(O LEGADO DO GUILLAUME THIERIOT)
“Guineenses bô tem ku ossa!”
Guillaume Thieriot , 26 de Julho de 2013
ALGO QUE FICOU, PASSANDO…
Hoje, dia cinco de Agosto, o Sr. Guillaume Thieriot partiu de vez do nosso país. Possivelmente partiu alguns corações, provavelmente deixará saudades e algumas lágrimas recolhidas a pressa, como diria o poeta. Cinco dias antes, Quarta-feira, 31 de Julho, na biblioteca do Centro Cultural Franco Guineense de Bissau, resolvi começar a escrever este texto sobre ele ainda “sob” ele, pois dentro de dias deixaria de ser o “nosso” Director, do “nosso” Centro Cultural Francês de Bissau. Escrever sobre ele, nessa sala de leitura, enquanto ainda era o director do Centro, mesmo que por apenas mais alguns dias, era uma espécie de solitária homenagem que lhes prestava. Uma homenagem, silenciosa e íntima (pois só conhecida por mim) ao homem simples mas especial que é Guillaume Thieriot.
Essa atitude, que agora na quietude desta outra sala, parece-me pueril, veio a ter outros significados que não apenas os que motivaram o meu objetivo inicial (escrever sobre as suas realizações, para que no futuro algo ficasse “escrito na pedra”, e não apenas nas recordações esparsas de cada um e apenas lembradas nas “passadas” futuras dos contemporâneos que com o tempo caem no esquecimento colectivo).
Não sei se a proximidade da separação pode não aguçar o engenho, mas repousa os sentires e permite um olhar, se não diferente, pelo menos mais equidistante e quiçá mais justo; mas também, pela frescura da memória, permite um contar mais autêntico. Devo escrever agora, nos ecos da despedida, na profusão das homenagens, todas merecidas, que este Senhor da Cultura teve, por ocasião da sua partida. Mas encontrar para esta minha, algo “mais”, algo de perene, algo que não se dissipa com as últimas bolhas da última garrafa de champagne.
Mas como abordar este homem social e culturalmente multifacetado de forma correta e autêntica, de modo a não influenciar o leitor com as nossas pretensas afinidades, criando uma simpatia artificial por uma personagem ideal (que não os há) que teria vivido entre nós numa determinada altura? Mas como uma homenagem é sempre uma homenagem, correremos sempre esse risco, mas quando não o ignorarmos, mas pelo contrário seja um dos pressupostos da nossa análise, em vez de um problema, torna-se uma mais-valia.
Não sei como “chegarei” ao Guillaume Thieriot, e como dali o levarei a vós, e se serei bem-sucedido, mas independentemente do que daqui “sair”, como esta é também a minha despedida, para elucidar os meus sentimentos, direi simplesmente como ele disse no seu discurso de despedida na embaixada de França “(…) Continuo até com muitas interrogações. Mas talvez um papel me venha, ou melhor dizer, não um papel, mas um líquido. Aquele líquido onde se mergulha um papel para revelar uma fotografia. (…)”
Estas frases, metafóricas, como ele as caracteriza, talvez me sirvam também nesta tentativa de “revelar” - mesmo que apenas um pouco, mesmo que apenas “a preto e branco”, na falta de um rolo colorido ainda - algo sobre ele, e principalmente sobre o seu legado, que ainda não foi dito ou apreendido. Por isso começo assim, sem pressas de mansinho, pois como disse o saudoso Amílcar Cabral “porque tenho pressa é que vou devagar”.
Mas quando numa compulsão quase Descartiana, decidi assim proceder, não esperava que essa inusitada decisão levar-me-ia tão profundamente ao meu passado; a recordar coisas que tinha sepultado, há muitos anos, naquele cemitério de recordações mortas, que carregamos toda a vida, mas onde cuidadosamente evitamos entrar; a lembrar coisas que não escrevi quando devia, no seu tempo, no calor dos acontecimentos, e hoje estou deveras arrependido. Por isso entendi que é este o momento de escrever sobre algo, feito de homens e actos, que mais do que passou… ficando, ficou passando. Pois se “nada acontece até ser contada” como disse Virgínia Woolf, aqui nestes tempos, algo “aconteceu” e mesmo que não fosse contada, mereceria sê-lo.
O INVENTOR DA CRIOLOFONIA
Em Bissau, nos tempos que correm, raramente nos aparecem individualidades tão marcantes, seres humanos tão relevantes, como ele, pela sólida cultura, pela competência e vontade de fazer, alem de uma enorme simpatia. Resumindo, o Guillaume Thieriot era um conhecido com quem poucas vezes (muito menos do que quereria) conversei sobre o nosso país, literatura, música, politica ou seja lá o que for, que obviamente eram do meu interesse, mas que também, pelos seus actos e realizações, notoriamente dele. Cruzávamos muitas vezes pelo all do Centro Cultural Francês. Encontrávamos nas vernissages, estreias de filmes, lançamento de livros, espetáculos musicais, seminários, encontros e outros eventos e cerimónias, que através da sua pessoa, o Centro realizava.
Há uns meses, num artigo, em que falava da “crioulofónia” - palavra patenteada por ele, que é o mais novo vocábulo da língua crioula -, (texto esse publicado na fecebook na página da “Terceira Via Guineense”), acabei falando deste senhor, nestes termos: “(…) Nas artes plásticas, na música, cinema e agora em prol da nossa língua nacional de comunicação, o seu legado é enorme e será certamente lembrado por muitos bons anos. Uma pessoa que por acaso do destino reúne num só individuo culturas diferentes como o Francês, o Brasileiro, o Guineense e seguramente outros que não sei. Cosmopolita por excelência, conhecedor da realidade Guineense, falante do Crioulo, amante da cultura Guineense, proporcionou-nos a todos durante estes últimos tempos um verdadeiro reencontro com a nossa própria cultura. Dele pode-se dizer, sem risco de errar, que “se mais não fez, mais não pôde.”
Estas palavras soam a um panegirico, mas não o são; são apenas uma constatação que centenas de pessoas podem repetir sem nenhum problema de erarem. Por isso falar dele, por quem já disse o anteriormente dito, não deveria ser difícil; era apenas, numa questão de justiça, baseando nesse texto, escrever por exemplo “tudo o que disse atrs é verdade, mas pequei por modéstia; é necessário dizer que tudo isso é verdadeiro, mas numa dimensão três vezes mais, etc., etc., ...”
Brincadeiras aparte (Guillaume gostava muito de brincar), mas na verdade, como o texto frisa, como “ser humano” , Guillaume Thieriot era “grande”; naquela acepção de grandeza que tem como base a “bondade de realizar” que uma vez frisei (sem ser entendido cabalmente) na caracterização da personalidade de Amílcar Cabral.
No dia da sua despedida na embaixada francesa, juntou, às três partes formais, constituintes de um discurso, três línguas dos presentes, mas não disse que falando em crioulo, português e francês, juntou estas três línguas a três outras dimensões de uma maneira magnífica: respeito por nós, falantes do crioulo, respeito pela língua do seu país, o francês e como não podia deixar de ser (sendo um diplomata) respeito pela língua oficial do nosso país. E isto não tem ligação com a “língua” mas com “dignidade”. Ou então não seria ele a dizer: « L’une de mes plus belles images au centre culturel, si je dois en garder une, cela aura été la clôture, la kabantada de la sumana di kriolofunia. Avec cette forêt aérienne de textes suspendus (…) cette littérature de corde, cette petite jungle de papier et de mots jetés en créole, et surtout tous ces visages heureux, tellement heureux, peut-être tout simplement de se voir reconnus dans leur dignité linguistique.
A maioria das pessoas tem dificuldade em respeitar algo, que sem ser abstracto, dificilmente é uma categoria mensurável ou mesmo “real” no seu pensamento, como a língua, embora a usem todos os momentos. Pois se o nosso respeito pela língua não tem a ver estritamente com a grandeza da “pátria” dessa língua, então vem do quê? Do respeito pela cultura (literária ou não) dessa pátria? Ou do respeito que temos pelos falantes dessa língua? Ou do respeito que temos por nós próprios, então que falantes dessa língua? Tudo isto não está ainda resolvido em mim.
Discuti estas categorias com o director Thieriot no seguimento de uma intervenção minha na comemoração de aniversário de um banco comercial, no Centro Cultural Francês, em que o chairman era ele. Nessa comemoração, a qui fiz menção atrás, critiquei o facto de um orador convidado falar em francês sem nenhum tradutor como se estivesse num país francófono. Mas pode ser que alguém pensou que era por não gostar de francês, mas falava apenas do respeito que os países e cidadãos de cada país devem ter uns pelos outros pertencendo ou não a uma organização transnacional. Sempre gostei da língua francesa de forma especial e tratei de a aprender nesse mesmo Centro cultural quando ainda no Liceu e depois da faculdade.
Mas criticando o facto do orador se ter exprimido na sua língua, “sem respeito” pelos falantes de português, não retirava o profundo respeito pela língua de Victor Hugo e Balzac, que adoro mais do que respeito a cultura francesa, por tudo que deu ao mundo. Entendo mesmo que nunca, no campo da cultura - se excetuarmos Hélade - outro país deu tanto ao mundo como a França. Quando digo “tudo” quero mesmo dizer “tudo”, no sentido que é tanto que nenhum outro vocábulo pode abarca-lo senão “tudo”. Mas também uso o “tudo” no sentido que “tudo” foi válido, mesmo o “terror” Jacobino da Revolução, que de uma forma enviesada, veio basear-se e legitimar-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já proclamada.
Mas só volto a isto porque entendo que neste discurso de despedida – de que vos apresento fragmentos, para que possam entender quem foi o Guillaume Thieriot - ele, inadvertidamente, de certa maneira, dava respostas às minhas questões: “(…) Reconnaître une culture, reconnaître une langue, c’est reconnaître une personne, dans ses origines et donc dans son devenir, dans un même mouvement continu, des origines au devenir, comme celui qui va de la semence à la moisson. Entre les deux, c’est une affaire de confiance. Mais que l’on peut aider à gagner, par la reconnaissance d’un regard, d’une histoire, d’une langue… (…)"
Falei das línguas que Thieriot dominava, escrevendo nelas e comunicando com elas. Não sei se “pensava” nelas. Só falamos realmente uma língua quando “pensamos” nela antes de falar “com ela”. O crioulo tem um “problema” pois muitos seus falantes embora não “pensem com ela” , falam-na lindamente. por isso os suecos, espanhóis e outros falam-na lindamente e na perfeição, embora pensem primeiro na sua língua materna e depois traduzem para crioulo, com tanta rapidez que nem notam o que estão fazendo. Ele presta-se também a esta “rapidez”, pois pela sua natureza podemos traduzir palavra por palavra, sem ser preciso primeiro traduzir frases inteiras, como nas outras línguas.
No Guillaume, percebi que interiormente, consubstanciava-se a dimensão respeito por ele mesmo, o homem - sem ser o único que nessa sala falava essas três línguas - que tinha com cada uma delas uma relação particular que ultrapassava de longe a simples utilização que a maioria faz delas, simples ferramentas de comunicação. Mas sabemos que nunca é apenas um instrumento de comunicação e interação, porque cada povo é aquilo que é porque a sua língua é aquela que usa; e inversamente a língua de cada povo é “essa” e não outra porque é determinada pela idiossincrasia do povo que o cria todos os dias da sua existência. Embora isto é muito mais complexo do que estas duas linhas possam exprimir. Mas se basicamente o “falar” crioulo pressupõe a priori pensar “em crioulo” , e este assenta numa aculturação crioula, um sentir “crioulo” comum.
Não sei como era com Guillaume, se alguma vez pensou em crioulo, mas falava crioulo na perfeição e usava-a também com lisura. se “pensava em crioulo” antes de falar crioulo ou se traduzia do francês (ou português) , mas sei que “pensava no futuro e presente do crioulo”. Há dias vi escrito na porta da casa de banho do centro a seguinte frase: “kasa de banio i di nós tudo, pabia di kila, bu dibi di usal…”, bom nunca vi em nenhum outro sítio em Bissau, um tal uso do crioulo parecido. Se um homem é a língua que fala, então, tout court, Guillaume também era “o crioulo” que falava maravilhosamente bem; até com uma “perfeição gramatical” que acho surrealista. Basta ir ao Centro Cultural Francês ver os dizeres em crioulo que lá estão colados. Na verdade poderia chama-lo também, sem errar, de “o homem que foi a língua crioula” em analogia ao titulo deste texto.
GUI DE BOLAMA, GUILLAUME DE BISSAU, DIRECTOR THIERIOT E UM CERTO GUILHERME, QUATRO HETERÓNIMOS DE UMA EXISTÊNCIA
Duas semanas antes do “dia da compulsão”, fui assistir a festa de despedida de Guillaume Thieriot feita por artistas Guineenses. Foi, creio, a melhor de todas; uma profusão de cores, grupos de “mandjuandade”, de teatro, actuações de dezenas de músicos e cantores, leitura de poesia, cocktail, discursos, danças, etc., etc. Esta era a segunda despedida dele que assistia, entre tantas outras que foram feitas em sua honra. Mas desta falarei a frente, por agora, pela pressa e método este, de “ir devagar”, falarei da primeira que assisti na embaixada Francesa, feita, portanto, pelos seus compatriotas franceses e colegas diplomatas.
Num sóbrio cocktail, o discurso do Embaixador Encarregado de Negócios, também foi sóbrio, embora simpático e elevados, como é de praxe nestas cerimónias. Mas o que me leva a esse dia é o inusitado (pela forma e conteúdo) discurso de agradecimento do homenageado, a que já fiz referência, uma verdadeira peça de oratória, da altura de um Rui Barbosa (seu também compatriota). Mas o importante para mim, foi que nesse discurso de agradecimento encontrei o cerne do seu pensamento no que tange a Guiné. Um agradecimento que agradece e retribui num despreendimento de alma que levanta um pouco o véu sobre a seu pensar, a sua concepção do mundo em que vive, e particularmente sobre este mundo guineense, crioulo, que em breve deixará.
Mas como este texto não é uma pequena biografia mas a tentativa de dar um vislumbre do seu pensamento sobre nós, resolvi que quero ir para além do que o que ele próprio disse, sobre si (e sobre nós), nesse seu “discurso do método” (do de se ser um homem digno), de despedida. Por isso, embora este texto não seja um “texto sobre outro texto”, esse discurso vai-me ajudar a explicar o “director” Thieriot , o “pauvre homme ” Guillaume e o “nosso compatriota” Gui de Bolama. Mas não só; esse discurso, vai-me permitir falar de nós guineenses, neste particular momento político em que vivemos.
Simples, mas emotivo, foi um discurso onde ressoava não a vacuidade de um conhecimento poliglota enfatuado, mas o respeito pelas línguas em que expressava. Trilingue (plurilingue?), de uma perfeição e beleza notáveis, numa profusão de vocábulos em três idiomas a vez, mas por onde perpassava um sentimento profundo de ligação a esta terra e de genuíno interesse pelos destinos deste povo. Esse magnífico discurso, que dividido em três partes, respeitando assim as regras do discurso, que organiza o texto em três partes principais a saber “apresentação”, “explanação” e “conclusão”, é também outra vez dividido em três partes linguísticas, se assim posso elucidar, pois começa em crioulo e termina em português, separado pelo francês.
Entrando e saindo destas línguas em velocidade de cruzeiro, mas em mudança automática, sem contradições, ligando-as e completando-as numa simbiose de vocábulos e interjeições apreendido por todos, mesmo aqueles que só falavam uma das línguas. Por agora vamos ouvir o director Thieriot que nos leva a um passeio pelas suas reminiscências e vivências, seu percurso académico e profissional, com as suas “sortes e azares” pelo meio, que nunca dependem de nós; ficamos a saber muitas coisas, mas mesmo assim poucas, pois é uma rica vivência que quase parece que não foi aqui. Ficamos a conhecer Michel Flesch (…. qui m’a accueilli avec bienveillance, et soutenu mes pas de débutant dans le réseau français de coopération et d’action culturelle…), a saber de Jean-Claude Buyck (alors premier conseiller, nous avons travaillé en confiance et dans le respect des rôles de chacun...) e de Jacques Courbin (… qui a été de bref passage ici, et cependant décisif …). O anfitrião escutava atentamente, e como nós, veio a saber que ele foi « …celui qui a été le plus présent au centre culturel, et qui a montré le plus grand intérêt pour la société civile guinéenne, et singulièrement celle des artistes et des intellectuels qui ont une deuxième adresse à Praça, au CCFBG. … Leur soutien – et avec eux celui de tous les services de l’ambassade –, a été total, donc précieux… »
Por fim, exausto, sem querer, vai pouco a pouco, abrir-nos a alma do pauvre homme Guillaume, que assim, sofrendo, entra pelas nossas almas adentro, sem pedir licença, cônscio que está que tem todas as licenças… “(…)Ma ami i ka so Blamensi i diretor di centru francis... Ami tambi i papé di dus mininu, 2 fidju brancu n’pelele ki misti presença di si papé pertu delis. (…)
As nossas almas, emperdinadas que são, habituadas a todos os sofrimentos possíveis numa existência, não deixam de se condoer com esta tirada que nos fala da realidade nossa que não lhe permite ficar, embora fosse o seu mais intimo desejo “(…) Enton, n’na bai pa otru terra mas mindjor pa elis. Ku mas estabilidadi. Ma dantes, n’misti fala bos obrigadu di fundu di nha korson. (…)”
Condoemos, mesmo que apenas por que também tivemos filha que não vimos crescer e que se um dia, como ele, nos tivessem dado a escolher, também teríamos ido para outra terra melhor para ela…
Assim embrenhado nos meus pensamentos, nos meus sofrimentos “possíveis numa existência” oiço-o a falar com carinho desta terra e povo. Mitiga a alma, ouvindo-o a citar nomes de pintores, compositores e poetas que trata respeitosa e carinhosamente de elefantes. Ao menos isso, na falta de tudo, de tudo o que perdemos, numa existência em que as perdas são maiores que a própria existência.
Por fim, o homenageado director do Centro Cultural, para controlar a emoção que se apodera de todos nós, toma a palavra ao pauvre homme Guillaume e diz: “Vou terminar em português. Que é a língua de uma certa forma que me trouxe aqui, mesmo se, rapidamente, compreendi a importância do crioulo guineense.”
Na verdade não vai cumprir o prometido e terminará em crioulo.
O Gui de Bolama, esse esta quieto, sabe que nasceu a tão pouco tempo, que talvez não deva dizer nada. Afinal está en terras estranhas, em Bissau, numa localidade que nunca ouviu falar em Bolama, que se chama Penha, onde se situa esta imponente embaixada. Como um heterónimo de Fernando Pessoa, navega em águas que não são suas; sim seguramente não são águas de Bolama. E como bom Guineense aproveita para misturar-se com os convidados, quer provar de tudo, acepipes franceses, tão raros em Bissau. Em Dacar sim, diz-se que eles estão em cada esquina, como os nossos "donetes" aqui. Mistura-se com os convidados e mistura as palavras do orador com o que sabe e não sabe, em suma o que imagina; e parado num grupo de artistas no meio da sala, diz deste seu heterónimo, pauvre homme Guillaume (que de todas as formas conhece melhor que nós), que aos quarenta anos, de potencial político, candidato a eleições, depois de ter sido chefe de Gabinete de um autarca e conhecer as lides políticas, resolve dar o mais ariscado passo da sua vida, abandonar tudo, a França eterna, a boémia Montmartre, as cálidas águas de Côte D`Azur, as visitas semanais ao Louvre, os passeios dominicais nos Champs-Élysées, e ir atirar-se para o desconhecido; ir para um país, que os seus amigos nem conseguiam encontrar no mapa-mundo.
E eis que não acontece a agradável surpresa de ali vir a encontrar uma cidade chamada Bolama, onde um certo Francis Drake, tetravó dele passou um dia há mil anos a caminho do Brasil, e lá se apaixonar por uma índia, para - como o Pedro Álvares Cabral (segundo a Banda Eva?) - a levar numa caravela para as maravilhosas costas da Bretanha, a beber champagne na província de “La Champagne” (dizem que a índia fez um muxoxo quando provou mas depois adorou, naquele tal de “primeiro estranha-se, depois entranha-se”). Ali onde depois de muitos invernos frios e primaveras radiosas , das praias de Brest partiram (com uma revista de Astérix para ler pelo caminho) de volta as terras de Vera Cruz aonde viria ao mundo o nosso Guilherme. Guilherme? Quem é? Pergunta uma senhorita, Desculpem, responde ele, gingando o corpo como só os marítimos fazem, é que Gui, em Bolama, é diminutivo de Guilherme… no Brasil tambem diz está, toda entendida.
É salvo in extremis pelo pauvre homme Guillaume, que nesse momento tomando a palavra ao director , faz todo o mundo prestar atenção; tinha chegado a fase final do discurso, da conclusão. Na emoção do momento, esquece a promessa feita a Portugal, pelo director Thieriot, de terminar a oração com lusitanas estrofes, e deslembrando também da diplomacia, diz: Vou terminar como comecei. Dizendo simplesmente obrigado di fundu di nha korson.
Bem, como “di fundu di nha korson…” parece mais com o crioulo do que com o português, tanto nos vocábulos como na beleza, por issso disse que acabou em crioulo.
O Gui de Bolama, sem entender nada, olhou para o pauvre homme Gullaume e deu os ombros; a este que aproximou-se interrogativamente, disse baixinho: “outra vez em crioulo…" este faz-se de desentendido e pergunta-lhe em português “o que?” Este responde responde com dificuldade (estava deglutindo pela primeira vez na sua vida uma porção foie gras regado com um fresco moet chandon) com a boca cheia: na krioul mas um bias dê!!!
O pauvre homme Guillaume, sem saber o que dizer, partiu ao encontro dos convidados abraçando uns e outros, agradecendo, sabendo que, provavelmente, em breve todos eles serão espuma do tempo, recordações de um sultanato perdido na floresta, um Zamunda, algures na imensidão da Africa. E como um Príncipe Akeem, ao contrário, que não parte de Nova Iorque para África com a sua amada na garupa, mas apenas da Africa Atlântica para a África do Indico, que sendo uma mesma grande Africa é a única de todos nós, dele, de mim e de ti.
Ao lembrar disto, o pauvre homme Guilaume volta para junto do Gui de Bolama, a tempo de servir-se do ultimo pastel da travessa, que este fazia tenção de não deixar desamparado, e lhe disse, fazendo “tchin-tchin” com ele: “você deturpou as minhas palavras, o que realmente disse, foi o seguinte: “… Dona di nha dona di nha dona, um alemao ku tchama Müller, ora ki bai ba pa Brazil, i para ba na djiu di Bolama, nunde ki fica ba um bocadu ku nha dona fémia di nha dona fémia di nha dona fémia, si kombossa, mamé di nha dona di nha dona di nha dona ki bai ba pa Brazil ku alemao ku tchama Müller.”
Bem, agora já não sei se o Gui di Bolama que ouviu mal ou se fui eu (eu estava naquela roda de artistas), mas como quem esta a escrever é que tem responsabilidades (acrescidas, como se diz por aqui) aceito que fui eu, na ânsia de escrever um texto bonito. “Bo obi diritu ?” bem estas ultimas palavras em crioulo são emprestadas ao Guillaume pauvre homme .
UM ILUSTRE DESCONHECIDO
Como Gui di Bolama já falou dos brasões familiares do Guillaume Thieriot, resta-me voltar as palavras dele, agradecendo a nossa presença e o gesto em sua honra. Pois foi neste dia que fiquei a conhecer um pouco mais do percurso de vida deste cavaleiro. Durante a sua emotiva intervenção, Guillaume Thieriot acabou descerrando um pouco o véu sobre a sua vida privada (origens familiares) e profissional, e como veio a chegar a esta martirizada terra.
Nesse momento compreendi que pouca coisa conhecia da vida pessoal, para não dizer privada, deste homem afável e pausado. Mas como ele não é meu amigo isso era normal. nunca tomamos um copo juntos ou coincidido sair numa campainha comum, embora Bissau seja muito pequeno. Nem o número do telemóvel dele alguma vez tive no meu.
Nunca o conheci na intimidade, salvo uma vez, que o vi sentado no “café” Benfica, rodeado da esposa e os dois filhos, que vieram de visita, creio. Pela proximidade e exiguidade do espaço, mais do que pela educação, não pôde deixar de o cumprimentar (e já agora, não me apresentou a esposa, pois como disse, não eramos amigos. Mas como disse , não eramos amigos, nem sei se alguma vez fomos camaradas (“Cau pera sabura pa cunsi camarada. Sabura sucuro pa cunsi camarada”, bu lembra Guilherme?).
Friso isto por ser verdade e por uma outra razão; temos que começar a ser criteriosos no uso das palavras; toda gente, aqui, diz que ele era um amigo e vice versa. Discursam dizendo “o meu amigo Gui” e depois, isto ou aquilo. E muitas vezes esse tratamento não correspondia manifestamente a verdade).
Mas gostaria de ter sido seu amigo e o digo isto aqui sem nenhum pudor (se devemos ser rigorosos com as palavras, muito mais com os sentimentos) pois raramente em minha vida “quis”, conscientemente, “ser amigo” de alguém. Por isso possivelmente este texto é escrito também desta maneira como o escrevi, com algum sentimentalismo, mas sem vergonha do mesmo, pois como o G. K. Chesterton disse há tantos e tantos anos atrás, "O miserável receio de ser sentimental é o mais vil de todos os receios modernos." Por isso que Deus me ajude de não albergar esse “miserável” sentimento na minha alma quando falo deste outro senhor.
Mas “não ser amigo” é apenas uma condição necessária, mas não determinante, para o que dizemos. Quando digo que não somos amigos, quero que também entendam que por essa razão não o conheço, tudo o que viu, fez e ou mudou nesta terra. Por isso pouco posso dizer, mas mesmo assim, ainda há algo a dizer por mim. Assim, deste “não amigo”, deste “ilustre desconhecido”, qual um Cyrano de Bergerac Guineense, posso falar com tranquilidade e distanciamento.
Entendi algures que ele não quereria mais uma homenagem depois de tantas que lhe foram prestadas, mas realizações. Ou diria que a homenagem que mais lhe agradaria seria a realização dos seus sonhos para nós que são tão grandiosos como simples: “(…) se acreditarem na sua língua, na sua cultura, em vocês mesmos, poderão fazer coisas maiores (…)”
Daqui parto para essa dimensão mais humana dele. Como disse não quereria que dele falasse, elogia-se e dissesse coisas bonitas, por mais merecidas que fossem, apenas por dizer. Mas aqui, através do Guillaume, devo falar de uma outra dimensão, a dimensão dos que ele influenciou consciente ou inconscientemente. Como exemplo dou o de um grupo musical Guineense (da qual nunca tinha ouvido antes falar sequer), chamado estranhamente de “Exercito de Já”, que irrompeu pelo palco do Centro Cultural sexta passado a cantar música Reggae. O vocalista, uma cópia jovem do grande Bob Marley, mas com todos os maneirismos deste, brindou-nos no fim com umas eloquentes palavras em inglês, português, crioulo (e uma tentativa pouco conseguida em Francês); basicamente disse que agradecia ao Guillaume por ter sido o primeiro que neles confiou neste país e o primeiro a lhes dar uma oportunidade de poderem apresentar-se ao publico tocando a sua música. O primeiro a acreditar neles (podia ter sido o último em não acreditar, ou mais um apenas, que não acreditou)? Aceitam que para estes jovens esta dimensão é diferente de tudo a que estão habituados neste país? Bem, falei destes, que conheci, mas quantos outros haverá que só Guilherme conhecerá porventura? E porque ele e não nós?
Entendo que a “mudança de pensamento” na direção de valorização da cultura, nunca deve ser um fim em si, mas apenas um caminho para a valorização de homens como um todo, como um “conjunto de homens” unidos por um destino comum, que muitos teimam em não ver. . Em outro lugar afirmei que “não se salva um povo pela economia, mas pela cultura” , querendo com isso dizer que se a economia é a base sem a qual nada é sustentável, a cultura é a superstrutura sem a qual não existe e não existirá a nação.
II
Há frente vos falarei da cidade de Moscovo e a sua ligação (!) com Guillaume Thieriot, atrarves de mim; ou a minha ligação com essa cidade através dele; Já nem sei a quaantas ando, mas por agora quero vos contar uma pequena história que veio dar o título a este texto. Pouco depois de ter concluído a faculdade, um dia em Moscovo, tendo levado a minha esposa e filha ao aeroporto de Sheremetievo a fim de viajarem para Lisboa, na volta conheço um velho latino americano, que já vivia há muitos anos em Moscovo. Como o metro é tão grande como essa cidade de 12 milhões de habitantes, demoramos quase uma hora a chegar ao centro. Pelo caminho falamos de muita coisa, desde Mayakovski ao Balet Russos, passando pelas lutas de libertação, Cuba, Angola, perestroika (que estava no seu auge), Gorbatchov e de outras coisas também importantes, como da beleza das mulheres. Moscovo é uma cidade de mulheres bonitas que entram e saem das carruagens do metro numa profusão tal que era impossível apreciar cada uma delas mais do que três minutos inteiros. Na altura, capital de um gigantesco estado multinacional e transcontinental, nessa cidade havia todos os tipos de mulheres que existiam neste mundo; desde caucasianas, asiáticas, orientais, indianas, chinesas, mongolianas, e de todas as variações possíveis dentro desses grandes grupos. Loiras, ruivas e morenas (todas as tonalidades imagináveis de loiro, ruivo e moreno) de olhos azuis, verdes, negros, e tantas outras impossíveis de quantificar. Era tanta beleza em cada carruagem que era impossível catalogar. A tentação de olhar para todas, de por um minuto ter nos nossos olhos essas maravilhas da natureza, era grande, mas os olhos eram apenas dois e de nenhuma maneira era possível. Abatido pelo cansaço, acabei desistindo , e o velho que apreciava os meus olhares, enquanto respondia as suas perguntas, disse meio sério, meio a brincar, algo que até agora não esqueci, embora que passados vinte anos: “Fernando, no se puede tener a todas las mujeres del mundo, pero tenemos que hacer lo posible”, ou qualquer coisa de muito semelhante; isso me fez rir tanto, como ainda rio agora ao relembrar. Mas só conto isto, porque com apenas quinze anos, sem ainda conhecer nem Dacar e muito menos Moscovo, resolvi ler toda a biblioteca nacional, em apenas três meses (férias grandes). Nessa altura, depois da minha frustrada tentativa (também abatido pelo cansaço, dececionado comigo mesmo, quando as ferias findaram), continuei com a minha decisão; mesmo no período escolar sempre que podia a ir a essa biblioteca. Embora já tinha percebido que a decisão tomada era irrealizável. Mas a analogia que encontrei entre as duas situações me fez pensar que então, a dificuldade já era a mesma, por isso a decisão, embora inconsciente, deveria ter sido igual: “não se pode ler todos os livros do mundo mas devemos fazer os possíveis”.
Mas nem tudo foi perdido, nessa minha tentativa, pois conheci escritores que nem imaginava existirem. Mas para este texto só falarei de um que tinha escrito livros com títulos estranhos, como “O HOMEM QUE ERA QUINTA FEIRA”, “NAPOLEAO DE NOTINGHAM HILL “, e outros tão estranhos como estes; chamava-se Gilbert Keith Chesterton. É inspirado nele que vou buscar o meu título para este texto e uma descrição para o meu homenageado: O HOMEM QUE ERA UM CLAMOR.
Assim chamei Guillaume de “Um Clamor” ; de facto foi um clamor na noite escura da cultura Guineense. Pois um clamor mais que uma luz, chega a todos. Uma luz só é vista por quem olha em sua direcção, mas um clamor é espalha-se por todas as direcções; acorda-nos mesmo se estivermos a dormir. Sendo como ele, um homem temerário nas palavras, chamo-o como deve ser chamado. Que dizer mais dele? Ou por outro, o que não deve ser dito, o que é pouco relevante, o que pode ser deixado de lado da vasta obra do Sr. Thieriot? Se não estamos a escrever uma biografia , como medir a importância deste vulto para o nosso país? Desse que se orgulha de nós, as vezes mais do que nós próprios? Nas suas emotivas palavras “N’ta sinti orgulhu kada bias ki n’tene ki fala di Guiné Bissau la fora.”
Eu sinto orgulho de ouvir você dizer que sente orgulho de nós Guillaume, porque sei que é desinteressado, é apenas, produto da amizade e vivência comum. Prevejo que esta vivencia venha a dar frutos e coroar mudanças que já despoletou, prevejo profundas mudanças na nossa maneira de relacionar-mos com a nossa cultura
A CORAGEM DE COMPRAR UM CAIXÃO
Como prometi vou agora para a segunda festa de despedida, a dos artistas, feita no Centro Cultural francês de que já falei em cima, onde, numa intervenção emotiva, forte, derradeira, o Guilherme disse uma frase memorável:
Guineenses bô tem ku ossa!
Como já disse, foi a melhor de todas as homenagens que assisti em sua honra. Juntaram-se músicos, pintores, dançarinos, cantores, escritores, poetas, sem esquecer gente simples e anónima, como eu, que também estavam presentes para o homenagear. O formato era mais ou menos previsível: falaram os funcionários do centro que com ele trabalharam, os professores, o Encarregado de Negócios da França no País, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Director Geral da Cultura, possivelmente mais pessoas que não me recordo aqui.
E por fim Guillaume Thieriot que num improviso calculado e contido (por algumas notas que tinha nas mãos) fez a melhor intervenção da noite e (julgo) do seu tempo em Bissau. Repetiu a frase acima umas cinco vezes, com variantes diversas (que só o crioulo permite), mas a mensagem clara e não sublimada por nenhuma censura, diplomacia ou cuidados, era que “nós, os Guineenses, temos que ter coragem”. “Começar a ter coragem”. Naquele momento ele não era um estrangeiro, era um guineense como qualquer um de nós, nem mais nem menos. A sua alma e coração eram iguais aos nossos e batiam no mesmo compasso, ansiavam pela mesma justiça, pela mesma liberdade.
Consciente, sentia-se Guineense, corporizava os nosso sentimentos de dor, vergonha, humilhação e incapacidade de ousar. Sim, há que dize-lo com todas as letras, ele percebeu a cobardia em nós. Por isso falou dos direitos humanos pisados, do vilipêndio do povo, dos assassinados, da transformação do país nas bocas do mundo inteiro em sinonimo de estado pária, de narcotraficantes. E nós calados sempre...
- “Bó tem cu ossaaaaaa!”
Têm que ousaaaaaar….
Temos que ter a ousadia de ousar primeiro, antes mesmo de ousar. Pois nos falta não apenas a coragem de mudar, mas a ousadia de ter coragem. A ousadia de ousar.
Esse clamor na noite, instilando-nos coragem, apelando para os nossos sentimentos mais profundos, para a nossa dignidade, para que possamos por fim mudar as nossas existências, era algo digno de se ver e escutar. O olhar, os gestos, a voz, tudo nele era espírito; espírito que “deu um passo à frente, superou a sua forma concreta anterior e adquire uma nova.” Estas palavras de Hegel, da “Fenomenologia do Espirito” definiam melhor que todas as minhas, o espirito inovador de Guillaume Thieriot, que nessa noite tomava a forma humana. E quero crer que o exemplo dele ajudará para que um dia “todo o conjunto de ideias e conceitos que vigorou até agora, as próprias relações do mundo, se dissolvem e desmoronam como num sonho.” E assim, como àquele de Hegel, o mundo guineense será outro, novo e poderoso. Resta dizer, numa analogia com o grande pensador Alemão, que se “Napoleão era "o espírito universal a cavalo", este seu compatriota, nessa noite, era a personificação do espírito guineense, cavalgando, mesmo que ainda sem cavalo...
Os ecos da sua voz ainda ressoam nestas paredes, por isso quis começar este texto aqui mesmo, a sombra desse eco e acaba-lo na cidade, algures, levando esse eco comigo, no meu coração. Mas vai ressoar durante muito mais tempo ainda no coração daqueles jovens a que ali estavam a ouvi-lo, é esta mudança que ele despoletou neles. Quando digo que ele sentiu-se Guineense como nós, nem mais nem menos. E sei do que falo; o ser humano pode interiorizar um sentimento de pertença comum com um povo e viver as suas dores como se ele fosse filho desse povo. As vezes, essa interiorização e comunhão são tão grandes que é igual ou maior do que aquela que sentimos pelo nosso povo. E muitas vezes é maior do que de muitos filhos desse povo, pelo seu próprio povo e comunidade popular.
Conheço este sentimento por mim próprio e vou-vos falar dele para entenderem as razões da dor e revolta do Sr. Director perante o descalabro que ele encontrou quando chegou a este país. Parecem ser coisas que nada tem uma com outra, separadas que estão no tempo e geografia; um há vinte anos atras na Europa, mas por fios invisíveis, feito do destino de milhares de mortos e vivos, estão ligados. Pois nós nos ligamos a Rússia muito cedo e a sua desgraça também. A primeira ligação (a de Cabral) serviu para nos libertar, a segunda (a de ninguém) serviu para o que sabemos. Contribuiu também (mal aproveitada e pessimamente entendida) para o nosso viver actual.
Ao ouvir o Guillaume Thieriot gritando “Bo tem ku ossa”, o sentimento que se apoderou de mim era igual a aquele que nesse dia quando soube dos Golpe de Estado a Gorbatchov. E nesse hall do Centro Cultural, envolvido pelo ensurdecedor barulho da tempestade que desabava lá fora, lembrei-me dos últimos dias da União Soviética, quando o grande império, o maior em contiguidade e também o mais poderoso de sempre, tombava para nunca mais levantar.
Jovem recém-licenciado, estava em plena Praça Vermelha em Moscovo, no meio de um mar de gente, vendo a queda com estes mesmos olhos que ainda não envelheceram o suficiente para lhes dar descanso merecido; pois contemplaram o o passado, o presente e o futuro nesse mesmo dia.
Ao ouvir a notícia do Golpe na rádio de um táxi onde me encontrava na cidade de Minsk, dirigi-me imediatamente para o aeroporto para apanhar o primeiro avião que pôde, para aterrar num Sheremetievo (aeroporto de Moscovo) rodeado de tanques. Boquiaberto, consegui sair a custo, e apanhar um táxi; e quando o Chofer perguntou a direção respondi sem hesitar: Praça Vermelha. Nem pensei em ir para casa primeiro; não podia perder por nada deste mundo esse acontecimento maior da história neste Século. Setenta anos antes Lenine com a Revolução de Outubro tinha mudado o mundo e a história do homem e nesse dia, era o dia do fim desse mundo tal como o conhecemos durante sete décadas. Dentro desse táxi deslizando velozmente pelas ruas desertas dessa Moscovo ainda a despertar, entendi tão diafanamente que nesse momento estava-se a fazer historia e isso era imperdível. Mas eu e o meu táxi, infelizmente, não conseguimos passar ao “Bolshoi” (Grande Teatro) toda o triângulo central de Moscovo estava ocupado por soldados, forças de intervenção rápida, policias, paramilitares, numa profusão de uniformes e escudos anti balas e capacetes de aço reluzente e kalashnikovs prontos a disparar. A praça do Manege, a Pushkinskaia, a de Yuri Dolgaruki , todas completamente tomadas pela população em fúria. A frente da estátua do fundador de Moscovo havia uma multidão enorme caminhando para a Camara de Moscovo; era algo de extraordinário, as ruas e os passeios estavam cheios e caminhei com a Multidão até ao Kremlin. Os boatos eram muitos, havia quem dissesse que o Gorbatchov tinha sido morto na noite anterior e que como a setenta anos atrás depois da morte do Imperador, também ia haver Guerra Civil. No meio dessa turbamulta, os sentimentos eram iguais, o nosso ódio era imenso, a nossa indignação incomensurável, o nosso sentido de dignidade ultrapassava tudo que havia lido ou pensado algum dia.
Nesses frenéticos dias de incerteza, raiva e desespero de todo um povo, nem por um instante me passou pela cabeça que aquele era um problema era dos Russos e não meu. Disse o “nosso” ódio e a “nossa” indignação, porque eu, como eles, sofria da mesma maneira. No meio de moscovitas, caminhando sem saber para onde, quase que sentia a respiração John Reed, marchando na multidão, ao nosso lado, escutando os sons da sua maquina de escrever, contando página a página, a queda de um outro império, setenta anos antes, no seu famosíssimo “Os Dez dias que abalaram o mundo”. A queda do Imperio Russo que levou a ascensão ao poder dos Bolcheviques conduziu-nos a este dia em que marchávamos lada a lado, desconhecidos na multidão mas irmãos na vontade.
Quando a multidão chegou por fim a Praça Vermelha, com o perigo de disparos, as mulheres do povo pediam aos soldados para não atirarem contra o Povo. Depois de breves momentos de indecisão organizamo-nos de novo e num movimento indefinido a multidão partiu em direcção a Casa Branca (Parlamento Russo). Os boatos eram muitos, havia quem dizia que o Gorbatchov tinha sido morto na noite anterior e que como ha setenta anos atrás depois da morte do Imperador, também ia haver Guerra Civil. Dizia-se que Eltsin (o presidente do Parlamento, que viria a ser o primeiro Presidente eleito da Rússia) encontrava-se lá e, como em Smolnin, setenta anos antes, lá seria o Estado-maior da Revolução. Muita gente estava ao lado dos legalistas e contra os golpistas. Eu, como não podia deixar de ser, fui atrás deles, tão fervoroso como eles, nessa minha “revolução”; naquela multidão compacta, onde bastava cair para ser pisado, quase podia jurar que eu era o único negro. Barraram-nos o caminho logo depois, antes de desembocarmos na praça defronte ao Parlamento. A esse mar de gente um coronel da polícia antimotim mandou recuar. O parlamento estava cercado. Havia tanques e atiradores de elite por todo o lado. Sem saber o que fazer, sem lideranças claras, o povo ia dispersando. Ali, neste imenso mundo, encontrei Ariel, um estudante do Panamá, do meu Instituto fazendo fotos… e fiz alguns para a posteridade ao lado de um tanque de grandes lagartas. Depois com o frio a fazer sentir voltei para trás e na Rua dos 40 Comissários consegui ligar para a minha esposa que estava em Lisboa nesse momento com a nossa filhinha. Não posso contar todos os sucessos desses dias memoráveis que vivi, vim a saber, por exemplo, que quando a policia nos barrava a passagem, o B. Eltsin subia num tanque, e proclamava que o golpe não passaria e que a Nova Rússia tinha nascido nesse dia. A noite, três jovens morreram onde estive nessa tarde, a frente dos tanques, defendendo a liberdade. Por fim o Povo conseguiu ganhar. O golpe falhou e Gorbatchov foi libertado. E B. Eltsin, discursando, chorou pedindo desculpas por não ter podido salvar esses meninos que foram mortos pelos tanques… o resto é história. Mas eu, que estive lá, nessas horas de aflição e glória, caminhando com a História, empurrando as suas rodas, jamais esquecerei. Nesses dias que o mundo inteiro conteve a respiração por semanas sem saber o seu próprio destino, pois ninguém sabia quem controlava as armas nucleares que podiam destruir o planeta dez vezes, a sorte da humanidade também estava a ser decidido por nós nessas ruas com mais de mil anos. Por isso sempre que vou a Rússia não deixo de ir a Praça Vermelha, olhar os velhos muros do Kremelin, os maciços e vetustos prédios da Rua Gorki e lembrar esses frenéticos dias. E sempre subo a Rua Outubro até a praça Pushkin e depois sem parar até estátua do Yuri Dolgaruki, numa silenciosa saudação a ele que como há mil anos atrás quando fundou essa cidade, continuava em cima do seu cavalo. O então embaixador Guineense em Moscovo nunca entendia essa minha “fixação” e nunca lhe contei, pois achei que ele não iria entender… ou achar pueril.
Caro Gillaume, desculpa lhe levar a Moscovo e trazer de novo a Bissau, mas “se você não contar a verdade sobre si mesmo, não pode contar a verdade sobre as outras pessoas” como nos dizia a Virginia Woolf. Mas além disso você é o culpado destas reminiscências, pois se tivesse sido meu amigo um dia teria contando-lhe esta história, que só conto aos “meus amigos mais amigos” (mais chegados, em português, mas estou a pensar em crioulo e a escrever em português).
III
No concerto a seguir ao discurso do Guillaume Thieriot , um famoso artista da nossa praça, Justino Delgado, antes de iniciar a sua atuação, disse que ao ouvi-lo, deu-lhe que pensar, pois neste país “kim ku ossa ossa!” (quem tiver a ousadia de ousar) tem primeiro que encomendar o seu caixão. E disse mais, “se ele, Justino, hoje está vivo, foi graças ao facto de o terem achado insignificante, naquela altura quando foi preso; doutra forma não estaria nesse palco connosco. Sentado no escuro da sala escuto esse senhor da música guineense, homem da minha geração, colega no ciclo preparatório, e lembro inquieto da música hoje quase esquecida do Zé Manel Fortes “Si n`bim disparsi” e procuro o Guillaume Thieriot com os olhos para telepaticamente perguntar, como Gui de Bolama, “Guilherme, sabias disto e daquela música esquecida?”
Pode ser que quem tenha coragem na Guiné, precisa comprar primeiro um caixão… mas nesse instante o que J. Delgado disse tinha uma certa analogia com uma frase do romancista Inglês G. K. Chesterton, de que já falei: "A coragem significa um forte desejo de viver, sob a forma de disposição para morrer."
Comprar o nosso caixão significa de facto “disposição para morrer” mas demonstra também um forte desejo de viver em liberdade. Uma vez, nos Sete Instantes de uma Primavera, escrevi o seguinte: “(…) a vontade só vence a realidade quando não se tem medo da morte. É esse o combustível da vontade: a coragem de morrer pelo que acreditamos. (…)”. Nisso acredito piamente; temos que ter a disposição para morrer sempre. Não dizia Franz Fanon que a “morte sempre nos acompanha e nós não somos nada sobre a terra, se não somos, desde logo, cativos de uma causa, a dos povos, da justiça e da liberdade." ?
Mas nem todos os homens estão predispostos a morrer, isso entendo, mas podiam ao menos não se vender, não serem escória, pois isso não entendo. Pois devemos estar pelo menos predispostos a pobreza, se queremos que algo valha a pena, em nós e nos vindouros. Guillaume, você disse e bem que “ (…) A vida não é nada fácil na Guiné Bissau. Os sobressaltos político militares e as incertezas económicas, a dureza do cotidiano sem água nem luz sempre, a fragilidade do futuro, vocês aqui mostram cada dia sua coragem, sua paciência (que é a ciência da paz) sua alegria e sua generosidade. Isto também me serviu de lição para a vida.(…)”
Sim e devia servir de lição para nós também, e não servir de desculpa para toda a baixeza que pode caber num ser humano. Uma vez, logo a seguir ao último Golpe de Estado, de comentando com um amigo a situação do país, falei da hipótese de que numa futura mudança, os que apoiaram a situação actual poderiam vir a ter problemas com outros que viriam a seguir; mas ele mais avisado e talvez mais conhecedor da alma humana, disse-me que estava enganado; pois aqueles que andam sempre atrás de todo o Poder que aparece são sempre os primeiros a mudar de campo. E que quando isto mudar de novo não vão se dar mal. Pois, “quando isto mudar tu é que vais-te dar mal de novo, pois enquanto estiveres a pensar se mudou para melhor ou para pior e poderes agir em consonância com a tua consciência, eles que não têm esses princípios, já estarão outra vez com o novo Poder. E serão eles que te receberão (perdão, rejeitarão) e quando lá chegares …”
Por isso misturando o crioulo com o português, como você, peço-te: “Pistam pô di curpo”. Esta frase crioula foi usada por um cantor Guineense, Carlos “Neta” Robalo, há muito pouco tempo, com muita mestria, numa canção de amor. Pistam pô di curpo Guilherme, mas “i ka pa n`rola nel” como dizia Z. M. F em “Testemunhos di Aonte”. Para que quando “Bardadis di Aós” chegarem, pela voz forte dele, ainda estar vivo para cantar e dançar. Não quero dizer “sim bim disparsi” como ele no seu tempo, quero apenas viver a minha existência, no meu tempo, no meu curto tempo de vida.
Pois se infelizmente há uma nacional ausência de coragem neste país, que você constatou e muitos outros antes de você, também há os que pugnam por uma mudança e lutam por isso com as armas que têm. E essa mudança não é dirigida contra pessoas, mas contra a nefasta ordem social que temos que nada permite desenvolver e nem o desabrochar de um mundo novo.
Pois há homens que, embora sendo políticos, não lhes interessa só o bem material ou a admiração de seus pares mas o sentido da vida. Pois por mais ricos que sejamos, por mais mulheres lindas que possuirmos, por mais cultos que possamos ser, chega uma altura das nossas vidas em que, solitários na multidão, a nossa inquietude de homem nos faz pensar que há algo mais, para além do material, que precisa de uma resposta; que precisa ser respondido para se entender o sentido cabal da vida. Pois sem este entendimento último todo o resto não vale nada.
Por isso peço ao Guillaume que me empreste o seu corpo, para com esse corpo levantar outros corpos que estão ainda sentados, debruçados, deitados.
“Pistam bu curpo”, Gui di Bolama, apenas “pam firmantal” diante deste meu texto, como um escudo protector, pois sei que não estamos em nenhuma primavera árabe; apenas na primavera dos “baridures di padja”. Pistam pô di curpo” Guilherme , mas não apenas do corpo, mas da voz também, para poder gritar como você na noite escura do nosso povo:
Guineenses bô tem ku ossa!
A MENINA DE CALÇAS VERMELHAS E BRINCOS DA COR DO SOL
Este texto não é panegirico de Guillaume Thieriot, antigo Directeur du Centre Culturel Franco-Bissau-Guinéen (CCFBG), antigo Directeur de Cabinet du Président de la Région Provence-Alpes-Côte d'Azur, antigo Conseiller du Président de la Région Provence Alpes Côte d'Azur, antigo… nem ele gostaria disso. Mas é sobre algo que tem a ver com o seu legado. Um legado de longo prazo que ele deixa neste país. Um legado de esperança e de mudança. Um novo movimento cultural e social, do qual ele disse: “Não deixem fechar as portas abertas nem parar o movimento iniciado ou acelerado. Que abrimos e iniciamos juntos. Um começo de alguma coisa...”
Indubitavelmente este país mudou este homem, mas ele o mudou também “nin si um bocadinho” também. A sua vivência com filhos deste povo deu-lhe bases para uma nova compreensão do mundo que porventura não trazia ao aterrar em Bissalanca. Mas como o Kant postulava, tudo o que nos chega não encontra apenas uma tabua rasa, passiva onde se realiza, mas encontra já uma natureza predisposta, que o molda segundo a sua própria estrutura interna. E assim, a alma guineense encontrou nesta alma inquieta, interessada no seu tempo e no seu mundo, um espirito analítico, com um alto sentido de justiça inerente a sua personalidade, para quem aa dignidade humana, não é apenas um lugar-comum, que se realiza apenas no respeito pelos direitos humanos, mas na sua elevação cívica, moral e finalmente cultural. Este choque permitiu a este homem mudar indubitavelmente também este país, mesmo que apenas um bocadinho. E como os “bocadinhos” de uma mudança cultural não são mensuráveis, o bocadinho que nos mudou pode ser a semente para uma esmagadora mudança que todos esperamos e que um dia chegará. Mudou a mente de muita gente, naquela antiga mas actual compreensão de Malcolm X., de que "as únicas pessoas que realmente mudaram a história foram os que mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos”.
Mas para nossa sorte mudou a mente de fazedores de opinião, de artistas, de músicos, de gente que tem maior capacidade de mudar um povo do que outros como nós arquitectos, engenheiros, médicos ou juristas. Mesmo que estes ainda não tenham entendido essa mudança. Falo de mudanças que despoletou, conscientemente uns, e inconscientemente outras, como creio, nesta sociedade, num grupo de fazedores de opinião, num conjunto vasto de artistas de todos os quadrantes. Mudanças que perdurarão para além dele e de todos nós. Pois acredito que as mudanças culturais podem ser mais subtis do que fazer uma ponte sobre de João Landim, mas são mais permanentes, pois depois de despoletas realizam o seu caminho sozinhos, despoletando outras mudanças e forças ocultas. Acordando gerações adormecidas. Uma ponte pode ser até destruída por cataclismos ou bomba, mas como uma mente que depois de aberta a novas ideias, nunca mais volta ao tamanho anterior, as mudanças culturais são imparáveis e impossíveis de contradizer.
Felizmente, Guillaume, compreendeu isto de uma forma magistral, pois ainda oiço as suas límpidas palavras: “(…) Car s’il y a une chose qu’un peu naïvement j’ai découverte ici, c’est finalement l’importance de l’action culturelle en matière de développement. Dans une vie antérieure, je m’étais occupé de grands programmes d’investissements, d’infrastructures et d’aménagements. Arrivé ici, avec d’abord simplement le sentiment d’accomplir, non sans conviction, une sorte de mission de service public culturel et éducatif, j’ai compris que quelque chose se passe dans la tête, qui ne se règle pas par des ports ou des aéroports. Mais avec la culture, oui. On peut redonner un sentiment de fierté. De dignité. De la foi, j’ose le mot, malgré son caractère religieux. Mais de fait, à un moment donné, il faut y croire. (…) ".
O grito libertador de Guillaume Thieriot, nessa noite de temporal, se for mal compreendida, terá apenas que ver com a coragem de uma revolta social ou política, mas ela na verdade tem mais a ver com uma coragem maior, a coragem de realizar. Assim deixo-lhe falar, outra vez, nesse memorável dia em Penha: “A quem me pergunta o que vai acontecer depois da minha estadia aqui respondo sempre: depende de vocês. Se acharem que tudo depende de uma pessoa, nada vai mudar, ou só por breves momentos. Agora se acreditarem na sua língua, na sua cultura, em vocês mesmos, poderão fazer coisas maiores ainda (…) o que na verdade é vocês que deviam fazer. Então que o façam. Ora ! Façam-no !”
Nesse dia, em Moscovo, comtemplando a História a realizar-se, com os meus olhos nus, senti, mais do que compreendi, que nesse momento estava exatamente onde devia estar, em todo o mundo e em toda a minha vida. Guillaume Thieriot, de Setembro de 20011 a Agosto de 2013 esteve onde deveria estar em todo o mundo em toda a sua vida, na nossa Guiné. E acho que ele compreendeu isso mais do que todos nós, mais profundamente pelo menos…
Estar e fazer- estar e realizar mesmo que no nosso lugar, mesmo que no lugar dos que deviam e não fazem… - não querendo dizer isso para não magoar, afinal “(…) N’gosta thchiu di bos tudu…”, diz com simplicidade , “…Foi o Atchutchi, o Elefanti garandi, Atchutchi, que me sugeriu esta metáfora, me dizendo com amizade que eu havia mostrado o que na verdade é vocês que deviam fazer.”
Sim, hoje, ao questionar-me sobre o “porquê” da decisão de escrever sobre Thieriot, percebi que na verdade há coisas, que nem de propósito, acabam despoletando outras que mais dolorosas e nos obrigam a olhar profundamente para dentro de nós para tentar saber quem é afinal “esse” que somos nós. E “desse” que somos chegar a “outros” que são… as vezes como nós, outras vezes não.
Ele não era como nós, mas ao ouvi-lo clamando na noite, como um João Baptista no deserto, lembrei-me do episódio moscovita, que decidi contar aqui, para que um dia alguém venha a saber o que vivi nesse dia.
Mas, mais do que a comparação, sei que aqueles sucessos que narrei, foram o corolário de um viver indigno de mais de setenta anos. Um modus vivendi errado, demagógico, irresponsável, ideologicamente arrasador e só podia terminar assim, numa Götterdämmerung de ferro e fogo. Mas não era diferente, salvo as respectivas proporções, a este nosso, de quarenta anos. Pois os nossos foram baseados de certa forma naqueles. O resto é história e está escrita de forma indelével nas nossas vidas.
Pois quando aceitamos nesciamente, sem entender, um modo de vida similar, baseado numa compreensão da vida, da sociedade e numa economia similar o resultado não poderia ser outra, pois infelizmente para nós o que sobrava ali de riqueza e meios aqui faltavam clamorosamente. Mas isso é assunto para outro texto específico, só f alo nisso porque a justiça e a dignidade humana, foram vilipendiados da mesma maneira.
Ao escutar as vibrantes palavras de Thieriot, fazendo tremer as paredes, calando a tempestade que desabava, ameaçando levantar o Centro do chão, entendi com a certeza absoluta que o sentimento que se apoderou dele nesse dia era idêntico ao meu, nesse longínquo dia quando era ainda um estudante.
E é esse entendimento que fazia o Director clamar na noite pela mudança. Por isso voltei no tempo vinte anos para entenderem de que estamos a falar quando falamos do sentimento único de cobrir-se com o manto de um povo, chorar as suas dores e parir os seus filhos. Em cada despedida cobriam o Director com panos e mais panos, sem saber que o cobriam com as nossas dores, o nosso atraso, a nossa fome, a mossa vergonha, a nossa cobardia de mudar os nossos destinos.
É necessário dizer, com todas as letras, que neste momento precisamos de uma nova perspectiva política, nunca antes pensada, pois só assim é possível chegar a uma solução inovadora para este alquebrado contexto nacional feito de uma manta de retalhos de sensibilidades de várias ordens. Mas acima de tudo, precisamos de uma nova maneira de actuar na política, nunca antes tentada, pela ousadia, diferença e inconformismo.
II
Muitas vezes quando escrevemos algo sobre “algo” ou “alguém” dizemos que é para preservar isso para uma memória coletiva futura. Porque como os Romanos diziam “Verba volant, scripta manent” (as palavras vão os escritos permanecem), e é verdade por isso ainda hoje lemos Platão e Sócrates não. Ou por outro, lemos este através daquele, para dar apenas um exemplo. Mas se for verdade, a partir de textos como este, espero que um dia, no fim deste primeiro quarto de Século, quando alguém falar de Guillaume Thieriot nas Ruas de Bissau, não se diga, olhando para o Ceu, “parece que foi um pintor paisagista ou caçador francês que aqui esteve…”, ou qualquer coisa ainda mais desconchavada.
Mas se isso é apenas uma desculpa, para quando nos perguntarem “porque é que escreve?”, seria ainda mais pueril do que a minha “compulsão” já descrita. Mas se mais seriamente perguntarem “porque escreve coisas que ninguém há-de realizar?” Aí, eu responderia que é pelas mesmas razões que Guillaume Thieriot falava aos Guineenses: esperando que um dia mudem.
Se tal não vier a suceder, pela nossa cobardia e pusilanimidade, mesmos assim temos o dever de deixar para a posteridade o nosso viver (e morrer) actual, em suma a (podridão da) nossa existência, para que os vindouros saibam de onde provieram e de que tipos de homens descendem. Só assim entenderão porque são assim e não como deveriam ser.
Por isso hoje, neste quente Agosto de 2025, na esquina de uma Praça que foi “de Honório Barreto”, depois “de Ernesto Che Guevara” para de novo ser “de Honório Barreto”, aqueço os meus velhos ossos, com o sol que faz brilhar os meus cabelos brancos. Encostado num candeeiro, vou lembrando do passado, as alegrias e as tristezas (mais estas do que aquelas), enxergar o passado e saber como determinou o presente… chamo aquela linda garota de reluzentes calças vermelhas e brincos da cor Sol, que passa no meio do jardim, para perguntar distraidamente (mas com um ar formal suficiente para me prestar atenção):
- Sabe dizer-me quem foi Guillaume Thieriot?
Ela por respeito aos meus cabelos brancos para por uns instantes; franze o cenho, como que a pensar profundamente, e ao fazer-se luz no seu cérebro, com olhos brilhantes de “quem sabe sabe e quem não sabe fica triste”, responde:
-Foi o homem que era um clamor!
E eu, com os olhos já baços, mas ainda brilhantes de satisfação, com vontade de “mostrar” que sabia mais do que “quem sabe sabe…” retorqui:
- Incorreto: “Era o homem que foi um clamor”!
Mas ela do alto dos seus saltos, com olhos que já não brilham, mas queimam, rindo do meu trocadilho, demostrando que tinha ainda uma palavra a dizer (afinal é universitária) retorque:
- Eu sei do que falo porque li esse texto… o que tinha esse título. E desse texto, a parte mais gostei, por ser a mais bonita foi a frase que ele proferiu no dia da despedida:
- “Na bardadi, n’ka misti bai. N’ka misti dicha Guiné Bissau. N’gosta thchiu des terra i di bos tudu, pubis di Guiné… “
Agora, olha para além de mim, semicerra os olhos e vendo que quero dizer algo, levanta a mão, pedindo que espere:
- Espere; há uma coisa ainda: “… Muitas pessoas me agradecem pelo que fiz. Mas sou eu que agradeço. Enquanto fiz o papel do líquido que revela alguma coisa, fui aprendendo, fui enriquecendo a minha alma. Caminhando com todos os talentos jovens e confirmados que encontrei aqui, e que são muitos mesmo. … “
Tento de novo dizer alguma coisa, mas ele levanta a mão de novo, contendo o meu ímpeto; ainda não tinha terminado a frase; continua aos pedaços fazendo-me ouvir de novo, depois de tantos anos, a voz límpida de Guillaume:
- “…Testemunhando da sua coragem, que me deixa muito humilde … Isto também me serviu de lição para a vida. E me fez procurar enegrecer o meu sangue, para passar a ser mulato. A mistura das cores, arte máxima que tem o nosso grande pintor Botodjo, acho que é uma conclusão natural para quem gosta de repetir a cada dia, adivinhem o quê?
No sta, no sta...? No sta djuntu...”
Afinal ela conhecia o texto quase de cor. Afinal ela era boa. Acertei logo a primeira ou outros jovens também sabiam? Se houve a “mudança” preconizada pelo Thieriot…
De repente, a vaidade falou mais alto, esqueci Thieriot por uns momentos, faltava uma coisa:
- E o texto era de quem? - Pergunto ansioso, querendo saber se ela conhecia o autor também. Ela de novo hesita por instantes, olha para o Céu (e eu espero qualquer coisa desconchavada) mas por fim, num sorriso “menina e moça”, vitorioso (afinal é uma universitária) responde:
- Fernando Teixeira!!
Bissau, 7 de Agosto de 2013
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Samuel