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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

GUINÉ-BISSAU: ENTRE AUGUSTO TRIGO E SIDNEI CERQUEIRA UM PAÍS A PROCURA DE UM RETRATO.

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...


Fernando Teixeira ( Nandó)

 (MESMO QUE NUMA BARRACA SISTINA)

Serei porventura crítico de arte? Não! Mas terei que sê-lo mesmo que por empréstimo, mesmo que apenas por um dia. Mesmo que apenas até aparecer um que escreva sobre a nossa arte, a nossa cultura, a cultura deste sofrido povo. Já é tempo de termos críticos de arte e outras coisas mais, que não apenas políticos falhados. Países como o nosso, falhados como tal - por obra de políticos falhados que nos governaram - as vezes têm laivos de grandeza aqui e acolá, em artes, literatura, pintura, cinema, musica… e politica.
Se parimos um Amílcar Cabral para depois o assassinar cobarde e impunemente, também parimos um Augusto Trigo para o expulsar, abandonar e esquece-lo por aí, em ruas de amargura, em sítios distantes, em terras de ninguém. Deixa-lo sem nenhum respeito pela sua grandeza, por aí… caminhando, que nem um Fernando Pessoa no seu tempo, nessa mesma cidade, naquele limbo, onde a nossa alma, a alma da nossa Nação, se encontra, procurando por um caminho...
 Aquela assinatura dele, nas paredes do edifício ANCAR, que desde crianças contemplamos com respeito, é o único vestígio de uma existência, que ninguém se lembra, mas que nos diz que um dia ele caminhou por essa rua, passeou nessa zona da cidade, e parou para olhar o mundo com olhos de pintor, de artista, de alguém que era maior que nós. Olhar e ver não é mesma coisa, todos olhamos poucos vêm. Diferentemente de nós, o olhar do artista não vê cores, vive cores. Eis a diferença, que diferentemente apropria, para digerir na alma e plasmar na tela, no papel, na pelicula, no acorde da sua guitarra.
 Mal sabia Augusto Trigo que aquela assinatura humana, talhada na pedra, com pequenos ladrilhos, seria a única homenagem - numa via pública - a todo o seu génio, que este destrambelhado país “faria” ao seu mais talentoso pintor de todos os tempos. Nem uma rua, ruazinha ou ruela foi digno de receber nome deste insigne filho desta terra, que nos deixou imperecíveis obras-primas em patrióticos murais que enalteciam e enaltecem o homem guineense e a sua epopeia de seculos, que ainda hoje podemos contemplar com orgulho. Pois a nação, o patriotismo, se devem ser enaltecidas pela escrita, não menos pela pintura, escultura e música. E temos tantas Ruas “15 e 14 ses” por falta de vultos de valor para denomina-los… mas como esperar o contrário? Se aqueles que dão nome as ruas nada percebem de arte, de cultura e nem de ruas (há que dizê-lo)? E se fosse só isso… nem da vida, da beleza, do amor e de Deus.

 A nossa tragedia tem explicação, tem nomes, tem memória e cheiro. Tem! Tem! Tem! Ai se tem… e como as notas do nosso dinheiro, o único que foi nosso - e não este franco cfa de má memoria, que em má altura veio empobrecer todos os Guineenses e ajudar a destruir a nossa incipiente economia – tem cheiro, textura e cores do Augusto trigo. As notas de mil pesos tinham, as suas pinturas por efigie, e eram tão bonitas que todos queriam guardar um para coleção quando veio a troca de dinheiro. Mas o povo era tão pobre que teve de vende-las... Os “nus” de Trigo, ouso dizer - debaixo da capa deste “crítico de arte”, da vida e do desespero nosso, que ousei encarnar hoje - são os “nus” que imortalizaram a beleza negra perfeita da mulher guineense como jamais foi feito em prosa ou versos, por mais talentosos que fossem.
 Jovens que ainda não conhecem Augusto Trigo, ide ao Ministério do Comércio contempla-lo no seu apogeu, antes que um maluco qualquer seja nomeado Ministro e mande caia-lo de branco. Vão ao antigo Banco nacional (hoje Ministério das Finanças) contempla-lo antes que seja tarde; vão a internet e procurem e vejam a mestria e o talento deste vosso compatriota que nunca os nossos Governantes deram valor. O que nos mitiga a raiva é saber que os nossos Governantes passam e o Pintor Trigo permanecerá por mais cem anos. Nossos Governantes passam todos os dias, e a uma velocidade tal que nem dá para recordar os seus nomes (que fará as suas caratonhas), mas Augusto Trigo é eterno como o é Miguel Ângelo ou Rafael quinhentos anos depois.
Na verdade isto de políticos e artistas há algo que se diga. Haverá algum político holandês que um dia chegara aos calcanhares de Vicente Van Gogh? Ou algum espanhol que algum dia se iguale ao imortal Pablo Picasso? E a esse imenso Leonardo da Vinci? Esse, jamais haverá homem no mundo…
É nessa senda que hoje vim falar-vos também de um jovem pintor. Tão jovem que ainda não se ouviu falar dele como se devia, mas vai-se ouvir, e muito, creio; chama-se Cerqueira, A primeira exposição dele, vi em Lisboa na inauguração do então espaço cultural do Guineense “Gu” Faria em Lisboa, já la vão muitos anos e muitas desgraças. Percebi que tinha talento e troquei uns “trocadilhos” com ele, mas disso não há de se lembrar... Todo o més de Dezembro passado “observei” seus quadros na exposição patente no Centro Cultural Francês de Bissau. Das vezes que lá fui, tentei encontrar um lugar para situa-lo no meu mundo interior de apreciação de arte, não cuidando de saber de era um cubista, impressionista, surrealista, expressionista, simbolista, avanguardista ou seja lá o que for. Tentei esquecer tudo o que sei de pintura, todas as teorias e teorizações, para tentar apenas “gostar” ou “não gostar” do rapaz (pintor). No fim de uma semana, de la ir, gostei do pintor (rapaz).
Bem, não devia dize-lo aqui, mas eu amo a arte em toda a sua acepção. Adoro pintores e a pintura desde a adolescência. Estudei seriamente a pintura na faculdade de arquitetura onde a disciplina “pintura” conjuntamente com a “escultura” era obrigatória para se poder ser arquiteto. Desenhei e pintei muitas “naturezas mortas”, “nus”, “retratos” e “paisagens”, antes de poder passar para o segundo ano de arquitectura. Mesmo assim ainda andei penando debaixo da neve, e com frio congelando os dedos que nem o lápis podiam segurar, a desenhar fachadas neoclássicas, de gosto duvidoso, pelas ruas da cidade. A arte obriga, a arte merece. Já agora, nisto de falar da cultura, amo a sétima arte como se fosse um imperativo existencial. Adoro a música até me doer a alma, e prantear sozinho esse sentir escutando um artista que me toca profundamente. A arquitetura antiga me esmaga como se formiga fosse e me faz cada vez mais entender que nada somos neste mundo … A dança (incluindo o balet que conheci na Rússia) me fascina e encanta. A literatura, a minha paixão maior, enquadra todos estes desencontrados sentimentos. É neste vastíssimo mundo dos meus interesses, mais culturais que artísticos, que tentei enquadrar este jovem promissor que observava atentamente, através dos seus quadros, sem nunca lhe falar.
Quis começar por analisar o “conjunto da obra”, o ritmo “estético” da exposição, o que “perpassa” de quadro para quadro, o que une-os e os faz um só: quadro do Sidnei Cerqueira. Pois um pintor pode pintar cem quadros mas haverá sempre um denominador comum, um fio condutor, uma “alma” própria neles que nos faz saber imediatamente que um quadro é de Modigliani ou Renoir, Gauguin ou Van Goh, Rafael ou Rubens, ou Tintoretto ou Ticiano (ou Rembrandt, porque não?), Salvador Dali ou Picasso.
E assim procurando pela “alma” do pintor dentro dos seus quadros, encontrei por fim aquele fio condutor que os unia a todos, e que seria a "marca registada" deste “novo” pintor. Descobri, na minha apreciação, que era feito de diferentes dimensões: o “movimento” e o “rasto” das cores que esse movimento deixava para trás como a cauda de um cometa. Movimento feito pintura, Pintura feito movimento. Cores movendo-se vertiginosamente. O movimento dado pelas cores vivas e garridas, mais do que pelo “desenho” que as antecede. Vemos movimento mesmo nos “portraits”. Num Che Guevara, que placidamente fuma o seu charuto, satisfeito com a vida (e com a revolução?). Vemo-lo num Mandela que ri e torna a rir numa alegria infantil de homem em paz com a sua consciência. Vemo-lo num Cabral que nos olha sem censura, mas sabendo que de onde o contemplamos não temos a sensação do dever cumprido e nem estamos em paz com a nossa consciência.
E se os “retratos” nos dão a sensação de movimento, as paisagens, as pessoas, as crianças que se movem, trabalham, dançam e cantam no ritmo da vida, não nos dão a “sensação” apenas, são o próprio movimento feito sensação. Não saberei explicar, mas é qualquer coisa como sentir o movimento em nós, mais do que a sensação do movimento que transparece na tela. Por isso comprem um quadro só quando o “sentirem” dentro de vós, na alma e não nos olhos. Os olhos são o espelho da alma, mas só depois da alma estar saciada.
Na exposição do Cerqueira encontrei outra dimensão para além da arte de pintar “tout court”: a dimensão politica. A tentativa de orientar o visitante para uma experiencia maior (não no sentido de valor maior, mas no de acrescentar algo a esse valor intrínseco) do que apenas uma exposição de pintura. Dizeres, frases, sentenças de políticos e homens insignes como Mohandas Gandhi e Mandela. Amílcar Cabral e outros numa comunhão de cores, introspeção e análise no sentido de se ter uma experiência rica, feita de arte, política, história e sentimento humano. Lembrar da biografia de cada vulto político retratado e tentar compreender a mundivisão do pintor, que entendi ser de longe não apenas de um artista plástico mas de um cidadão preocupado... e um conhecedor de cultura que vive a cultura e faz cultura. Isso tudo é que me fez voltar mais vezes também e ter a minha particular compreensão da ligação entre os quadros e os dizeres colados ao seu lado.
Inclusive um dia inadvertidamente o vi pintar “ao vivo e a cores” (passe o colorido pleonasmo) durante uma manhã da exposição, como se fosse uma forma de envolver o visitante e faze-lo participar da magia do momento. Por isso caro Cerqueira, não sei se já encontras-te definitivamente o seu estilo ou a sua vocação; ou mais prosaicamente a sua profissão, pois neste país nunca um artista há-de poder viver condignamente com o fruto do seu trabalho, enquanto formos governados por aqueles nos governam. Mas uma coisa sei: que és poderoso no teu mister e consegues tocar as pessoas. E desse saber que te digo que os teus quadros viverão para além de ti e um dia os teus nossos netos os contemplarão com orgulho como hoje os nossos filhos contemplam os de Augusto Trigo.
Hoje, mais uma vez, “contemplei” a tua exposição, e vi com pena que muitos quadros já “desapareceram” levados pela inexorável lei da vida. Mas ainda vi com agrado o de Albert Einstein que nos “deita a língua para fora” na “reprodução pintada” da sua mais famosa fotografia, mas a mímica desta vez é dirigida a Ray Charles que, em ferente, sentado na pintura do seu piano, só pode estar a tocar “Georgia On My Mind”, a sua mais bela canção de sempre. Fico ali, parado no tempo, escutando os acordes da canção, esquecido que estou numa exposição de pintura... Quando a canção termina, viro-me para sair e deparo-me de novo com Enstein, que indiferente as minhas agoniadas recordações, de uma outra vida, com os olhos muito abertos, deita-me a “língua de fora” outra vez, como que a dar um secreto recado do pintor aos visitantes… que só a ele foi segredado no momento da pintura...
Sim, feliz ou infelizmente, os pintores não pintam quadros para guardar, embora se pudessem guardavam-nas todas, pois em cada um deixam um pouco da sua alma. O pintor, na verdade, só produz um único exemplar em toda a sua vida; e mesmo que goste-mos muito de um quadro, e pedirmos que o pinte de novo, jamais poderá faze-lo “igual” ao original; será sempre mais um “original”. Mesmo que entre um e outro tenha dormido apenas uma noite, essa noite é suficiente para o pintor já ser outra pessoa na manhã seguinte; e “outra pessoa” não pode pintar o mesmo quadro que a “pessoa de ontem” pintou. Por mais perfeita que seja a cópia, será sempre uma imitação. São mais felizes os músicos que têm sempre um exemplar das suas criações (discos) mesmo que venderem milhares de exemplares.
Por isso não peço ao Cerqueira para me repintar aquele que mais gostei - que já não esta ali – pois não será o mesmo (e também, porque não dize-lo, porque não tenho dinheiro para lhe comprar quadros). Mas peço algo incomensuravelmente mais caro, que todo o dinheiro do mundo não paga: peço um retrato para o meu país. Um retrato que “retrate” este meu povo, como o “Guernica” de Picasso retratou o dele, no maior monumento aos milhares de mortos da Guerra Civil Espanhola. Um retrato que “retrate” esta fatídica época em que nos foi dado viver, para que um dia as gerações vindouras vejam o mundo do antanho através dos nossos olhos, através das suas cores.
Como Augusto Trigo – que me deixou com algo que vou levar comigo para a eternidade - que ele deixe algo tão forte e imperecível também, numa “Capela Sistina” qualquer deste destruído país, para este sofrido povo, para que daqui a cinquenta anos, aqueles meninos que ontem olhavam as suas pinturas através do vidro, saibam que um seu compatriota amou a arte, mas amou o seu povo mais do que a própria arte.
E na hora de pintar este mural (só pode ser um mural), que em si, caro Cerqueira, se reencarnem os dons inesquecíveis dos Galogas, Diamantinos e outros tantos pintores Guineenses que já não são deste mundo, mas que nos deixaram com recordações feitas de cores que contavam da nossa existência. Já és como eles no retratar o nosso viver e morrer, mas que sejas um dia o justo continuador deles e de Augusto Trigo, CarBar, Caíto Barros e tantos outros pintores que nunca demos valor – nem vivos nem mortos – como nunca damos valar a nada que realmente valha a pena neste país.

Fernando Teixeira,
Crítico de arte por um dia.


Bissau, 24 de Janeiro de 2014

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Samuel

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