ladeia a praça principal da vila e a entraram na rotunda onde estávamos a trabalhar. Chegados ali, duas delas desataram calmamente a pastar, enquanto a terceira fazia as necessidades a vista de todos; e ninguém pareceu importar-se com isso. Connosco neste momento havia responsáveis políticos da região e técnicos de diferentes ministérios e ninguém ligava coisa alguma. Eu assistia incrédulo essa degradação (civilizacional) da nossa gente, que indiferentes a tudo, achavam isso normal. Sem poder conter interpelei-lhes no geral, dizendo que numa cidade capital, de uma região nacional, na praça principal, a frente do palácio do Governo e edifícios administrativos, isso não se admitia. Mesmo que fosse à centenas de quilómetros de Bissau, tinha que haver uma certa urbanidade e respeito pelo Estado, suas instituições e símbolos. Só assim a população respeita o Estado, os detentores de cargos públicos e representantes da autoridade do estado, que ali eram eles. E em suma, respeitariam a própria Governação e suas decisões como um todo…

Quando as vacas foram por fim enxotadas, explicaram-me (como se fosse um estrangeiro) que a população local infelizmente não entende essas subtilezas e nuances que tanto me incomodavam. Aquilo aborreceu-me bastante, pois há muito que percebia uma degradação cada vez mais acentuada de tudo que é urbano ou contendo algum laivo civilizacional, sejam escolas, hospitais, praças, feiras, etc.; até o discurso político e público era corrompido por uma certa degradação verbal e dos costumes; denotava-se uma qualidade baixíssima. A cidade não estava a conquistar a tabanca, mas esta é que vinha cercando aquela; não só ao nível dos bairros novos que surgiam como cogumelos depois das chuvas, a uma velocidade estonteante a volta de Bissau, com nomes que eram importados directamente dos sítios de origem dos recém-chegados. Assim todos os bairros tinham o nome decalcado de uma localidade do interior, de onde era originária a maioria dos moradores a nova população que em vez de se aculturar com os valores citadinos - encontrava estes tão frágeis, como frágeis eram os agentes da sua implementação em “códigos de postura” municipais e outras de convivência urbana e de cidadania - que continuava, na cidade, a viver como na tabanca. E isso parecia o resultado não apenas de um laxismo do Estado, mas também um certo pendor para não dizer pensar dos dirigentes que tínhamos. Como se essa persistente degradação fosse “ao encontro” de algum desejo, recalcado, intimo de tudo destruir e transformar o país em algo sujo, degradante e odioso, num fatalista “djito ka tem” que destruía toda a iniciativa e toda excelência que seres humanos devem almejar mesmo no inferno.

Tudo isso, todo esse estado de coisas que apercebia nos Ministérios, nas ruas, nas conversas, me era profundamente detestável e negativo. Para um jovem que tinha voltado para o país depois de uma ausência sofrida, pensando que as coisas tinham que evoluir de uma forma ou outra, pois a natureza sempre encontra um caminho, aquilo era confrangedor. Pois parecia-me que o nosso país já devia ter dirigentes que tivessem algo na cabeça, depois de 25 anos de independência. Pois se aqueles que vieram da Luta eram profundamente impreparados, depois de anos e anos de formação de quadros, já devia haver uma certa elite educada, cosmopolita, urbana, conhecedor de outras sociedade e países, para governarem; não conseguia entender este imobilismo total, até no campo das ideias, para não falar da economia que estava de rastos, ou da educação que era uma desgraça total (quando regressei dei de novo aulas no Liceu, pois o meu salário de licenciado em arquitectura era de apenas 23 dólares, numa pouca vergonha nacional inominável). Eu se fosse governante de um país que pagava tal salário a quadros superiores, teria vergonha de sair a rua, de me verem a luz do sol. Mas a pouca vergonha não tinha limites.

Mas um Estado que nem consegue tirar vendedores ambulantes do centro da cidade, do passeio dos Correios em Bissau, fazendo de uma cidade capital pior que um chiqueiro, que permite a pouca vergonha que se passa a frente da feira de praça, é um Estado? E não digo Governo de propósito, pois em primeiro lugar esse devia ser trabalho de um presidente da Câmara Municipal que tivesse alguma capacidade de decisão e não só; e um Presidente da Câmara não é membro do Governo. Mas não só por isso: os sucessivos Governos que foram passando, deixando alastrar este flagelo de venda ambulante e desde a feira de Bandim até as ruas centrais de Bissau são todos iguais na sua indiferença e falta de pulso; e este não é a excepção que confirma a regra.

O problema é que o país degrada-se cada dia e cada vez mais as pessoas estão indiferentes, apáticos, não há urbanidade, não há interesse em nada mais do que nas migalhas do poder. A apatia tomou conta de tudo e de todos. E aquilo que passa na feira “de Praça” em Bissau, já acontecia em Gabu no tempo que eu ia trabalhar lá como técnico do Ministério das Obras Publicas e sempre fazia críticas ferozes a desorganização dessa vila, dessa feira de Gabu que já não tinha inicio nem fim e parecia sufocar a cidade inteira.  


 Mas se em Tombali em 1996 as vacas pastando na praça principal já me revoltavam, 10 anos depois, (quando voltei a Guine pele primeira vez depois da Guerra de 1998) vi essas mesmas vacas, com as mesmas cores, castanha, branca e negra, pastando em plena Praça dos Heróis Nacionais em Bissau. Embasbacado, entendi por fim, verdadeiramente onde tinha chegado o meu país. No edifício da Cooperação Internacional (antigo bar “Quirintim” da nossa juventude) olhava as minhas vacas de Tombali deambulando e pastando calmamente nos canteiros da praça. E não eram aquelas três apenas, por causa da lonjura da viagem, tinham trazido amigas, e eram uma manada inteira, e não estavam perdidas; tinha um menino pastor a encaminha-los com se estivéssemos em “Sintchãm Mole” a 300 quilómetros de Bissau. O nosso país tinha, depois de tantas experiencias, por fim se encontrado com o seu destino. E tínhamos que agradecer isso a esses próceres da Luta de Libertação que nos governaram tão sabiamente durante decénios. Ao meu lado estava um técnico ainda do meu tempo das Obras Públicas, que ainda neste tempo, não tinha dinheiro para um café, a quem perguntei se merecíamos ter vivido para assistir tamanha vergonha.

Enquanto ele balançava a cabeça de tristeza, sabendo que nada que pudesse dizer teria mais significado que esse gesto de desalento, tive suficiente a frieza de espírito para lhe dizer o seguinte: estas a presenciar um milagre, estas a olhar para o ano 1940.
- Como assim? – Acordou do seu torpor.
- Não vês que o monumento ainda esta em construção e nem os símbolos do poder colonial (as quinas e coroas de Portugal) ainda tem? Não vês que a estrada a volta da rotunda ainda não esta alcatroada? Não vês que o Palácio ainda não foi “tidjado (o edifício do Palácio da república não tinha telhas)?
Sorriu e disse: as quinas, quem tirou foram os do PAIGC quando entraram.

IV

Sim, logo depois da chegada dos “camaradas”, tentaram derrubar a estátua da Maria da Fonte, sem saberem o seu significado. Maria da Fonte como Titina Silá era uma mulher do Povo que revoltou-se contra o poder estabelecido. A Revolução do Minho ou a Revolução da Maria da Fonte, como ficou conhecida esta revolta popular ocorrida em Portugal em 1848 contra o Governo de então. A incitadora dos tumultos foi uma mulher do povo chamada Maria, natural da freguesia de Fontarcada, por isso a alcunharam de Maria da Fonte. A sublevação propagou-se depois ao resto do país e provocou o derrube do Governo. Se tivesse renomeado Maria da Fonte de Titina Silá, como renomearam a praça de “Império” para “Heróis Nacionais”, não falseariam a história no significado profunda da vida dessas duas mulheres: cada uma heroína do seu povo. Cada uma lutando pela liberdade do seu povo.

A simbologia da estátua tinha tudo de igual a revolta do PAIGC contra o poder estabelecido pelos colonialistas na Guiné, mas eles, de vistas curtas, só viram nela o colonialismo; seja como for, tentaram derruba-la varias vezes (eu ainda no ciclo Preparatório, assisti uma dessas tentativas, com tractores da tecnil) e como nada conseguiram, arrancaram apenas os símbolos do poder Português (as quinas e coroas) que ornamentavam a estátua. Depois foram arrancar todas as outras estátuas pela cidade fora dizendo que depois no lugar deles iriam por os dos nossos heróis. Mas nunca conseguiram por um que seja. Acho que até era uma coisa que abominavam intimamente fazer. Pois implantar estátuas de jovens que morreram na flor da vida, para um ideal que agora eles conspurcavam todos os dias, era um contra-senso. Seria como uma critica muda que iam ter que enfrentar todos os dias quando passassem pelas mesmas. Não admira que até a estátua de Amílcar Cabral só veio a ser implantado quase quarenta anos depois da sua morte, e por alguém que por não pertencer a matriz inicial desse Partido, e não sofria de complexos de culpa em relação a este.

Sai da Guiné dessa vez, não apenas desiludido, não apenas revoltado, mas totalmente de rastos. O meu mundo interior tinha desabado outra vez, como naquele longínquo dia do ano 98. Os alicerces de pedra que sustem um ser humano, que lhe dizem que tem uma terra e uma pátria, partiram-se nesse dia pela segunda vez. Por mais terríveis descrições que me fizeram da desgraça que se tinha abatido sobre o meu país, nos anos da minha ausência, nada foi tão violento para o meu ser, como ver que em plena praça dos Heróis Nacionais pastavam vacas a luz do dia.

Podem me dizer que houve e havia coisas muito piores. Guerra civil, mortes, feridos, ajuste de contas, golpes e contra golpes… mas para um arquitecto urbanista, aquilo simbolizava toda uma era perdida. Um retrocesso dentro de retrocesso, pois se em 1996 estávamos retrocedendo no tempo, em 2006 o próprio tempo (e nenhuma teoria de relatividade Restrita ou Geral) conseguia acompanhar o nosso retrocesso. E assim nem estávamos em 1996, já tínhamos regredido tanto que estávamos em 1940 (penso que nessa altura possivelmente vacas circularam por ai também), no ano anterior a inauguração dessa nossa grande praça, que tantas boas recordações deixou em nós e em dezenas de outras gerações antes da nossa.

SER MANDINGA OU SER GUINEENSE? TRIBALISMO BALANTA OU FULA?

Olho silenciosamente a minha volta, procurando a P., rapariga da etnia manjaca que conheci há três horas atrás, na saída do metro. Ela apresada, a correr para a Fundação Mário Soares, mas ao me ver ali perdido, levou-me com ela; ela já conhecia o local e eu não. Bastou olhar-mos um para o outro para percebermos que ambos saímos um dia dum mesmo triste local, do outro lado do mundo. Pelo caminho conta-me que acabou de terminar a faculdade (licenciou-se em Química Industrial) e esta a espera de receber diploma; não pensa ir para a Guiné trabalhar, é claro; aquilo como esta... para uma pessoa que está desde criança em Portugal, que cresceu em Lisboa, praticamente uma lisboeta… Assim ela falando, eu escutando, sem ousar contrariar, fomos descendo calçadas íngremes até chegar. Na presa não trocamos de contactos e como a sala estava cheia cada um sentou onde calhou, ficando separados.

Agora que a sessão estava próxima do fim não queria ir sem me despedir dela; ela pertencia aquela geração não conspurcada ainda, a esperança viva deste nosso país; onde deposito os meus mais elevados anseios. Sei que hoje vive em França onde foi procurar trabalho dois meses depois…

A sessão estava naquela parte de perguntas e respostas. Enquanto procurava-a com os olhos, alguém querendo ser simpático comigo estende-me um microfone: não quer perguntar nada? Não obrigado; perguntar o quê? A quem? Quem, nesta sala, nesta vida, pode responder as minhas perguntas? As minhas setenta vezes sete perguntas sobre a destruição do nosso povo? Do nosso país? Doutro modo estávamos ali a fazer o quê? E se pergunta-se de repente, sobre seja o que for, em termos de pensamentos ou certezas sobre a nossa actual situação politica e económica à luz da ideia cabralista? Não me entendem? Não percebem de que falo?

- Mas mesmo assim, não quer dizer nada? Insiste a voz.

- Não; não quero, obrigado; mentira; queria sim; queria levantar e dizer tudo que me ia na alma. Mas nada disse face ao entendimento claro de que se eu tivesse sido orador, destoaria de sobremaneira do corro infindável de panegíricos e encómios que ali foram proferidos numa ordeira concordância. Não pelo conteúdo coincidente das mesmas, mas pela sua não actualidade e pertinência. Por se situarem naquele entendimento deturpado de que as homenagens - que devem ser feitas por respeito e dever de honrar os nossos heróis mortos – devem servir apenas para dizer coisas bonitas e singelas que nada “acrescentam” do homenageado.

A minha exposição iria procurar o fulcro da simbiose entre Amílcar e o Povo para entender porque é que “somos” na verdade um povo e uma pátria e não uma província do Senegal ou da Republica da Guiné. Eu não sou patriota no sentido estreito, entendo que a Pátria só acaba no Rio Casamance a fronteira natural traçada pela geografia, por Deus e pelos Guineenses. Não acredito nessa patranha inventada pelas Nações Unidas sobre a inviolabilidade das fronteiras em África. Os colonialistas separaram os povos artificialmente e agora querem que se conserve isso assim ad eternum? Então para que serviu a Luta de Libertação? Não era apenas para expulsar os colonialistas, isso era apenas o inicio e dos presssupostos. A Luta serviu (ou devia servir) para acabar com as injustiças reais introduzidas pelos colonos; e qual a maior injustiça do que as fronteiras artificias traçadas a lápis e régua nas conferências de Bandungs e outras sem nenhum representante desses povo. Porque aceitar isso?

Recusando a ideia de que nós somos um País, apenas porque esta “unidade territorial” antes foi colonizado por Portugal, que depois retirou-se, e “neste vazio” juridico habitado por nós, “fizemos” uma País. Entendo que é precisamente o contrário: por “já sermos algo” de concreto é que vamos lutar pela liberdade desse “algo”; mas como a liberdade não pode ser uma categoria abstracta, tem que se lhe dar uma forma e roupagens adequadas. E o Estado Guineense é a roupagem que toma a “liberdade Guineense”. Quer dizer, adoptamos uma constituição, uma bandeira e um tipo de Estado, para dar forma a uma “entidade” da qual somos o conteúdo; e quando Cabral vai dizer que somos uma Nação ocupada, a sofrer agressões externas, isso é a assumpção que de facto “já éramos”, só faltava a “roupagem”.

Esta é o resumo resumido da minha comunicação. Era também apenas um rascunho, porque seria uma intervenção essencialmente oral, sabendo que nesse momento o orador seria mais importante que o escritor. Em certas situações, oralmente - quando se é bom tribuno – uma hora pode valer dez horas escritas. e assim a ideia seria usar a Fundação Mário Soares e a efeméride alusiva a Amílcar Cabral como pano de fundo, para apresentar uma ideia nova, se quiserem revolucionária. Pois isto significa antes de mais acreditar fanaticamente numa concepção em que “ser Guineense” é algo que ultrapassa o nosso entendimento sobre ele, qualquer que seja ele. E isto não é uma questão de semântica, é uma das mais importantes questões da ideologia Guineense enquanto tal; pois a palavra “Guineense ” não significa “quem nasceu” nestes 36.000 km2”, entre o Senegal e a República da Guiné (ou filhos e netos desses), laconicamente descrito no dicionário como “natural da Guiné”. Pois se em outros países essa condição é bastante, no nosso caso é apenas uma pré-condição; pois, mais que “acidentes de nascimento”, “ser Guineense” é assumir a herança de um espaço temporal e de um entendimento do mundo que nos diz claramente que só sou Guineense quando deixo de ser nalu, bijagó, padjadinka, saraculé ou qualquer outra etnia similar. Enquanto permanecer “apenas mandinga” sou mais aparentado com os mandingas da Guiné (Conacri) ou os da Gâmbia (e mesmo do Mali), do que com os papeis de Bissau ou balantas de Nhacra. E o mesmo pode-se dizer tranquilamente em relação aos fulas e outras tribos como os manjacos que estão dos dois lados da fronteira do actual Casamance senegalês. E metam nas vossas cabeças que enquanto a lealdade for tribal e não nacional, o perigo da desagregação é grande. Mas por não haver um projecto nacional comum e credível, ela é ainda maior. E aqui, o “projecto nacional” nada tem a ver com a “governação” stricto sensu.
                                             
Por isso, embora me preocupa profundamente o tribalismo balanta e papel (mesmo como acto de autodefesa apenas), no futuro da pátria, preocupa-me ainda mais um (mesmo que hipotético) tribalismo mandinga, fula ou manjaco; pois o tribalismo balanta só “pode assentar” no território Guineense, mas os outros tribalismos podem procurar “unidades transnacionais” se aperceberem que o nosso Estado Nacional é fraco e incapaz de resolver os problemas nacionais. Basta aparecer um líder mandinga ou fula, forte, decidido e capaz, num dos países vizinhos, que apele para os instintos mais básicos, para o “tribalismo cultural” apenas. Pois aqui nem é necessário o tribalismo “de exclusão” e “de diabolização” do outro, baseado em valores comuns, como a língua, cultura e se preciso for a religião muçulmana (quando é o caso), para encontrar terreno fértil entre os jovens dessas tribos.

Tenho observado aqui em Portugal, com constante inquietação e indignação, a alienação paulatina e constante dos nossos jovens fulas e mandingas que agora só ouvem as músicas dos cantores de Conacri como Alpha Dio Dará, Petit Heró, Sekouba Banbinino, Binta Laly, Sekouba Fatako, Mory Djelly Kouyate, Fode Baro, só para dar alguns exemplos em dezenas, e sem ainda falar dos cantores mandingas do Mali. Estes tornam-se em seus heróis da juventude, os idolatram e imitam, criando sentimentos entrecruzados em relação a países desses artistas, que comparam com o deles (o nosso) chegando a conclusão que todos sabemos. Falo constantemente com jovens fulas, mandingas, papeis etc. e as vezes vejo uma total indiferença as vezes com relação ao valor da nossa pátria que o meu coração desfalece.

Quando um país entra em crise económica e política, a sua identidade e sua cultura nacional é o primeiro a tombar (vejam como, com a retoma da normalidade em Angola, como a sua cultura musical que estava de rastos em relação a cabo-verdiana, esta a desenvolver e a ultrapassar esta exponencialmente). Infelizmente, face a pobreza da nossa cultura nacional eles se ajoelham perante a cultura desses países consumindo não só a música, como o teatro e outras manifestações culturais. Vão a concertos organizados por essas comunidades, oriundas desses países nossos vizinhos e pouco a pouco copiam a sua maneira de ser e a sua língua

Isto tem graves implicações de ordem económica e social. E mesmo de ordem nacional, pois cada vez menos olham para a nossa terra como alternativa a um regresso futuro a pátria. Ou de promessa para os seus filhos. Pois sempre que constroem casas no Senegal e na Republica da Guiné (Conacri). E assim toda a riqueza acumulada por esses nossos filhos vai para esses países. Se bem que este fenómeno não é exclusivo da diáspora, também através de Gabu há uma paulatina colonização do nosso povo por parte da Republica da Guiné, introduzindo a sua maneira de falar o fula e os seus maneirismos nacionais. Toda a vila de Gabu esta exposta a essa influência nefasta para a soberania nacional que dali espalha-se para outros centros urbanos.

Ser Guineense – não é ser de uma tribo qualquer, por acidente de nascimento, ou por mistura sanguínea - é pertencer a uma comunidade de indivíduos com a mesma língua (o crioulo) com a mesma cultura, hábitos e credos com uma ideologia clara que define que esta pátria é nossa em comum porque somos “sangue do mesmo sangue”, “carne da mesma carne” frutos de um povo único que não olha as origens tribais e étnicos para construir uma nação diferente dos outros nossos vizinhos. Baseado numa cultura comum com raízes numa mundivisão secular - que vem do tempo anterior ao colonialismo, mas que foi amalgamada por esta influencia - que nos faz estar, em alguns aspectos, mais próximo dos nossos concidadãos dos PALOP do que os da CEDEAO.

Portanto ser Guineense não é ser balanta ou papel, beafada ou nalu ou as suas variantes como nhominca, balanta mané, fula furo ou gebancólo, mas precisamente o seu contrário. E o seu “contrario”, independentemente do nosso acreditar, deve ser “realizado” por um poderoso Estado, que como já também disse antes, será o “instrumento” para a “realização” do povo. E esta realização não tem intrinsecamente a haver apenas com o bem-estar social, desenvolvimento económico, competente gestão da coisa pública, extinção da corrupção e do narcotráfico e criação de oportunidades credíveis e palpáveis aos jovens para que parem de fugir do país. Tem mais a ver com a criação do povo de que falo permanentemente, por mais estranho que isto vos pareça a primeira vista.

Pois um conjunto de tribos vivendo num espaço geográfico não “faz” necessariamente “um povo”. E como “o tempo das tribos em África já passou” (tinha já passado há cinquenta anos atrás), segundo Amílcar Cabral, então ninguém com uma sólida formação, moderno, urbano e acima de tudo patriota, necessita de tribos “como tal”. Só necessitamos de povo, “como tal”. De outra forma, de que pátria falamos? De Guiné/Estado-Nação falamos? Pois tudo o que escrevi até hoje no fundo pode ser resumido a isto. Aceito que resto até possa ser considerado “acessório” num certo entendimento. Pois aqui que reside a essência Guineense. E daqui é que temos de partir para criar este espírito por que tanto anseio nos Guineenses.

E ela que procuro quando vou esconjurar a alma dos nossos antepassados, de todas as etnias, indo esconjurar a minha própria alma e nessa simbiose procurar todos os filhos da terra para a reunião final. Pois para mim há um continuum permanente entre o passado e o presente que nenhum acontecimento político pode compartimentar. E é neste continuum que vive e viverá este espírito que é algo que no dia-a-dia da nossa existência parece que esta em nós, enquanto indivíduos, mas na verdade esta na superstrutura e não pertence a categorias individuais. É este espírito que é a trave mestra da Nação que quero construir.

Mas isso só não seria possível se houvesse uma sedimentação do tecido nacional por um estado poderoso, que nunca será este, totalmente minado por espúrios e vis interesses partidários, de grupos e pessoais. Hoje se queremos ser honestos, temos um simulacro de Estado Nacional com os seus instrumentos de representação como um Presidente da Republica, uma Assembleia Nacional e um Governo. E na verdade para que serviria este imenso aparelho amorfo sobre o corpo da “nação que não existe”? Se não para apenas pagar salários de elementos desse mesmo corpo e repartir entre meia dúzia de apaniguados as ajudas estrangeiras e algumas receitas que o aparelho consegue abocanhar? Esquecendo que o Estado é apenas um instrumento para a realização do povo e não um fim em si. Não é o instrumento para a realização de si mesmo. De outro modo o Governo só serve para gerir a miséria e mais nada. Não é capaz de criar a riqueza nem melhorar ávida das pessoas.

E assim, nesta busca incessante para compreender, andando pelos atalhos da nossa história, na senda das pisadas do nosso povo, recuo até ao ano de 1930 - para visualizar o meu pai com seis anos de idade atravessando com a sua mãe o Rio Farim de canoa (era o único meio de transporte e a única via de acesso), percorrendo esses trinta e tal quilómetros, desde o “Progresso” (a “ponta” de meu avó), para chegar a vila de Farim ; para ali perder o seu irmão de quatro anos de idade, caído no Rio Farim e momentaneamente comido pelos crocodilos (já no porto, depois de atracarem) – e sinto o choro dolorido de Nhanha (madrasta do meu pai) clamando por esse menino que desapareceu para sempre, sei que é o mesmo choro dorido daquela outra mulher, que vos contei, que procurou o seu filho em todos os campos refugiados do Senegal e Portugal. O povo portanto é esse continuum, uma entidade que imerge de um passado longínquo, onde as suas raízes se cruzam há centenas de anos expandindo-se do seu meio natural surgindo como expressão visível da nação. E cada um de nós resta ligado a nação através dele numa continuidade dialéctica permanente intraduzível e inexplicável. Têm apenas que acreditar nesse milagre só nosso. Por isso vos disse uma vez que “perdoaria todas as mortes, as centenas de vidas desperdiçadas em fuzilamentos, execuções sumárias, golpes e contra golpes que se sucederam nestes últimos decénios, se isso fosse o amargo preços que tínhamos que pagar para por fim erguermos esta Nação. Pois a mim não me importaria muito que o País não tivesse sido desenvolvido económica e socialmente pelos diferentes governos que se sucederam, conquanto tivessem preservado um povo consciente e orgulhoso de sua identidade e pertença a esta Pátria.
A imagem acima pode não dizer nada a muita gente, mas é aquela que tenho, aquele que é parte de mim e fruto das minhas origens. É a única que eu tenho embora os meus olhos nunca viram essa propriedade, “essa ponta” do meu avô chamada “Progresso, nos confins do fim do mundo, porque com o recrudescer da Guerra, anos depois, os colonialistas evacuaram toda a gente de família que lá ainda vivia, para não se reunirem aos guerrilheiros. Duas das suas irmãs conseguiram fugir e juntar-se aos do PAIGC. O meu pai há muito que já tinha sido levado para Farim onde cresceu.
Assim a “propriedade” foi perdida engolida pelos matos durante uns 12 anos, para por fim desaparecer, como os trinta e tal pontas do rio grande de Buba onde já se bebia champagne 1930, para um dia virmos a ter uma pátria justa onde cinquenta anos mais tarde só se bebe champagne no palácio presidencial.
E assim os meus pés nunca pisaram essas terras do fim do mundo, mas o meu espírito um dia, na morte, por lá caminhará a procura dessa gente, desses também espíritos e quem sabe um dia faremos um almoço debaixo das árvores do nosso passado, do passado que não tivemos, por causa de Amílcar Cabral quando quis dar dignidade ao homem Guineense.

O TRIBALISMO COMO DISCURSO DE ÓDIO E ANTIMODERNIDADE

Homens com alguma envergadura política, sempre originam todo o tipo de invenções que o tempo depois trata de fazer esquecer. Lembro-me que durante a minha infância, existiam dezenas de histórias rocambolesca sobre o Sekou Touré e seus supostos super poderes, feitiçaria e outras balelas, que hoje ninguém leva a sério, mesmo por aqueles que não têm formação “por aí além”. E também sobre Senghor, Spínola (de quem dizia-se que ia sozinho para o mato, sem medo, etc.). Samora Machel, era quase um mágico (segundo os estudantes de Moçambique, meus colegas na Rússia). Mas isso é normal numa certa lógica de “Zé-povinho” que precisa de construir certos castelos de ar, para aceitar a sua (infelizmente) miserável existência de súbditos desses senhores.

Entre os Angolanos com pouca instrução, e não só, as histórias sobre o Eduardo dos Santos não ser Angolano, de não ter nascido em Angola, é pão de cada dia. As vezes condescendem, que nasceu sim, no bairro de Sambizanga (as vezes no Marçal), massss… de pais estrangeiros. Portanto não é Angolano mesmo assim. Enfim… afirmam que os Van Dunem são holandeses, que Paulo Jorge, Lucio Lara, Iko Carreira, etc., não eram “puros” Angolanos.

Uma vez em Luanda, onde fui a uma Conferencia de Arquitectos Lusófonos, nos idos de 1995, um técnico Angolano, para me provar que o Presidente de Angola não era angolano (opinião que eu achava um perfeito disparate), conhecendo o meu carácter e ódio as injustiças, sejam elas de quem vierem, me fez uma pergunta sacramental: Como explicas então que as crianças morem de fome em Angola e o presidente não faz nada? Não é esta a prova máxima de que ele não é Angolano? Se fosse Angolano, achas que deixaria as crianças angolanas morrer de fome?

Respondi-lhe, perguntando também: O jean-Bédel Bokassa era de São Tomé? O Idi Amin Dada é Guineense? O Mobutu Sesse Seko é Angolano? E as crianças de Uganda e Zaire? Para não falar do Bokassa que “comia” literalmente as crianças da Republica Centro Africana (segundo consta era canibal e gostava banhar-se com sangue de virgens). Não mais me “fez perguntas”.

Conhecendo esta mentalidade, da minha terra, perguntei-lhe (ironizando) se preferia o “estrangeiro” Eduardo dos Santos como Presidente ou o comandante Iko Carreira companheiro de Agostinho Neto, que toda a gente sabia que era Angolano, embora branco? Não; claro que não disse, “era muito claro”; nesse caso, já não interessava “se nasceu em Angola” ou não; apenas interessava se era “preto-nock” ou não. Então perguntei-lhe se preferia Savimbi, que era Angolano “puro” (numa certa mentalidade de burros) e também “preto nock”? Respondeu outra vez que não, pois Savimbi era Ovimbundo, e que “todo o mundo em Angola sabia que os ovimbundos não sabiam nada e muito menos mandar”; “nem fazer nada de jeito (eram muito limitados) ”!!!!!!!!! O indivíduo que debitava estes dislates, era Kimbundo, e acreditava piamente que o que dizia fazia algum sentido (nem desconfiava que era muito mais limitado do que os ovimbundos que tanto depreciava).

Para este tipo de gente, o tribalismo nem é uma “defesa” da sua tribo em relação as outras, é apenas um meio de se guindarem ao poder e lá permanecerem. Geralmente, no fundo odeiam as suas raízes e origens; e em casos não raros, odeiam as suas próprias tribos, embora de forma dissimulada. No caso particular de Costa de marfim, o divisionista e tribalista Laurent Gbagbo, que dizia que Alassane Ouattara não era “um puro Marfinense”, veio a revelar-se um cobarde sem dignidade, quando se rendeu, depois de ter convencido centenas de jovens a morrerem por ele dizendo que preferia morrer a render-se. Por causa de ambições pessoais, estes irresponsáveis não hesitam em destruir um dos mais belos países de África, envergonhando o seu povo e os africanos em geral. São episódios como este que demonstram a falta de qualidade moral desta gente. Pois ele não respeitava esses filhos da sua tribo e nem os amava. Este que se dizia “puro fidjo de tchom” em relação ao Alassane Ouattara, vem desmistificar uma vez mais o que Cabral dizia há mais de quarenta anos: o tempo das tribos em África já passou.

Uma vez em Lisboa, um fotógrafo Guineense natural de arredores de Bafada (neste momento esta a montar lá uma pequena casa fotográfica se tudo correu bem como ele sonhava) veio ter comigo e pediu-me que o fizesse um trabalho de passar vídeo de uma máquina fotográfica para um DVD gravável. e no momento que fazia-lhe isso ele me disse que queria me confessar uma coisa; e a sua surpreendente confissão era que ele era um indivíduo que se considerava racista. Assim mesmo disse: eu sou racista e não nego. Calmamente continuando com o trabalho, lhe perguntei: então porquê? Não sei se ele é mandinga ou fula, mas como era escuro assumi que fosse mandinga embora quem viveu no chão dos fulas sabe que muitos também são escuros. Disse-me que um branco (referia-se a um português) disponibilizou-se para lhe fazer esse trabalho, mas como era racista preferiu trazer o trabalho a um preto (referia-se a mim). Depois de lhe fazer o trabalho convidei-o tomar um café e lhe disse que também queria lhe confessar uma coisa: eu odiava pessoas como ele. Então porque? Porque os racistas não servem para nada: você diz que entre o branco e eu, preferiu o preto. Mas entre dois pretos o racista vai escolher “o mais preto”, o “preto nock”. E entre dois “pretos nocks” vais escolher o “preto nock” da sua tribo. E entre dois “pretos nocks” da sua tribo, vai escolher o “preto nock” da sua tabanca, casta, familiar, e por ai fora. O racista é um indivíduo perturbado; e no nosso caso no fundo não deixa de ser também um tribalista. Não sei se ainda é meu amigo, mas tantas vezes nos encontramos e nunca mais me disse que era racista.

Porque é que, em países “de verdade”, civilizados e progressistas, as pessoas normais conseguem viver sem complexos de sua própria cor? Pois no fundo no fundo quem se preocupa com a cor da pele dos outros, em vez de se preocupara com a sua competência, apenas tem vergonha da sua pele e tem complexos por a ter. E é essa mentalidade obtusa, burra, atrasados dois séculos, que continua a fazer o “seu caminho” na cabeça de tantos compatriotas nossos. Mas de tanto fazer o seu caminho, agora é infelizmente o “nosso caminho”, o caminho da perdição; pois sempre que dois “puros Guineenses “ se “encontram” tem que haver “pancadaria” ideológica, pois é necessário sempre provar quem é “mais puro” que o outro; quem pertence a uma tribo que “veio de fora” (mandingas?), quem pertence a tribo que “foi criada por Deus aqui” (mancanhes, manjacos?). Quem pertence a tribo que Lutou ao lado dos tugas (fulas?), quem pertence àquela que Lutou ao lado de Cabral (papeis?), quem pertence a tribo que nos libertou (os balantas?). Saber daqueles que foram a Luta, mas “não combateram” (o resto da malta?). Enfim de disparate em disparate, chagaremos lá; lá onde os puros para provarem que são verdadeiros puros têm que matar os puros que consideram impuros, como no Ruanda.

Mas como já disse, são sempre assim os tribalistas. Para eles o povo nunca será uma unidade, apenas partes de um todo, que quanto mais dividido melhor. Pois é mais frágil e manipulável, seja nas eleições ou na sua abusiva utilização em defesa de projectos perniciosos de que as suas cabeças estão sempre pejadas. Para além disso nunca tiveram uma ideia válida. É uma doutrina que vive do ódio e da mentira. Por isso serão derrotados inexoravelmente, é só uma questão de tempo.

Quanto tempo? Bem a história é feita de decénios e de séculos, mas as mudanças de mentalidade geralmente são mais lestas. Amílcar Cabral, uma vez falando deste flagelo do tribalismo - que ele sabia que era real, embora sempre escondido (porque mesmo o mais exacerbado racista ou tribalista, esconde sempre que pode esta sua faceta; principalmente no meio de homens honestos e de bem, ou com alguma formação e só a revela em sítios escuros e escusos, para os da sua igualha ou para os inocentes que por não terem formação adequada, são fáceis de enganar. E ele esconde isso porque no fundo sabe que esta errado, sabe que o tribalismo, racismo, chauvinismo, discriminação social e racial, entre outros males é crime contra a humanidade.) – disse o seguinte: Qualquer camarada que tenha dentro da sua cabeça a ideia de que a sua «raça» é que deve mandar na nossa terra, que se prepare porque haverá guerra com ele. Mas há ainda camaradas no Partido que ainda são incapazes de matar totalmente aquela ideia de «raça» que têm na cabeça. Porque são ambiciosos, só porque são ambiciosos, querem ser eles os mandões máximos de tudo. Gente como essa não é do Partido. No nosso Partido manda quem tem valor, quem mais pode mandar, quem deu provas concretas de que sabe mandar, e o nosso objectivo é só um: servir o povo.

Isto para que tenham em atenção uma coisa, o tribalismo em África não é apenas um discurso de ódio e divisão: é também sempre um discurso contra a modernidade, contra o desenvolvimento. O tribalista vê na modernidade um perigo à dominação e submissão que submete ao seu próprio povo. Pois um elemento da tribo que adquiri uma formação escolar, política ou cultural fora dos meandros da tribo, é mais difícil de “enganar” ou de “controlar”.

E como a modernidade não se realiza apenas através da instrução (escolaridade avançada ou não, conhecimentos científicos e porventura graus académicos), ela também se realiza através de mistura tribal e racial, torna-se duplamente pernicioso. Pois dizer a um (a) mancanhe ou manjaco que casado e tenha filhos, com um francês, cabo-verdiano ou fula que a cultura e a tribo manjaca ou mancanhe é a melhor da Guiné (e ele acreditar), já é muito mais difícil do que dizer o mesmo a aquele que no fundo da sua tabanca não conhece outra coisa. Esse coitado acredita em todas as patranhas que os políticos corruptos lhe diz, pois esta “fora da modernidade”. Portanto este corrupto, este tribalista, deve ser castigado por esse duplo crime. E mais criminoso ainda, é cavalgar na onda do tribalismo para cometer outros crimes como o assassínio, o roubo ou a destruição moral de seres humanos.

Esta irresponsável maneira de pensar e agir contra os interesses do povo, criou mitos insanos para tentar explicar o inexplicável. Como Cabral é uma figura incontornável para o país, e não se pode acabar com ele de uma maneira qualquer, pessoas sem escrúpulos no afã de transforma-lo no “preto nock” (não na cor da pele, mas nos sentimentos e na pertença à eles) criaram uma teoria de que Cabral era filho de mãe fula; e seu pai Juvenal Cabral (que como era casado) teve que pedir a sua esposa legítima que assumisse ser mãe de Amílcar. Até se fala de uma carta que Cabral teria escrito a Iva a pedir que lhe perfilhasse. Como se Cabral fosse um analfabeto, que não conseguisse saber de quem é filho e nem tivesse sido registado a nascença como toda a gente. Alem de que não conhecem a história familiar e pessoal de Cabral e a sua relação profunda com a progenitora.

Isto tem a ver com uma certa revanchismo racista e rançoso, que sabendo que renegar Cabral é impossível, então “transformamos o homem em “preto nock” fazendo dele fula. Porquê fula e não manjaco ou papel? Porque os fulas são mais claros e assim as pessoas acreditariam mais. E quem inventou este mito? Os Fulas como tribo? Não. Eles não precisam deste mito para nada, foi a tal elite crioula aparentados que esteve implicado na sua morte e de que já vos falei, que espalharam pelo nosso país esse ódio entre elementos do mesmo povo, sem saber que estavam cometendo aquilo que em gíria militar se chama alta traição. Mas Cabral, isso já sabia, por isso dizia na altura o seguinte:  “Sobre a reorganização das Forças Armadas os nossos camaradas devem lê-lo, porque lá está escrito tudo claramente, abertamente, explicando até porque é que a maior parte dos nossos responsáveis que cometem mais erros, são aqueles que saíram das cidades.”

Este tipo de questões só vêem demonstrar o atraso que cada dia mais vai engolindo o novo povo. Pois agora a questão de “burmedjos” por serem muito poucos e não constituírem nenhum peso eleitoral parece já pacífica. Mas quando se semeia a “semente do diabo” ela frutificará sempre, de um modo ou de outro. Agora essa maldição “passou” para as nossas tribos. Ano passado vi essa mesma configuração com outros intervenientes e actores. Quando Hélder Proença foi assassinado, um alto responsável do nosso país, de etnia balanta, me disse que o Hélder afinal era um menino órfão balanta que foi adoptado muito novo pela família Proença… como “Cabral também era um menino fula adoptado por Juvenal Cabral …” ????????????

Algum tempo depois ainda ouvi, de pessoas com responsabilidades superiores no Estado, a dizer que o recém-eleito Presidente Malam Bacai Sanha não era Beafada. Mas um balanta adoptado pelos Beafadas. E explicavam isso da seguinte maneira: ele era gémeo de nascimento, e os balantas, por tradição tribal, nesses casos deitam fora um dos gémeos; e assim aconteceu, por isso ele foi “encontrado” (cudjido) pelos beafadas que o adoptaram; assim cresceu entre eles e herdou seus costumes !!!!!!!!!!!????????

Mas Cabral, esse estraga prazeres, parece que adivinhava que esses malandros e bandidos, um dia surgiriam de novo, tanto em Cabo-verde como na Guiné e já dizia: “… Quando falam em Manjaco, dizem o mesmo. Dizem que os papéis é que fazem mal aos fulas, que os fulas é que fazem mal aos papéis, para dividir. Mas já viram que isso não dá nada. No nosso Partido ninguém dividiu, pelo contrário, cada dia nos unimos mais. Aqui não há papel, nem fula, nem mandinga, nem filhos de cabo verdianos, nada disso. O que há é P.A.I.G.C. e vamos para diante.

Mas esta constatação programática dele, no contexto específico da luta de Libertação, no processo decisório e de construção de uma nação é extremamente grave. Por isso o tribalismo hoje em dia é duplamente pernicioso, pois alem de todo o mal associado a ele, ainda acrescentou-se um discurso antinacional. Ela é contra a formação do Estado Nação em África e na Guiné em particular. É o maior oponente a modernidade, ao desenvolvimento e melhoria de vida do povo. Ela é inimiga do Estado Nação nos seus fundamentos e poderes constituídos.

Se Cabral nessa altura imaginasse que esse seu PAIGC, fundada e enobrecida por ele, viria a ter coragem (e descaramento) de fazer regulamentos internos e leis nacionais onde o Amílcar Cabral, se fosse vivo, seria excluído e proibido de participara na vida pública e política do seu próprio país, do país que libertou; e por gente que deu dignidade; por gente que se não fosse ele e o seu sacrifício nunca seriam nada na vida, o que pensaria? Na ingratidão dos homens? Não, no trabalho inacabado.
Essa gente fazia isso sem nenhuma vergonha na cara, com toda a impunidade, com todo o racismo e tribalismo que podiam utilizar. Quando os interesses pessoais falam mais alto que os colectivos, não há nada a fazer. É assim que este Partido, guiado por certa gente sem escrúpulos, destruiu a nossa vida colectiva pouco a pouco, inexoravelmente. Sabendo que fomos governados desde 1974 até 1999 por esse partido, é fácil entender porque é que chegamos tão depressa onde chegamos.

Por isso é tempo de destruir essas organizações com a própria modernidade que tanto combatem, doutra forma ainda assistiremos guerras tribais em África. Embora, de certa forma, essas guerras (se vierem a suceder) ditarão o fim das tribos (ou pelo menos a sua natureza retrógrada) em África. Para dali surgir um novo mundo liberto e livre onde os Africanos caminharão por fim com o resto da humanidade na senda do progresso e da felicidade. Os tribalistas (e os racistas já agora) que me desculpem, mas não há outro caminho senão a vossa destruição imperiosa e impiedosa para o bem do bem. Para o bem do povo no seu conjunto nacional.

Fernando J. P. Teixeira

Lisboa, 28 de Abril de 2011



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