Na Alemanha, grande parte da geração que vivenciou a guerra se calou sobre traumas e crimes cometidos neste período. Agora, descendentes buscam desvendar o passado de suas famílias.
Heinzel passou seis anos investigando história de seu avô
Tudo começou com pesadelos recorrentes quando ele tinha cerca de 25 anos. O cineasta alemão Sebastian Heinzel, nascido em 1979, sonhava que estava lutando em batalhas, andando em tanques, com cenas da Segunda Guerra Mundial na Rússia.
Ele não tinha explicação para seus sonhos, os filmes eram o mais próximo de que ele havia chegado da guerra. Ele também não teve nenhuma vivência direta com qualquer tipo de violência. Os pesadelos o estressavam, então, procurando respostas, ele começou a investigar a história de sua família.
Tudo o que sabia era que os dois avós haviam estado na guerra. Esse foi o ponto de partida para uma pesquisa longa, durante a qual Heinzel constatou que não estava sozinho com suas preocupações. O Arquivo Nacional da Alemanha, que guarda, entre outras coisas, os arquivos das Forças Armadas nazistas, recebe anualmente dezenas de milhares de pedidos de consulta de pessoas que buscam desvendar a história de suas famílias.
"Nossos antepassados nos moldam mais do que pensamos", diz Heinzel. Sua busca durou seis anos e resultou no documentário The War in Me (A guerra em mim, em tradução livre).
Os alemães ocidentais precisaram de anos para começar a resgatar historicamente o nazismo. O domínio de Hitler durou 12 anos; a guerra que a Alemanha nazista iniciou com a invasão da Polônia em 1º de setembro de 1939 custou a vida a cerca de 60 milhões de pessoas; e cerca de seis milhões de judeus foram assassinados durante o Holocausto. Mas após a capitulação da Alemanha em 1945, muito deste passado foi negado e reprimido até a década de 1960.
Os protestos estudantis que tiveram seu ápice em 1968 alimentaram a reflexão crítica deste capítulo histórico. Hoje, a comunidade internacional elogia a cultura alemã da memória. Em entrevista, a filósofa americana Susan Neiman disse recentemente que a forma como os alemães aceitaram sua história foi uma "conquista magistral". Isso não significa que o racismo ou o antissemitismo não existam mais na Alemanha.
Hoje, a reflexão crítica da história alemã tem um lugar firme nos currículos escolares e nas instituições educacionais. Toda criança na Alemanha precisa estudar o período nazista em detalhes a partir do 8ª ou 9ª série, com cerca de 14 anos, seja nas aulas de alemão, história ou ciências sociais.
Assim, Heinzel também conheceu os fatos chocantes sobre os nazistas e o Holocausto. Mas na época, ele não sentiu nenhuma conexão pessoal com isso. "Em algum momento, como estudante, eu não aguentava mais ouvir tudo aquilo e questionava o que isso teria a ver comigo".
Uma pergunta que pode surpreender – afinal, pelo menos um de seus avós havia lutado na guerra. Mas, assim como em muitos outros lares na Alemanha, a família de Heinzel raramente falava sobre esse período. O assunto era muito delicado, e talvez houvesse vergonha pela questão da culpa. "Nem meu pai e nem sua irmã sabiam o que meu avô fez durante a guerra ou onde ele esteve", afirma o cineasta.
Falta de reflexão sobre a história familiar
A psicóloga alemã Iris Wangermann, nascida em 1975, passou por uma experiência semelhante. Atualmente, ela ministra oficinas para os chamados "netos de guerra", termo cunhado na década de 1990 para aqueles cujos pais foram marcados significativamente quando crianças pela guerra.
Há uma "névoa emocional" em muitas famílias, uma espécie de "emudecimento", explica Wangermann, acrescentando que isso não é realmente uma surpresa diante dos horrores da guerra. "Quem quiser trabalhar esses sentimentos precisa ser capaz de regulá-los e suportá-los", aponta a psicóloga, argumentando que essa reflexão requer estabilidade emocional interior. "Mas a geração de crianças que vivenciaram a guerra não foi capaz, muitas vezes, de desenvolver tal estabilidade, razão pela qual elas simplesmente não tocam nestes assuntos, como uma espécie de reação protetora inconsciente."
O problema é que vivências ou traumas não processados afetam a vida cotidiana e podem ser transmitidos para a próxima geração. Se os pais não conseguem se abrir emocionalmente devido a experiências incisivas, eles não podem passar essa habilidade aos filhos. Assim, isso é transmitido através das gerações.
A boa notícia é que esse processo pode ser interrompido quando há uma reflexão sobre a história familiar, seja sozinho, com ajuda de amigos, em cursos ou em terapia. Segundo Wangermann, muitos que participam dos cursos que ela oferece buscam orientação. "Muitos não têm ideia de quem realmente são", revela a psicóloga.
Wangermann também buscou passado da família
De acordo com Wangermann, filhos de pais traumatizados pela guerra, em geral, não espelham suas qualidades próprias. "Esperava-se que essas crianças se comportassem de uma forma que os pais pudessem suportar. Elas não podiam ser elas mesmas. Essa é uma questão fundamental: não ser visto como realmente é".
Wangermann também pesquisou sua história familiar por vários anos, afirmando que, dessa forma, muito se descobre sobre a guerra. Mas a verdadeira resposta para a pergunta sobre impacto desse episódio, duas gerações mais tarde, depende de cada um, diz a psicóloga. Não são necessários heróis e heroínas, mas "pessoas que partem para explorar suas almas, que se atrevem a enfrentar seus próprios demônios".
Foi exatamente isso que Heinzel fez. Na busca pelo avô, ele acabou se encontrando. Ele descobriu que seu avô foi um suboficial da Wehrmacht (Forças Armadas nazistas) estacionado em Belarus e localizou onde ele foi finalmente ferido. Mas Heinzel não foi capaz de descobrir o que exatamente seu avô fez e o motivo pelo qual ele, assim como muitos dos homens de sua época, nunca falou sobre esse passado.
Quando Heinzel pensa em seu avô, ele se lembra de "homem incrivelmente trabalhador". Ele fez parte da geração que reconstruiu a Alemanha no pós-guerra. Com o passar do tempo, o neto percebeu que havia uma espécie de pressão em sua família para ser um homem de sucesso. "Não basta que eu seja do jeito que sou, tenho que fazer algo para ser reconhecido e para que eu tenha orgulho de mim", reconhece o cineasta.
Tanto o avô quanto o pai eram, até certo ponto, viciados em trabalho. Seria uma espécie de compensação inconsciente pela culpa da Segunda Guerra Mundial? Heinzel afirma não poder ter certeza, mas também não pode descartar que isso seja verdade.
"Acho que há muitas coisas que não foram trabalhadas e muitas histórias que não foram contadas", diz Heinzel. Ele acrescenta que, dentro de sua família, coube a ele lidar com esses destroços emocionais. "Faz parte do trabalho da nossa geração." Nos últimos anos, pelo menos, seus pesadelos diminuíram.
fonte: DW África
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Samuel