Fernando Teixeira ( Nandó)
(MESMO QUE NUMA BARRACA SISTINA)
Serei porventura crítico de arte?
Não! Mas terei que sê-lo mesmo que por empréstimo, mesmo que apenas por um dia.
Mesmo que apenas até aparecer um que escreva sobre a nossa arte, a nossa
cultura, a cultura deste sofrido povo. Já é tempo de termos críticos de arte e
outras coisas mais, que não apenas políticos falhados. Países como o nosso,
falhados como tal - por obra de políticos falhados que nos governaram - as
vezes têm laivos de grandeza aqui e acolá, em artes, literatura, pintura,
cinema, musica… e politica.
Se parimos um Amílcar Cabral para
depois o assassinar cobarde e impunemente, também parimos um Augusto Trigo para
o expulsar, abandonar e esquece-lo por aí, em ruas de amargura, em sítios
distantes, em terras de ninguém. Deixa-lo sem nenhum respeito pela sua
grandeza, por aí… caminhando, que nem um Fernando Pessoa no seu tempo, nessa
mesma cidade, naquele limbo, onde a nossa alma, a alma da nossa Nação, se
encontra, procurando por um caminho...
Aquela assinatura dele, nas paredes do
edifício ANCAR, que desde crianças contemplamos com respeito, é o único
vestígio de uma existência, que ninguém se lembra, mas que nos diz que um dia
ele caminhou por essa rua, passeou nessa zona da cidade, e parou para olhar o
mundo com olhos de pintor, de artista, de alguém que era maior que nós. Olhar e
ver não é mesma coisa, todos olhamos poucos vêm. Diferentemente de nós, o olhar
do artista não vê cores, vive cores. Eis a diferença, que diferentemente
apropria, para digerir na alma e plasmar na tela, no papel, na pelicula, no
acorde da sua guitarra.
Mal sabia Augusto Trigo que aquela assinatura
humana, talhada na pedra, com pequenos ladrilhos, seria a única homenagem -
numa via pública - a todo o seu génio, que este destrambelhado país “faria” ao
seu mais talentoso pintor de todos os tempos. Nem uma rua, ruazinha ou ruela
foi digno de receber nome deste insigne filho desta terra, que nos deixou
imperecíveis obras-primas em patrióticos murais que enalteciam e enaltecem o
homem guineense e a sua epopeia de seculos, que ainda hoje podemos contemplar
com orgulho. Pois a nação, o patriotismo, se devem ser enaltecidas pela
escrita, não menos pela pintura, escultura e música. E temos tantas Ruas “15 e
14 ses” por falta de vultos de valor para denomina-los… mas como esperar o contrário?
Se aqueles que dão nome as ruas nada percebem de arte, de cultura e nem de ruas
(há que dizê-lo)? E se fosse só isso… nem da vida, da beleza, do amor e de
Deus.
A nossa tragedia tem explicação, tem nomes,
tem memória e cheiro. Tem! Tem! Tem! Ai se tem… e como as notas do nosso
dinheiro, o único que foi nosso - e não este franco cfa de má memoria, que em
má altura veio empobrecer todos os Guineenses e ajudar a destruir a nossa
incipiente economia – tem cheiro, textura e cores do Augusto trigo. As notas de
mil pesos tinham, as suas pinturas por efigie, e eram tão bonitas que todos
queriam guardar um para coleção quando veio a troca de dinheiro. Mas o povo era
tão pobre que teve de vende-las... Os “nus” de Trigo, ouso dizer - debaixo da
capa deste “crítico de arte”, da vida e do desespero nosso, que ousei encarnar
hoje - são os “nus” que imortalizaram a beleza negra perfeita da mulher
guineense como jamais foi feito em prosa ou versos, por mais talentosos que
fossem.
Jovens que ainda não conhecem Augusto Trigo,
ide ao Ministério do Comércio contempla-lo no seu apogeu, antes que um maluco
qualquer seja nomeado Ministro e mande caia-lo de branco. Vão ao antigo Banco
nacional (hoje Ministério das Finanças) contempla-lo antes que seja tarde; vão
a internet e procurem e vejam a mestria e o talento deste vosso compatriota que
nunca os nossos Governantes deram valor. O que nos mitiga a raiva é saber que
os nossos Governantes passam e o Pintor Trigo permanecerá por mais cem anos.
Nossos Governantes passam todos os dias, e a uma velocidade tal que nem dá para
recordar os seus nomes (que fará as suas caratonhas), mas Augusto Trigo é
eterno como o é Miguel Ângelo ou Rafael quinhentos anos depois.
Na verdade isto de políticos e
artistas há algo que se diga. Haverá algum político holandês que um dia chegara
aos calcanhares de Vicente Van Gogh? Ou algum espanhol que algum dia se iguale
ao imortal Pablo Picasso? E a esse imenso Leonardo da Vinci? Esse, jamais
haverá homem no mundo…
É nessa senda que hoje vim falar-vos
também de um jovem pintor. Tão jovem que ainda não se ouviu falar dele como se
devia, mas vai-se ouvir, e muito, creio; chama-se Cerqueira, A primeira
exposição dele, vi em Lisboa na inauguração do então espaço cultural do
Guineense “Gu” Faria em Lisboa, já la vão muitos anos e muitas desgraças.
Percebi que tinha talento e troquei uns “trocadilhos” com ele, mas disso não há
de se lembrar... Todo o més de Dezembro passado “observei” seus quadros na
exposição patente no Centro Cultural Francês de Bissau. Das vezes que lá fui,
tentei encontrar um lugar para situa-lo no meu mundo interior de apreciação de
arte, não cuidando de saber de era um cubista, impressionista, surrealista, expressionista,
simbolista, avanguardista ou seja lá o que for. Tentei esquecer tudo o que sei
de pintura, todas as teorias e teorizações, para tentar apenas “gostar” ou “não
gostar” do rapaz (pintor). No fim de uma semana, de la ir, gostei do pintor
(rapaz).
Bem, não devia dize-lo aqui, mas
eu amo a arte em toda a sua acepção. Adoro pintores e a pintura desde a
adolescência. Estudei seriamente a pintura na faculdade de arquitetura onde a
disciplina “pintura” conjuntamente com a “escultura” era obrigatória para se
poder ser arquiteto. Desenhei e pintei muitas “naturezas mortas”, “nus”,
“retratos” e “paisagens”, antes de poder passar para o segundo ano de
arquitectura. Mesmo assim ainda andei penando debaixo da neve, e com frio
congelando os dedos que nem o lápis podiam segurar, a desenhar fachadas
neoclássicas, de gosto duvidoso, pelas ruas da cidade. A arte obriga, a arte
merece. Já agora, nisto de falar da cultura, amo a sétima arte como se fosse um
imperativo existencial. Adoro a música até me doer a alma, e prantear sozinho
esse sentir escutando um artista que me toca profundamente. A arquitetura
antiga me esmaga como se formiga fosse e me faz cada vez mais entender que nada
somos neste mundo … A dança (incluindo o balet que conheci na Rússia) me
fascina e encanta. A literatura, a minha paixão maior, enquadra todos estes
desencontrados sentimentos. É neste vastíssimo mundo dos meus interesses, mais
culturais que artísticos, que tentei enquadrar este jovem promissor que
observava atentamente, através dos seus quadros, sem nunca lhe falar.
Quis começar por analisar o
“conjunto da obra”, o ritmo “estético” da exposição, o que “perpassa” de quadro
para quadro, o que une-os e os faz um só: quadro do Sidnei Cerqueira. Pois um
pintor pode pintar cem quadros mas haverá sempre um denominador comum, um fio
condutor, uma “alma” própria neles que nos faz saber imediatamente que um
quadro é de Modigliani ou Renoir, Gauguin ou Van Goh, Rafael ou Rubens, ou
Tintoretto ou Ticiano (ou Rembrandt, porque não?), Salvador Dali ou Picasso.
E assim procurando pela “alma” do
pintor dentro dos seus quadros, encontrei por fim aquele fio condutor que os
unia a todos, e que seria a "marca registada" deste “novo” pintor.
Descobri, na minha apreciação, que era feito de diferentes dimensões: o
“movimento” e o “rasto” das cores que esse movimento deixava para trás como a
cauda de um cometa. Movimento feito pintura, Pintura feito movimento. Cores
movendo-se vertiginosamente. O movimento dado pelas cores vivas e garridas,
mais do que pelo “desenho” que as antecede. Vemos movimento mesmo nos
“portraits”. Num Che Guevara, que placidamente fuma o seu charuto, satisfeito
com a vida (e com a revolução?). Vemo-lo num Mandela que ri e torna a rir numa
alegria infantil de homem em paz com a sua consciência. Vemo-lo num Cabral que
nos olha sem censura, mas sabendo que de onde o contemplamos não temos a
sensação do dever cumprido e nem estamos em paz com a nossa consciência.
E se os “retratos” nos dão a
sensação de movimento, as paisagens, as pessoas, as crianças que se movem,
trabalham, dançam e cantam no ritmo da vida, não nos dão a “sensação” apenas,
são o próprio movimento feito sensação. Não saberei explicar, mas é qualquer
coisa como sentir o movimento em nós, mais do que a sensação do movimento que
transparece na tela. Por isso comprem um quadro só quando o “sentirem” dentro de
vós, na alma e não nos olhos. Os olhos são o espelho da alma, mas só depois da
alma estar saciada.
Na exposição do Cerqueira
encontrei outra dimensão para além da arte de pintar “tout court”: a dimensão
politica. A tentativa de orientar o visitante para uma experiencia maior (não
no sentido de valor maior, mas no de acrescentar algo a esse valor intrínseco)
do que apenas uma exposição de pintura. Dizeres, frases, sentenças de políticos
e homens insignes como Mohandas Gandhi e Mandela. Amílcar Cabral e outros numa
comunhão de cores, introspeção e análise no sentido de se ter uma experiência
rica, feita de arte, política, história e sentimento humano. Lembrar da
biografia de cada vulto político retratado e tentar compreender a mundivisão do
pintor, que entendi ser de longe não apenas de um artista plástico mas de um
cidadão preocupado... e um conhecedor de cultura que vive a cultura e faz
cultura. Isso tudo é que me fez voltar mais vezes também e ter a minha
particular compreensão da ligação entre os quadros e os dizeres colados ao seu
lado.
Inclusive um dia inadvertidamente
o vi pintar “ao vivo e a cores” (passe o colorido pleonasmo) durante uma manhã
da exposição, como se fosse uma forma de envolver o visitante e faze-lo
participar da magia do momento. Por isso caro Cerqueira, não sei se já
encontras-te definitivamente o seu estilo ou a sua vocação; ou mais
prosaicamente a sua profissão, pois neste país nunca um artista há-de poder
viver condignamente com o fruto do seu trabalho, enquanto formos governados por
aqueles nos governam. Mas uma coisa sei: que és poderoso no teu mister e
consegues tocar as pessoas. E desse saber que te digo que os teus quadros
viverão para além de ti e um dia os teus nossos netos os contemplarão com
orgulho como hoje os nossos filhos contemplam os de Augusto Trigo.
Hoje, mais uma vez, “contemplei” a
tua exposição, e vi com pena que muitos quadros já “desapareceram” levados pela
inexorável lei da vida. Mas ainda vi com agrado o de Albert Einstein que nos
“deita a língua para fora” na “reprodução pintada” da sua mais famosa
fotografia, mas a mímica desta vez é dirigida a Ray Charles que, em ferente,
sentado na pintura do seu piano, só pode estar a tocar “Georgia On My Mind”, a
sua mais bela canção de sempre. Fico ali, parado no tempo, escutando os acordes
da canção, esquecido que estou numa exposição de pintura... Quando a canção
termina, viro-me para sair e deparo-me de novo com Enstein, que indiferente as
minhas agoniadas recordações, de uma outra vida, com os olhos muito abertos,
deita-me a “língua de fora” outra vez, como que a dar um secreto recado do
pintor aos visitantes… que só a ele foi segredado no momento da pintura...
Sim, feliz ou infelizmente, os
pintores não pintam quadros para guardar, embora se pudessem guardavam-nas
todas, pois em cada um deixam um pouco da sua alma. O pintor, na verdade, só
produz um único exemplar em toda a sua vida; e mesmo que goste-mos muito de um
quadro, e pedirmos que o pinte de novo, jamais poderá faze-lo “igual” ao
original; será sempre mais um “original”. Mesmo que entre um e outro tenha
dormido apenas uma noite, essa noite é suficiente para o pintor já ser outra
pessoa na manhã seguinte; e “outra pessoa” não pode pintar o mesmo quadro que a
“pessoa de ontem” pintou. Por mais perfeita que seja a cópia, será sempre uma
imitação. São mais felizes os músicos que têm sempre um exemplar das suas
criações (discos) mesmo que venderem milhares de exemplares.
Por isso não peço ao Cerqueira
para me repintar aquele que mais gostei - que já não esta ali – pois não será o
mesmo (e também, porque não dize-lo, porque não tenho dinheiro para lhe comprar
quadros). Mas peço algo incomensuravelmente mais caro, que todo o dinheiro do
mundo não paga: peço um retrato para o meu país. Um retrato que “retrate” este
meu povo, como o “Guernica” de Picasso retratou o dele, no maior monumento aos
milhares de mortos da Guerra Civil Espanhola. Um retrato que “retrate” esta
fatídica época em que nos foi dado viver, para que um dia as gerações vindouras
vejam o mundo do antanho através dos nossos olhos, através das suas cores.
Como Augusto Trigo – que me deixou
com algo que vou levar comigo para a eternidade - que ele deixe algo tão forte
e imperecível também, numa “Capela Sistina” qualquer deste destruído país, para
este sofrido povo, para que daqui a cinquenta anos, aqueles meninos que ontem
olhavam as suas pinturas através do vidro, saibam que um seu compatriota amou a
arte, mas amou o seu povo mais do que a própria arte.
E na hora de pintar este mural (só
pode ser um mural), que em si, caro Cerqueira, se reencarnem os dons
inesquecíveis dos Galogas, Diamantinos e outros tantos pintores Guineenses que
já não são deste mundo, mas que nos deixaram com recordações feitas de cores
que contavam da nossa existência. Já és como eles no retratar o nosso viver e
morrer, mas que sejas um dia o justo continuador deles e de Augusto Trigo,
CarBar, Caíto Barros e tantos outros pintores que nunca demos valor – nem vivos
nem mortos – como nunca damos valar a nada que realmente valha a pena neste país.
Fernando Teixeira,
Crítico de arte por um dia.
Bissau, 24 de Janeiro de 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é sempre bem vindo desde que contribua para melhorar este trabalho que é de todos nós.
Um abraço!
Samuel