Pegou no “momento da margem” entre o golpe de Estado e a independência para contar como morre um império [europeu] e surge uma nação [africana]. Fernando Couto não assume a carga de história, mas explica-nos por que é que só a Frelimo podia negociar a independência.
“Falar de acontecimentos recentes de Moçambique é extremamente temerário e arriscado, pois há sempre um tempo necessário para deixar sedimentar paixões, susceptibilidades e melindres, medos, entusiasmos, distorções, interferências indevidas, ou protagonismos excessivamente assumidos, que só o filtro do distanciamento temporal permite depurar”. Fernando Couto – filho – foi buscar a ideia de Rui Baltazar para o seu livro “Moçambique 1974: o fim do Império e nascimento da Nação”, que sai dia 23, com o selo da Ndjira.
Couto vê neste seu livro - que também se podia chamar de “os últimos anos de uma colónia” - o renascer de um país que pode, igualmente, servir para compreender a Beira de hoje. Mesmo negando que se trata de uma obra de história, ele apega-se em factos e deixa-se dominar pelo tempo. “Fui jornalista no período de transição”, defenderia-se Couto, se o perguntássemos, como quem nos lembra que “o jornalismo também é feito de factos”. Mas neste “Fim do Império” voltámos à história. Por mais que seja “história recente” e “com todos os riscos”, como sublinharia Rui Baltazar, estamos perante uma caminhada pela “história”.
Quando falamos do livro, esquecemos o seu lado empresarial e lembramo-nos que foi na Beira onde “o colono atacou o seu próprio exército antes do 25 de Abril”, mostrando que “o império já caminhava para o fim”.
O que o levou a ir contra o “conselho” de Rui Baltazar em relação a escrever sobre acontecimentos recentes?
Eu não vou contra o princípio de Rui Baltazar em não escrever histórias recentes, porque o que pretendo neste livro, mais do que fazer história, é dar um testemunho opinativo sobre uma realidade que teve bastante importância para a vida deste país. E mais, compreender como é que uma guerra que durou quase 10 anos, em cerca de seis, portanto em 90 dias, conseguiu chegar a um termo. Não me refiro apenas à conclusão dessa guerra, mas também às conclusões das bases para a independência de Moçambique. Foi algo muito inútil em relação aos outros países, em relação a realidades iguais. Este meu testemunho é baseado também no facto de nessa época eu ter sido acidentalmente jornalista. Caí de pára-quedas na redacção do jornal Notícias. Dessa forma participei nesses mesmos acontecimentos. Sou um relator desses acontecimentos, daí que o meu livro não seja de história nem de ficção, mas relato de uma experiência que foi vivida.
Fala de um período de transição entre o golpe de Estado de 25 de Abril até à proclamação da independência. Que país encontramos nesse período de margem?
O meu livro inicia com uma análise ligeira do que era a sociedade colonial baseada na situação da Beira. Foi na cidade da Beira que houve um contexto muito específico, chamado “especificidades beirenses”, que estavam e continuam a estar reunidas. Estas especificidades precipitaram uma série de acontecimentos que originaram o golpe do Estado em Portugal. Quando os colonos atacam o seu próprio exército, isto é sinal de que o fim está próximo, porque a razão da presença do exército colonial no país era a defesa dos próprios colonos. Portanto, isso é o anunciar de um fim. E depois, entre a transição do golpe que se vive no país, que foram três meses de pleno caos. Relato esse caos em termos de vivência. Não havia governo, vínhamos de um período em que tudo era proibido e tudo passou a ser permitido. Houve greves sobre greves, contestações sobre contestações, opiniões sobre opiniões... Esse período de caos termina quando se forma o governo de transição que leva à formação da República Popular de Moçambique no dia 25 de Junho de 1975.
Procura retratar a formação de uma sociedade pouco antes do golpe de estado em Portugal e a formação do governo de transição. Como podemos compreender as convulsões beirenses, partindo da formação da sua sociedade?
É muito difícil. Ela [a sociedade beirense] tinha e tem muitas especificidades. Primeiro, é preciso não esquecer o que é a cidade da Beira. Foi construída por cima de um pântano que nem sequer existia como um sítio em si. Foi conquistada da natureza e isso dá ao beirenses uma luta permanente contra alguma coisa, sobretudo contra este facto de a cidade estar construída num ambiente inóspito. É uma cidade de profundos contrastes, uma cidade que no tempo colonial era considerada a capital de racismo com ou sem razão. Foi na cidade da Beira onde houve confrontos entre etnias, que resultaram em mortos e feridos completamente desnecessários. Foi em 1972, que as etnias Sena e Ndau se juntaram e fizeram um massacre contra os cidadãos de origem chuabo. Foi o único sítio do país onde se verificou uma situação desta natureza. Foi na Beira onde houve sempre revoltas e confusões, até que acabou na confusão do início do golpe de estado português, e os militares português perceberam que não só estavam numa guerra perdida sem solução militar, como também perceberam que estavam numa guerra sem causa, porque a própria causa da guerra se rebelava contra eles próprios. Também procuro explicar um aspecto: como é que nesses três meses, de Maio até mais ou menos finais de Agosto de 1974, se abriu um espaço até aí muito difícil na conjuntura internacional, sobretudo no momento em que se vivia a guerra fria. A política americana estava marcada pela demissão do seu presidente, [Richard] Nixon. Portanto, os americanos estavam ausentes da política internacional, porque tinham de enfrentar problemas domésticos. A sociedade sul-africana na altura do Apartheid, quem dominava era a linha dos que defendiam o não entendimento com os países africanos. A África do Sul não devia se entender com os países africanos, contra os falcões do regime Botha, Magnus Malan. Isto foi num curto espaço de tempo, porque se olharmos para o que vai acontecer meses depois na questão de Angola, o contexto estava completamente alterado. Os americanos já tinham uma política virada. Os falcões tomaram conta da África do Sul e invadiram Angola. O problema de Angola foi muito mais sério do que o de Moçambique, porque a conjuntura internacional ajudou, efectivamente, que essa conjugação de esforços fosse feita, quer da parte portuguesa quer da parte moçambicana, para que se chegasse a um entendimento rápido e se chegasse ao fim de processo que tinha outro desfecho, senão a independência.
Gostávamos que fizesse uma análise, ligando o passado ao presente. O movimento que se verificou na Beira colonial tem alguma relação com Beira de hoje, que se torna num dos maiores centros de ebulição política de Moçambique?
Acho que tem uma ligação intrínseca. E digo, não acho. Tem uma ligação. Portanto, não se pode dissociar o passado do presente. Há uma continuidade nesse sentido. E para se entender a cidade da Beira é preciso ter-se em conta essa mesma realidade e vicissitudes próprias. Não vamos estar a dizer que Beira é diferente de outras cidades, porque se conjugaram factores de diferenciação que a transformaram. Mas há uma cultura fortíssima. há na Beira uma presença fortíssima da igreja católica, uma permanente convulsão social.
Vai dando uma ideia de que se não fosse essa conjuntura internacional, Moçambique não teria sido independente no período em que foi. Pode se entender assim?
Pode se perceber que esta conjuntura se não tivesse se dado da forma como se deu, o processo pudesse talvez ser mais complicado como a questão angolana. Portanto, imaginemos que se daria uma invasão sul-africana ou rodesiana na altura de Iam Smith ao território moçambicano. As coisas tornar-se-iam mais complicadas e custosas como foi o processo angolano, que não só teve a invasão sul-africana. Seguiram-se depois as consequências que o povo angolano sofreu destas mesmas invasões, mortes, destruição, etc.
As pessoas hoje perguntam por que razão só se negociou com a Frelimo, será que não havia outras forças políticas? Bom, tento explicar do meu ponto de vista o que é que se passou para que essas negociações, com vista à independência, fossem com a Frelimo. Portanto, não se discutia a independência mas sim os mecanismos e os processos em si.
E por que é que não se envolveram outras forças políticas?
Basicamente, porque houve uma falta de compreensão dessas mesmas forças (...) digamos assim, e também, face ao tempo que foi tão curto. Em 90 dias, o mundo mudou em Moçambique.
Antes da Frelimo, a considerada terceira força já falava da independência. Jorge Jardim era também uma das vozes pró-independência. Falando de Jardim, podia também se falar exactamente de uma “independência nacional”? Quais eram os interesses dele e por que é que foi a Beira a adiantar nessa vontade?
Nunca se colocou a questão das chamadas terceiras forças, uma das vias de Jorge Jardim, Joana Simeão, como outra alternativa. De facto estavam centralizadas na Beira. Acho que foi a cidade do país, em termos de grandezas, em que a luta de libertação mais se aproximou e aí forçou a que o debate se fizesse com mais excesso. E essas mesmas forças viram-se perante uma situação em que ou davam passos para frente e conseguiam alcançar os seus objectivos ou estavam condenadas ao fracasso. O que aconteceu foi que o tempo correu com uma tal velocidade e a sua inserção não conseguiu passar a mensagem e os objectivos não conseguiram ser atingidos. A culpa principal foi da sua própria actuação nesse sentido. E é curioso notar que os próprios norte-americanos quando recompõem um pouco a sua política externa, dão instruções às suas embaixadas para que deixem todos os outros e passem só a falar com a Frente de Libertação de Moçambique. Percebeu-se que era a única saída para uma solução de independência e para uma estabilidade do país.
Para além da Beira, Zambézia surge em “Fim do Império” como um dos corredores da nossa história. Como é que podemos olhar para este espaço, onde o próprio governo colonial português tentou apostar?
A Zambézia tem condições muitos específicas. Podemos ver a questão dos prazos. É na Zambézia onde o sistema colonial penetrou com mais tempo e mais presença. Depois a Zambézia faz fronteira com Malawi e os malawianos sempre disseram que as fronteiras não foram escolhidas por eles, ficaram limitados no seu direito ao acesso ao mar. Os malawianos tiveram sempre a esperança e o seu sonho, no tempo de Kamuzu Banda, da reconstituição do chamado império Marávia, uma figura um pouco ficcional. O que digo em relação a Zambézia é que vários movimentos foram criados com o suporte do próprio Banda, para que considerassem uma independência da chamada Rombézia, que era apenas a parte do norte da Zambézia e o resto seria retalhado entre a Tanzania e Zâmbia, segundo a proposta de Banda. Portanto, teríamos Moçambique, não com o actual mapa, mas com um totalmente diferente. É evidente que essas questões são para registo histórico.
Nessa reconstrução que estamos a fazer parece-me que a história de Moçambique também é construída com base nos outros autores não nacionais. E como é que esses influenciaram aquilo que foi o percurso de Moçambique depois da independência?
Essa foi uma das razões que me levou a esta aventura de escrever um livro, com todas as minhas limitantes do tempo, na medida em que não sou escritor, sou empresário. O problema é que isto fica escrito para gerações vindouras. Então entendi que devia registar aquilo que foram as minhas próprias experiências, a minha própria leitura daquilo que foi esse mesmo processo em si, porque, de facto, estavam a escrever-se coisas que não iam de acordo com a realidade absoluta da história do país. E acho que tinha essa responsabilidade. recordo e interpreto as palavras do Dr. Baltazar de que não se deve escrever sobre este período histórico, passaram poucos anos. Não no sentido de não tomar posições ou conclusões apressadas sobre elas, mas que se deve sim registá-las, que se deve apresentá-las, mas que não sejam conclusões definitivas, porque essas são muito difíceis de fazê-las num curto espaço de tempo. Mas registá-las, isso para a memória, para a história, deve ser feito sob pena de se perder definitivamente. E acho que já se perderam, infelizmente, muitas informações devido à morte de várias grandes figuras que tinham memórias vivas deste país.
Como é que um empresário, apesar de ser de uma família de escritores (filho do poeta Fernando Couto e irmão de Mia Couto) entra numa aventura de escrever um livro? será por uma questão de memória ou de génese?
É uma questão de génese. Como eu bem disse, primeiro fui jornalista acidental, mas foi a profissão que eu exerci na vida que mais me deu adrenalina, sobretudo num jornal diário. Portanto, é uma questão de génese, é uma questão de gostar de livros, é uma questão de gostar de leitura e também de sair deste ambiente tão pesado que é o de negócios. Nós temos que ter outras actividades na vida, outros valores, sob pena de corrermos o risco de ficar reduzidos a “business man”. Eu quero ser cidadão de corpo inteiro.
Fonte: opais online
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Samuel