Tudo começou com a morte brutal de um jovem mal saído da adolescência, curtos 20 anos e toda uma vida pela frente truncada. Jorge Valério Coelho da Cruz, Tucho para os mais íntimos e Jay Jay no ambiente da música alternativa que faz heróis populares à velocidade de um post nas redes sociais.
Uma história rocambolesca, digna dos melhores achados da literatura underground criada para exaltar os gozos obscuros da mente, o sangue, a dor, a mutilação, a capacidade humana de infligir sofrimento ao seu semelhante. Desinteligências absurdas, que terão começado com insultos menores, ganharam a expressão de um sequestro inopinado que acabou com uma violenta agressão seguida de morte do jovem de apenas 20 anos, tendo como atacantes outros rapazes da sua geração.
Ao estilo das mafias mais sinistras e impiedosas, onde a honra é sempre lavada com o sangue das vítimas. Jorge Valério desapareceu da circulação, foi mantido em local secreto pelos seus algozes, sofreu torturas horríveis, até os olhos lhe foram arrancados, depois de regado com gasolina o seu corpo moldado em ginásios. Rituais macabros que deixaram a sociedade em estado de choque e desencadearam a onda de indignação que depois se transformou em vontade espontânea de sair à rua para condenar a violência em todas as suas formas de manifestação. A mobilização foi rápida, prática, sem grandes arengas nem sequer necessidade de tutelas políticas, o factor que, habitualmente, mais omnipresente está para agitar paixões e movimentar as massas entre nós.
Usaram-se de modo profuso as redes sociais, as mesmas onde a indignação e a revolta dos citadinos – jovens em grande maioria – se tinham manifestado primeiro. Um jovem estava transformado num símbolo de inconformismo de toda uma geração e os sentimentos desaguaram no que se intuiu desde o primeiro momento como saída inevitável: a marcha de milhares para um ‘basta’ ruidoso ao crescendo de violência! O relato 17 horas de sábado, no calendário 6 de Outubro. No alto, a armação de cores para o mágico pôr-do-sol dos trópicos, a arrepiante beleza de que se sente a falta quando o astro rei se perde nas profundezas do oceano, numa das mais perfeitas ilusões ópticas com que nos brinda a mãe Natureza.
Cá em baixo, em silêncio, os que assistem ao espectáculo cromático quase encontram razões para se perguntarem se vale a pena todo esse esplendor quando a cidade, com o crepúsculo e depois a noite, se vai entregar aos odiosos fantasmas de sempre, escondendo corpos insepultos e violentados nos becos e labirintos dominados por marginais indiferentes ao valor da vida? Mas a marcha faz-se. Aliás, é exactamente para impedir que se desvirtue a magia e o encanto do pôr-do-sol de cada dia e se nos retire o direito a cá andarmos que todos se enfileiram, tomam o calçadão reabilitado e partem em direcção à Ilha do Cabo, esmagados pela dor da perda uns, entusiasmados com a simples adesão outros, ensimesmados nas suas reflexões outros ainda. À frente, em passo firme e determinado, segue uma figura velha conhecida dos luandenses, um sacerdote. Não há nem políticos nem governantes, muito menos militares.
É quase uma marcha de família aberta a vizinhos. O homem da batina branca sofre. Parente do Tucho, o jovem assassinado. Proferirá dentro em breve, na Ilha, uma oração de catarse. Cônego Apolónio Graciano. De repente, transformado no rosto da marcha, que com o cair da noite chega à avenida Murtala Mohamed. Os jovens, muitos milhares, concentram-se na areia, num improvisado recinto varrido pela brisa do mar. Acendem-se velas e algumas lágrimas escorrem em rostos carregados de emoção e sentimentos de pesar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é sempre bem vindo desde que contribua para melhorar este trabalho que é de todos nós.
Um abraço!
Samuel