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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Entrevista de Severino Ngoenha: Governo deve rever mecanismo de distribuição da riqueza no país.

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...

Severino Ngoenha, em grande entrevista na Stv.
Para Severino Ngoenha, depois da guerra civil, surgiu  no país uma elite económica que se confunde com a política. Diz também que o desafio do Governo está na distribuição da riqueza, para evitar conflitos.
E esta semana, apresentamos a reflexão do académico e filósofo Severino Ngoenha sobre a actual governação do país e o debate da revisão da constituição da República.
O senhor defendeu, há dias, ser urgente um novo contrato político e social no país. Quais as razões de fundo que o levam a propor isso?
Estou lisonjeado, porque não é fácil exibir-se durante 60 minutos como se tivesse muito a dizer. De qualquer forma, agradeço o convite. Há alguns anos atrás, o seminário da Matola organizou uma espécie de conferência ou congresso em filosofia subordinado ao tema “O papel da filosofia na construção da democracia”. Comigo, estavam presentes Lourenço do Rosário e o actual reitor do Instituto Superior de Relações Internacionais. Nós tentámos, cada um com o seu background cultural e teórico, trazer uma resposta a esta questão. Eu não consegui responder imediatamente a questão, levei quatro a cinco anos a respondê-la, e isso deu origem àquele livro “Os Tempos de Filosofia”. O título “tempos de filosofia” queria dizer que os tempos de filosofia são tempos particulares. Significa que enquanto o senhor que é jornalista tem de responder imediatamente às solicitações, tem que dar informações imediatamente para que as pessoas saibam o que acontece no país e no mundo; enquanto o economista tem o dever de responder imediatamente às conjunturas socioeconómicas nacionais e internacionais; ou o sociólogo interpreta os factos como se apresentam imediatamente; a filosofia precisa de mais tempo. Quer dizer que nós praticamos uma ciência que pelos seus métodos, pelas suas teorias, precisa de muito mais tempo, muito mais vagar para elaborar as suas colaborações, para se chegar, digamos assim, a posições que podem ser mais ou menos fundadas. E nesse livro que saiu quatro ou cinco anos mais tarde - “Os Tempos de Filosofia” - eu dizia, e aqui começo a responder à sua questão, que as sociedades nas quais vivemos, as sociedades ditas modernas, as sociedades do estado de direito, são sociedades contratuais. Significa o quê? Significa que nós somos sujeitos, digamos, sob ponto de vista teórico, que decidem viver juntos e que passam a ser responsáveis ou co-responsáveis uns dos outros. É essencialmente o que se tem chamado contrato de sociedade ou contrato social. Quando numa sociedade o contrato social vem a falhar, nós entramos num prisma de conflito e de violências que podem ser graves. O que significa um contrato social falhado? Nós, em qualquer sociedade, temos elites. podem ser elites políticas, económicas, intelectuais ou mesmo académicas, às quais eu também posso pertencer. Mas nós temos uma responsabilidade moral, quer dizer que o pouco ou o muito que o país tem, de certa maneira, tem que ser em benefício de maior número.
Quando propõe um novo contrato social neste país, quer dizer que o nosso contrato político-social actual está a falhar?
O contrato social tem que ser sistematicamente reabilitado, sistematicamente revisto. Em todos os países, as disparidades entre as classes sociais correm o risco de se acentuar, e quando a discrepância em termos de distribuição entre as classes sociais falha no seu contrato social, isso pode trazer violência.
E como é que caracteriza o nosso contrato político-social?
O nosso país, na chamada primeira república, que é o período que vai desde a independência até ao fim da chamada guerra civil, foi caracterizado por uma política que se queria essencialmente distributiva. Isso é, por um lado, motivado pela conjuntura internacional. recorde-se que Moçambique se torna independente em 1975, quando existiam dois blocos, e os que nos ajudaram na guerra da independência pertenciam ao bloco da esquerda. E nós, quer pela adesão de alguns à ideologia do bloco da esquerda, quer pela ajuda que tínhamos recebido de aqueles que aceitaram lutar connosco para a independência, acabámos entrando no bloco da esquerda. Recorde-se que os africanos, os países do sul, sempre quiseram entrar no não-alinhamento, não quiseram essencialmente entrar no bloco da esquerda. Mas de 1975 até ao fim da guerra, a esquerda foi essencial, porque defendeu princípios de unidade, trabalho e vigilância, o sentido de pertença, o orgulho de ser moçambicano. Naquela altura, aquilo foi, em minha opinião, estritamente necessário. Ora, com o fim da guerra fria, com a derrota da União Soviética e seus aliados, nós não tínhamos alternativa, além de passarmos para a direita, o que aconteceu, aliás, com quase metade dos países do mundo. Os que não passaram, tiveram situações complicadas, basta pensar na Cuba ou na Coreia do Norte. Ora, o que acontece é que o contrato social estabelecido na primeira república tinha que ser revisto, para que, na segunda república, o facto de alguns começarem a emergir como elites económicas não fosse em discrepância com o maior número. O que aconteceu é que tivemos uma aceleração de um pequeno grupo de pessoas que foram tendo meios exorbitantes, através da cooperação internacional, através de uma confusão que se criou entre o político e económico, mas o maior número de pessoas não viu benefício naquilo que foi o crescimento do pouco. Ora, o contrato social significa reabilitar sistematicamente aquilo que é a divisão de bens, de recursos, da riqueza, do crescimento económico, entre as duas classes sociais.
Como isso seria feito?
Isto tem que ser repensado sistematicamente. o que não pode acontecer é que haja pessoas com milhões de dólares nas contas privadas, casas, carros, com benefícios extraordinários, quando a maior parte das pessoas não tem esses benefícios. Não quer dizer que o rico não tenha que ser rico. Nós precisamos de ricos, de elite e de uma burguesa. mas esta tem que ter a consciência da responsabilidade que tem pelo contrato social que estabeleceu com a outra parte da sociedade. Por isso, deve rever sistematicamente o sistema de distribuição de riqueza, de modo a favorecer o maior número de pessoas possível.
Na governação de Chissano havia mais abertura para o diálogo
Criticando a falta de abertura política no país.
Severino Ngoenha recomenda um debate político mais amplo. Diz ainda que o espírito da actual revisão da lei-mãe deve ser a inclusão de vários círculos de opinião na procura de resolução de problemas do país.
Portanto, quer dizer que a actual burguesia, a elite, olha apenas para si e não para a maioria?
Penso que temos uma elite económica emergente que às vezes se confunde com uma elite política, ou, se quisermos, é da elite política que surgiu a económica. Mas, como digo, para que uma elite seja como tal, não basta que seja política, económica ou intelectual, é preciso que tenha uma dimensão moral. e é esta conotação de moralidade que a elite tem que ter para ter a responsabilidade em relação às restantes pessoas. E penso que não posso, honestamente, dizer que o conjunto das pessoas que constituem a elite, hoje, não tem o sentido de responsabilidade para com todos, mas aquilo que aparece aos olhos nus é uma discrepância maior entre as elites e as massas.
O país está hoje a debater a revisão da Constituição da República, o que, se calhar, é uma oportunidade para repensar este contrato social. Que alterações é preciso fazer para responder aos desafios que se impõem ao país com esta revisão constitucional?
Há duas coisas que gostaria de dizer a este propósito. A primeira vai ainda na direcção da pergunta que fez antes. Nós falámos de contrato social, mas eu introduzi um conceito a que chamei contrato político. O que chamo contrato político? Contrato político significa para mim reinventar os mecanismos de debate de ideias ao nível nacional. Durante a presidência de Chissano, nós víamos com frequência encontrarem-se, conversarem, e debaterem ideias, e tornou-se uma prática constante. Até se chamavam “meu irmão Chissano, meu irmão Dhlakama”. Não digo que isso não aconteça agora. temos as chamadas presidências abertas, mas não são um diálogo aberto entre as partes que constituem a elite política ou os fazedores da política nacional. O que chamo contrato político é essa capacidade de fazermos da palavra e do diálogo o mecanismo necessário para continuarmos numa esfera de pacificação contínua de que o país e o continente têm necessidade. Quando se faz uma revisão da constituição, deixemos todo o resto com juristas, aquilo que me parece a falhar é esse contrato político, quer dizer, os pareceres dos partidos políticos, da sociedade civil, para evitar ruptura do diálogo, para evitar conflitos, situações do Zimbabwe, Guiné-Bissau, Madagáscar, Somália. O nosso continente está repleto de conflitos e nós mesmos conhecemos o conflito, sabemos o que sofremos e  ainda estamos a sofrer.
Olhando para a forma como este diálogo está a acontecer, fala de um diálogo franco e aberto. Até hoje, passado ano e meio, ninguém conhece as premissas dessa revisão. Será que temos a abertura para esse diálogo?
Também não sei o que se pretende rever na constituição. Mas o que me parece importante é que devia ser uma prática - num país como o nosso, que sai de uma situação de grandes dificuldades e continua a viver situações difíceis - que introduzíssemos como prática um diálogo, uma espécie de debate aberto, como acontecia na primeira república; que houvesse teses como a Frelimo vai fazer para o seu congresso; que as teses fosse debatidas ao nível dos vários círculos de opinião. Que fosse um debate contraditório, entre os partidos e fora dos partidos. Quanto mais aberto e quanto mais contraditório for o debate, de uma forma dialética, pode encontrar-se as respostas para as questões com que estamos a ser confrontados. É a isto que chamo contrato político, e parece-me que a constituição deve ser o fundamento desse contrato político, mas também deve pousar sob um substrato filosófico, que faz dele um instrumento de diálogo suplementar, para melhorar as condições da viabilidade política em Moçambique.
Falou da necessidade de um diálogo sério e honesto. Acha que actualmente, em Moçambique, o diálogo não é assim?
Aquilo que me parece é fazer do diálogo - quase podia dizer antropologicamente - palavra. Palavra, no sentido daquilo que os antropólogos pensam que é próprio do continente africano, desde a discussão em baixo de uma árvore, como fazem nas nossas povoações, uma prática de auscultação do outro, para saber qual é a sua percepção de um determinado tipo de problema. Digo mais: há muitos actores políticos, sociais, que não fazem parte do parlamento, não fazem parte dos partidos políticos ou outro tipo de activismo. E essas pessoas não são dignas de ideias? Não são dignas de pensamentos? Ou de contribuições importantes? A minha ideia é que se nós fizermos do contrato político um substrato jurídico sobre o qual pousa a nossa constituição, vamos criar espaço, independentemente daquilo que é a configuração jurídica, para que a palavra, a discussão, o diálogo, a troca de opiniões, possa constituir substrato fundamental da governação de Moçambique, e isto, uma vez mais, vai impedir que certos conflitos surjam. Os conflitos não precisam de ser como do Zimbabwe, do Madagáscar (…). violência real ou simbólica existe na nossa sociedade quando há crianças que não têm o que comer, quando nós gastamos num restaurante três mil a quarto mil meticais e pagamos aos nossos empregados mil a mil e quinhentos meticais; isto são situações de violência. Temos que encontrar sistematicamente um mecanismo que nos permita, através da discussão, sair disto, de modo a encontrar uma plataforma para que todos os moçambicanos possam participar.
Olhando o que está a acontecer e do diálogo que devia haver, não está a ser amputada esta possibilidade, quando não se divulga o conteúdo da revisão da constituição da República?
Acho que devíamos saber, mais do que saber o que se quer fazer, o espírito do que se pretende fazer. Aquilo que os filósofos fazem, enfim, aquilo que é o meu trabalho, não é tanto olhar a forma bruta, como os juristas, os constitucionalistas fazem, é pensar naquilo que Montesquieu chamava espírito das leis. O que quero dizer é que o espírito sobre o qual a constituição deve ser revista deve ser de diálogo.
Desde 1990, Moçambique é um país que permite a pluralidade de ideias, através da liberdade de imprensa, de pensamento e de expressão. Olhando “terra a terra”, existe essa pluralidade?
A pluralidade de ideias, nós até podemos dizer que existe, porque se manifesta pela existência de partidos políticos diferentes, que teoricamente deviam ter filosofias políticas diferentes. Quer dizer, um partido político não devia ser simplesmente um aglomerado de amigos ou de pessoas que se decidem meter juntas e criar uma partido. Deviam ter um substrato de pensamento, defender alguns princípios de base.

Fonte: opais online

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Samuel

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