As relações entre Portugal e Angola mais do que analisadas pelas Ciências Económicas, Sociológicas, Antropológicas, Políticas ou Históricas, deveriam ser averiguadas e dissecadas num divã, por um terapeuta, não necessariamente judeu, hirsuto ou entendido na interpretação de sonhos, mas competente na análise dos processos fisiológicos escatológicos e nas relações incestuosas ainda que proibido de prescrever ópio ou folhas de coca.
Por Brandão de Pinho
Portugal e Angola comportam-se como aqueles casais desavindos em que a imaturidade transborda transversal, oblíqua, enfim, plena e totalmente. Países imaturos, povos imaturos e relações ainda mais imaturas. À mercê dos demais.
Quando há algum assunto difícil para decidir, ao contrário do que pessoas, instituições e organizações assertivas e responsáveis fazem, estes dois estados independentes entram num tal estado de histeria que trazem à baila todo um rol de assuntos não resolvidos e cumulativos, descentrando-se das coisas que deveriam efectivamente ser tratadas. Tal como nos casais imaturos e sem coragem para enfrentar as agruras quotidianas e inerentes à sua condição. Os psicólogos costumam aconselhar esses casais a fazerem uma lista de problemas a resolver e na discussão cingirem-se a essa. Racionalmente e sem divagações.
Portugal nunca teve coragem de pedir desculpas a Angola e aos Angolanos – como os franceses por exemplo fizeram em relação às suas colónias – pelos séculos de colonização racista; promoção e conivência da escravatura desumana cujo epílogo foram os navios negreiros transatlânticos que transportaram milhões de seres humanos para as Américas como se animais se tratassem; pelo facto de, desdenhando as capacidades e potencialidades dos angolenses, não terem proporcionado aos numerosos povos austrais as ferramentas consolidadas de educação e formação cívica de forma a que – mantendo as suas tradições, cultura e línguas – pudessem ser cidadãos esclarecidos e aptos para enfrentar os desafios dos novos tempos; mas acima de tudo pela maneira como consideraram que as crianças, as mulheres, as pessoas, só porque diferentes, eram obrigatoriamente inferiores e repulsivas.
Portugal nem sequer tratou a realeza nativa – com a qual tinha acordos e tratados comerciais para o tráfego de escravos – partindo do principio que a pele escura e lábios grossos e uma cultura necessariamente diferente – pois o Deserto do Saara impediu que os valores mediterrânicos e do crescente fértil pudessem chegar tão a Sul do continente – configurariam uma menorização como que decretada divina e oficialmente.
Se para com a classe alta angolense era assim nem vale a pena imaginar o que pensariam os portugueses dos povos nativos. Como seus iguais só na parte da capacidade de evangelização porque de resto verificou-se uma exploração bárbara e uma sobranceria baseada em falaciosos sentimentos de superioridade racial. Mas não esqueçamos que essa superioridade racial e exploração era apanágio daqueles tempos, nestas terras do quadrado austral e povos escravizavam-se uns aos outros pelo que Portugal apenas tratou do transporte atlântico. Angolanos caçavam angolanos e levavam-nos para as feitorias lusitanas.
Mas Angola também ainda não teve coragem de solicitar esse pedido de desculpas – até porque não tem fundamentos morais suficientes para isso – sobretudo porque a classe política e administrativa que a representa teve comportamentos – e quiçá ainda tem – ainda mais infames para com o povo de Angola do que os tugas.
Um e outro país enterram a cabeça na areia mas não olvidam -como países imaturos que são – e entre-dentes deixam escapar azedumes, comentários tão extemporâneos quanto desnecessários e perdem oportunidades e tempo para estreitar laços baseados na confiança mútua.
Portugal tem tal sentimento de culpa que se torna ridiculamente condescendente com Angola e literalmente faz tudo o que esta lhe pedir mesmo que tenha de obrigar um órgão independente como é o Ministério Público Português a subordinar-se aos interesses políticos… ou melhor, económicos de alguns. Este comportamento é uma extensão neocolonialista de um passado que se julgava enterrado. Desta vez o acordo com a “monarquia angolana actual” não é tão arrogante, altivo e sobranceiro, pelo contrário, mas uma ínfima parte de Angola colhe benefícios subtraídos à grande parte do povo. Agora a princesa angolana não precisa de se sentar em cima de uma escrava porque o vice-rei português não lhe cedeu uma cadeira numa audiência em que tratariam de armistícios e negociatas de tráfego humano, mas a realidade é terrificamente semelhante e repetida. Como aliás enaltecem os historiadores e saberá SAR El-rei D. João, o exonerador.
Portugal através de uma ministra luso-angolana – mas que nunca visitou oficialmente o seu outro país – obrigou o seu Ministério Público a acocorar-se e isto não quer dizer que em situações excepcionais os países não tenham de se borrifar para os seus órgãos judiciais e abrir excepções como os EUA, o Reino Unido e o Canadá também fazem quando lhes é conveniente.
Desta forma compreende-se que SAR João Lourenço tenha encarcerado um ex-aspirante ao trono e o seu lacaio Jean Claude, para melhor defender os interesses da pátria e o seu erário tão vorazmente delapidado pelos marimbondos. Parece que foi um processo impróprio de um estado de bem e que demonstrou a fragilidade e fraqueza da Justiça Angolana mas não sejamos ingénuos ao ponto de pensar que não pode haver excepções. Pode. E deve. Porque Angola vive um tempo excepcional quase como se estivesse em Estado de Sítio pois a corrupção endémica tornou o país perigosamente degenerescente a tal ponto que a própria república e soberania podem estar ameaçadas.
E a prova desta premissa (a das excepções) é que a democracia parlamentarista mais antiga do mundo (excepto a Islândia ao que parece) vai engolir em seco e irá fazer algo mais grave do que uma ingerência na Justiça. Vai pôr em causa os princípios democráticos mais sagrados e perverter o resultado de um referendo ainda que repetindo-o porventura. Talvez a solução seja fazer um referendo para se saber se tempos excepcionais podem suspender temporária e ocasionalmente processos democráticos. E depois então referendar de novo o Brexit.
Voltando ao assunto da relação dos portugueses com angolanos, permitam-me que conte uma de muitas histórias exemplificativas que fui ouvindo. Há uns 10 anos umas palavras ficaram-me a ecoar na cabeça saídas da boca imunda de um acabado e desvairado professor primário – formado numa instituição universitária ao nível das piores de Angola e que em simultâneo publicava um jornal de sua propriedade onde escrevia notícias e artigos de opinião (com tantos erros gramaticais e de semântica, para não falar do conteúdo, que eu já nem me ria e sinceramente até tinha vergonha que alguém de fora pudesse ler esse Pasquim), editava, era director, comercial, fotógrafo, cobrador de assinaturas e mestre tipógrafo. As suas palavras foram mais ou menos assim: “… se eu fosse mais novo pegava nas minhas maquinetas de tipografia, levava-as para Angola e enchia-me de dinheiro lá…”
É óbvio que a esse e outros, as coisas correram mal e claro que a culpa, depois, nunca era deles mas sim dos matumbos. Às vezes parece-me que pese embora a amizade e o carinho que Portugal e os Portugueses têm por Angola, de uma forma geral, ainda há essa mentalidade de colonizador em que se desvaloriza sobremaneira as capacidades dos angolanos.
Infelizmente temo que por vezes tenham razão. Esta cultura de corrupção transversal a toda a sociedade e em todos os processos corrói o povo e promove mais o chico-espertismo do que o mérito, trabalho e seriedade. Mas é possível mudar as mentalidades com educação e verdadeira Formação Cívica desde que haja uma campanha consertada que comprometa todos os vectores da sociedade. Quanto à educação patriótica emepéliana é desnecessária, pelo menos nesta fase.
Tenho andado a ler muita coisa sobre as civilizações da Mesopotâmia, sobretudo a suméria, babilónia e assíria que antecederam por alguns anos a grande e africaníssima civilização do Egipto e algumas coisas marcaram-me profundamente e vou partilhá-las com o meu amigo leitor porque de certa forma ajudam a perceber o que se passa no Quadrado.
Estes povos andavam sempre em guerra e não podiam confiar uns nos outros nem mesmo casando as filhas com homólogos na sequência de acordos de paz. Angola nem pode confiar nos vizinhos austrais, nem em russos, nem nos chineses e em relação aos americanos tem que usar de diplomacia que eu chamo de Salazarista – na medida em que o beirão conseguiu negociar em simultâneo com ingleses e alemães em plena guerra e até com regimes comunistas como era o caso da China (que ao tempo causavam urticária ao fascismo) – pois o Tio Sam só mete dinheiro se os matumbos se tornarem lacaios obedientes e sofrerem das suas dores! Para os americanos não faz sentido que um país de merda – perdão, mas esta é a tradução da palavra inglesa que Trump usou para designar os países em desenvolvimento – possa ter as suas próprias linhas diplomáticas e as suas convicções! Grande lata! Espero que João Lourenço esteja à altura e dê uma resposta adequada a essa tentativa de ingerência estrangeira.
Nessa vasta zona onde hoje está sobretudo o Iraque, a religião aparece mais como forma de o Estado controlar o comportamento do povo do que propriamente para suprir problemas existenciais e preencher o seu desejo de espiritualidade (curiosamente saiu um estudo há uma semana a comprovar exactamente esse papel de Deus nas Civilizações), pois à medida que as cidades cresciam, os seus habitantes perdiam vínculos de família e clã que eram verdadeiramente a estrutura que controlava, condicionava e aferia os indivíduos de forma a que a ordem social não fosse abalada. Angola como demonstrado na “Operação Resgate” quer instituir uma religião de estado mais ortodoxa e confiável, no caso a Católica, não vá as outras começarem a dar ideias perniciosas e abalar o “status quo”.
Para terminar que isto já vai longo e eu tinha-me proposto escrever um texto curto e grosso, a criação mais extraordinária das civilizações “De-Entre-os-Dois-Rios”, mais do que a escrita, do que a roda e a agricultura foi o célebre compêndio de leis conhecido como Código de Hamurabi. Tudo bem que as civilizações de então não eram minimamente comparáveis em termos de complexidade com as de agora (basicamente as Leis de Hamurabi versavam sobre cumprimentos de contratos, roubos e receptação, escravos, estupros, ajuda a fugitivos e muito curiosamente sobre a difamação e falsos testemunhos pagos com muitas chicotadas e com graves consequências) mas a impressão com que fiquei foi de que não havia margem para grandes injustiças numa sociedade plenamente estruturada e organizada assente em 3 classes (excluindo nobreza e clero): a dos homens livres e proprietários de terras e suponho que pequenos artesãos também (e que não dependiam do palácio e do templo); a classe mediana onde se incluíam funcionários públicos, que tinham certas regalias no uso de terras; e finalmente na base, a dos escravos, que podiam ser comprados e vendidos até que conseguissem – eles próprios – comprar sua liberdade, e neste caso chamo a atenção do leitor, na medida que há meia dúzia de milhares de anos até os escravos poderiam melhorar a sua condição sócio-económica para além de estarem protegidos pelo Código, enquanto que os escravos no território de Angola, antes e depois da chegada de Diogo Cão eram-no para toda a vida e sem direitos comparáveis.
Eram animais que serviam para determinados fins como uma ovelha serve para dar lã, leite, crias e carne e um burro servia para calcorrear as veredas e picadas montanhosas e transportar carga de um lado para o outro fomentando o fenómeno que mais contribuiu para a dispersão de ideias, desenvolvimento e riqueza – o comércio. De certa forma hoje uma grande franja da população angolana que vive abaixo do limiar da pobreza, sendo livre é mais escrava do que outrora só que o amo agora é o dinheiro que serve para consumir e comprar bens e serviços que os governos sabiamente fizeram considerar essenciais, mesmo sendo supérfluos. Uma coisa é certa, os escravos não passavam fome…
Tenho a certeza que se em Angola vigorasse este código, seriámos o país mais poderoso de África, apesar do princípio implícito de “olho por olho, dente por dente” parecer cruel e desumano. Mas garanto que se a magistratura e instituições de justiça angolanas estivessem sob um escrutino tão rigoroso e severo como o daqueles tempos – em que a pena para decisões injustas proferidas pelos juízes era paga com a vida – as pessoas não só confiariam no sistema como deixariam de prevaricar e importunar a ordem social.
fonte: folha8
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Samuel