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sábado, 17 de maio de 2014

IN MEMORIAN RUI ARAÚJO (RUI KIMBANDA).

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...

Rui Kimbanda
A luta de emancipação do povo guineense estava ao rubro, numa guerra total, que cobria completamente todos os campos, na altura, transformados em frentes. Mas eram frentes que se confundiam com retaguardas, prova de que se tratava mesmo de uma guerra total, onde as coisas se decidiam, tudo, definitivamente. Frente de guerra propriamente dita, de “ferro contra ferro”, banhado de suor, de lágrimas, lá onde se contavam os feridos e se enterravam os mortos; Frente da chamada ação psicológica, melhor dito, de “guerra psicológica”, onde se procurava captar emoções, orientar a inteligência emocional num determinado sentido, nos nossos bairros e tabancas, também nas nossas escolas - tentativa vã de travar o nacionalismo guineense; Frente cultural, em geral, para moldar e conquistar as nossas almas juvenis, de novo nas escolas, mas na verdade, no vasto campo de manifestações artísticas, do belo, do sublime. Principalmente na música, esse campo privilegiado de socialização para todos, para muitas coisas, para muitas direcções, na altura, em disputa, concorrentes, às vezes complementares e, até mesmo, simbióticas.
O regime colonial, já em transformação, tinha procurado recuperar o nacionalismo guineense, restituindo a liberdade a algumas dezenas de camaradas, regressados do Tarrafal, em 1969.Também quis ganhar o futuro, pela socialização cultural da juventude nos valores que não eram propriamente os que os jovens sentiam serem os seus valores. “Pensar em português, falar português” soava como exigência naquela altura, lembras-te Rui? Era assim o teu tempo, nosso tempo, tempo de véspera, que corria, de transformação, de mudança;
Estudávamos a língua portuguesa a sério, é certo. Mas não como substituto do nosso crioulo, não como sucedâneo da língua da nossa resistência cultural, da nossa resistência política, da nossa nação imaginada, da língua que sussurrávamos aos ouvidos das nossas queridas “N’gosta de bô”. Tempo de revolução cultural, de revolução estética, foi isso mesmo, não estou a exagerar. De par com a revolução política, naquele tempo do fim do colonialismo, quando a independência aí vinha, inevitável, mas que exigia luta, muita luta, sacrifícios; tempo de sonhos, tempo de aurora.
O crioulo tinha saído do gheto, dos subúrbios, da periferia para o centro da cidade, com a grande contribuição, com o notável protagonismo do Capa Negra, o agrupamento musical do Rui Araújo, digo, Rui Kimbanda. Não era possível fazer aquela revolução cultural não sendo ao mesmo tempo anti-colonialista - tal a dialéctica da cultura, da liberdade.
Mas por quê? Porque o nacionalismo guineense, bem entendido, tornou-se cultura; a cultura, por sua vez, tornou-se nacionalista, no bom sentido. Cultura nacional, isso mesmo. Foi essa a substância do nosso tempo, do tempo do Rui Araújo. Foi nesse tempo, caro amigo Rui, que nós crescemos, contigo, juntos. Que a nossa geração adquiriu sua formação cultura básica, a matriz que nos acompanharia para sempre, até hoje, quando começa já a soar a hora da nossa despedida.
Tinha nascido, naquele tempo, o agrupamento musical denominado “Juventude 71” e na sua esteira crescia, mas para o ultrapassar, o Capa Negra: marcante, bonito, de alunos, desses alunos que - como tu, Rui - para tocar, tinham de fazer tudo para também serem bons estudantes. Muito bonito - esse tempo de promessas; de musas inspiradoras; de fé e de esperança; já se percebia ao longe, mas já suficientemente visível, a nossa terra - de sol, suor, verde o mar, do nosso hino nacional.
Sensivelmente na mesma altura nascia o Cobbiana Djazz e na sua esteira, para o acompanhar e, também, mais tarde para o superar, crescia o Mama Djombo. Nós, na altura, andamos muito mais ligados ao Cobbiana do José Carlos e do Aliu Bari.
Mas entre nós - os do Capa Negra, os do Cobiana, os do Mama Djombo - passavam vasos comunicantes, pontes, o fluir das nossas vidas.
Não, não. A independência nacional não podia ter chegado sem os seus artistas, sem a sua consagração cultural pelos músicos e poetas, sem ti ó Rui, sem o Sidónio de Alma Bom, sem o Toni, sem o Carlos Cardoso “Caló”, sem o João Sanfa “Djon Quartel”, sem o Filomeno Pina. Não, não podia ter chegado sem vocês todos - a independência. Improvável, impossível mesmo.
Senhor Presidente Nhamadjo e esposa Maria José Moura , agora viúva Filhos do Rui Araújo, agora órfãos
Permitam-me que diga só mais algumas palavras sobre o ilustre desaparecido - teu marido Zézinha; vosso pai; amigo de sempre de Manuel Serifo Nhamadjo. Rui de Araújo Gomes, o aluno aplicado no Liceu Honório Barreto, depois, Liceu Kwame N’Krumah. Bom estudante na Universidade de Praga, na Checoslováquia, hoje República Checa, lá onde ele se fez engenheiro. Rui, o professor de físico-química, o professor de português. O animador de uma cooperativa agrícola, empresário na sua área profissional, de engenharia civil; o militante, o quadro político, o dirigente partidário; o quadro superior do Estado guineense - o director-geral, o ministro.
Rui, o cidadão, servidor do Estado, músico de fina sensibilidade artística, o homem de cultura. Rui, na sua batalha final, que, sem o saber, seria a sua última batalha, de infra-estruturação rodoviária do nosso país, em grande escala, um projecto que lhe preenchia muito, toda a sua energia, o derradeiro projecto, que ele estava a pilotar.
Por fim, o Rui, em Macau, República Popular da China, com ideias a fervilhar na sua mente, com projectos profissionais em carteira, discreto, empenhado, cheio de esperança, apanhado pela morte traiçoeira.
Ó Rui, chegou a tua hora, caro amigo. Mas, bem vistas as coisas, é propriamente a nossa hora que já chegou. De termos de partir. Às vezes longe da casa, longe da família, sozinho, na solidão, como agora te aconteceu. Na certeza porém de que, seja onde for que a morte nos surpreender, cairemos sempre na mesma terra de Deus, provavelmente, sempre de pé. Como tu.

Discurso fúnebre proferido em Bissau, a17 de Maio de 2014, pelo Dr. Delfim Silva (Ministro dos Negócios Estrangeiros – Guiné-Bissau).



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Samuel

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