Optimista incurável, aquele homem de fato preto bem engomado e barba organizada, sorria tranquilo, enquanto caminhava ao meu lado. À berma da estrada, um forte cordão de segurança de agentes da Polícia Nacional, olhava, de forma desarmada, aquela procissão funerária.
Pela primeira vez na história de Angola independente, membros da oposição, da sociedade civil e familiares de um político, assassinado pela guarda presidencial, realizavam uma marcha funerária, com cânticos políticos, numa das mais centrais vias de Luanda.
Jovens manifestantes e opositores ao regime, regra geral, iniciam as suas manifestações à porta do Cemitério da Santana em direcção ao Largo da Independência, passando pela Avenida Deolinda Rodrigues (vulgo Estrada de Catete), numa distância de menos de dois quilómetros. Este pequeno trecho tem sido, desde 2011, a zona de maior violência política no país.
As forças policiais também costumam iniciar os seus actos de violência às portas do Cemitério da Santana, e dispõem-se ao longo da Avenida Deolinda Rodrigues, às centenas, muitas, com Polícia Montada, Polícia de Intervenção Rápida (PIR), brigada canina, agentes da ordem pública, reguladores do trânsito, centenas de agentes policiais e de segurança à paisana, apoiados por helicópteros, carros de assalto, canhões de água. Milhares de agentes policiais, de segurança e militares, nessas ocasiões, desdobram-se no controlo dos pontos de acesso ao Largo da Independência e ao Cemitério da Santana, espalhando assim o terror.
Filomeno Vieira Lopes, o homem do fato, franzino e sorridente como sempre, notou a metáfora do jogo político angolano. A oposição e os jovens manifestantes concentram-se sempre à porta do cemitério e tentam, no seu imaginário, alcançar a liberdade – a mudança de regime – no Largo da Independência.
Mas hoje foi diferente. Em sentido contrário, um cortejo fúnebre ocupou o espaço público da cidade em revolta e indignação.
A 22 de Novembro, sem hesitação, um membro da Unidade de Segurança Presidencial (USP), assassinou um opositor, pelo suposto crime de ter colado cartazes a pedir justiça, no Estádio dos Coqueiros. O cartaz continha os dizeres “Povo angolano! Justiça já!”, e as fotos de Cassule e Kamulingue, acompanhadas da pergunta: “Quem é o verdadeiro assassino?”. A Polícia Nacional emitiu um comunicado a defender a morte de Ganga, tendo mentido, de forma infantil, ao acusar o jovem de ter violado o perímetro de segurança da Presidência. Ganga foi detido, com os seus sete companheiros, quando colavam cartazes no Estádio dos Coqueiros, e foram levados à unidade da USP, junto ao Palácio Presidencial, onde o malogrado foi assassinado com dois tiros (um nas costas e outro na zona superior do abdómen). A Polícia Nacional também se referiu aos panfletos como sendo “cartazes de propaganda subversiva de carácter ofensivo e injurioso ao Estado e aos seus Dirigentes”.
Pedir justiça é hoje uma ofensa grave contra o presidente e os dirigentes do MPLA. É a lei que o povo desconhece.
A morte de Manuel de Carvalho Hilberto Ganga causou a inversão da marcha da oposição e da sociedade civil. A marcha já não pretendia chegar ao Largo da Independência, em busca de liberdade e mudança, mas ao Cemitério da Santana, para enterrar o seu morto.
Filomeno Vieira Lopes pensou na ironia dos actos de violência do governo. O regime matou Ganga e, no dia seguinte, a 23 de Novembro, desdobrou o seu aparato repressivo para impedir a manifestação convocada pela UNITA, em memória de Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Como consequência, tinha ali um funeral, cujo sentimento colectivo de repúdio, era muito mais poderoso do que qualquer manifestação até então tentada.
Ali, naquela marcha, os jovens do Movimento Revolucionário, representados pelos seus novos símbolos – o Nito Alves, Raúl Mandela e Emiliano Catumbela – seguravam a fotografia gigante de Ganga e marchavam frente ao carro funerário que transportava os seus restos mortais. Os jovens, trajavam camisolas com uma nova versão dos dizeres que levaram Nito Alves a passar dois meses na cadeia, desde Setembro passado. “Zé-Dú/Fora/Carrasco/Nojento Ditador”. Adolfo Campos, outro jovem manifestante, marcado por inúmeras detenções e espancamentos às mãos incluindo no sábado passado, empunhava o megafone e capitaneava o ritmo dos cânticos e palavras de ordem.
Na linha da frente, o presidente da CASA-CE, Abel Chivukuvuku, o vice-presidente da UNITA, Ernesto Mulato, vários dirigentes da oposição e figuras da sociedade civil, mostravam-se, pela primeira vez, unidos num coro de indignação e solidariedade mútuas.
Lembrei-me de ter visto apenas um enterro de um político, com um grande cortejo fúnebre a pé. Foi o de Agostinho Neto, o primeiro presidente da República, em 1979. Era um funeral de Estado, com pompa e circunstância, comovente. O do Ganga, foi um cortejo da oposição, com cerca de 800 a 1,000 pessoas, modesto, mas também comovente e enérgico na condenação da violação dos direitos humanos.
Era extraordinário ver os pais de Ganga, na sua profunda dor, a honrarem as convicções políticas do filho, ao terem permitido que o seu funeral fosse um verdadeiro acto de resistência popular.
Cortejo Fúnebre Travado
Reflecti sobre o optimismo do Filomeno Vieira Lopes, pela influência que tem em reduzir a minha esperança. Ao atravessarmos o Largo da Independência, pensei, por um momento, que tínhamos ultrapassado o Rubicão. A própria polícia, que no dia anterior tinha acertado os pormenores do cortejo fúnebre com os dirigentes da CASA-CE e familiares, havia facilitado o desimpedimento da via. Parecia colaborar e comovida com o acto.
No entanto, os cânticos políticos e as palavras de ordem ganhavam cada vez mais energia e contagiavam as centenas de curiosos ao longo do percurso. “Nós queremos justiça! Ele fez o quê?”, “Zé Dú assassino! O povo não te quer”, “O MPLA matou! O povo revolta!”, “A polícia é do povo, não é do MPLA!”.
O crescendo político do cortejo foi imediatamente acompanhado por sirenes que se ouviram a curta distância. Em poucos minutos, centenas de efectivos da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) ultrapassaram o cortejo e formaram uma barreira que o impediu de prosseguir. Mais reforços chegaram ao local, incluindo dois helicópteros da polícia e, mais tarde, um militar. Dois veículos com canhões de água irromperam sobre a procissão e bloquearam a via, com o cordão dos agentes da PIR à frente, virando os canhões para dispersar o cortejo com jactos de água.
De imediato, os agentes iniciaram os disparos de granadas de gás lacrimogéneo contra os acompanhantes do funeral. O pânico foi tão imediato quanto a reacção de resistência que se seguiu. Primeiro, as pessoas corriam em várias direcções em busca de proteção contra a intoxicação provocada pelo gás. Alguns jovens, já veteranos, recompuseram-se, molharam camisolas e colocando-as sobre a cabeça, para atenuar os efeitos do gás tóxico. A maioria voltou para junto da viatura que transportava o morto.
A incredulidade tomou conta dos presentes. O governo do presidente José Eduardo dos Santos ordenou o ataque a um cortejo fúnebre. Um dos helicópteros sobrevoava a baixa altitude, e mantinha-se, por vários instantes, mesmo acima da viatura funerária. O propósito era o de gerar maior pânico e dispersão, causando um remoinho de poeira.
“Vão ter de nos matar aqui. Nem os mortos nos deixam enterrar. Que governo é esse?”, gritava uma senhora.
Os jovens continuavam com os cânticos, enquanto os agentes da PIR procuravam brechas para atacar. Um dos oficiais, com barriga e cara de bêbado, tinha a máscara anti-gás à cabeça, e envolvia-se em altercações com figuras que escolhia a dedo, entre eles o deputado Fuca Muzemba, ex-secretário da juventude da UNITA (JURA). No momento em que os seus homens se lançaram para o capturar, vários membros do cortejo interpuseram-se entre os agentes e o alvo, e assim impediram a sua detenção, afastando-o dali.
Cortejo só de Autocarro
Passado mais de uma hora e um quarto, o comandante da Divisão do Rangel, superintendente-chefe Mariano André, que comandou a repressão no terreno, chegou a um meio-termo com os líderes do cortejo. Devia-se abrir uma faixa de rodagem para facilitar o trânsito. Após os membros da procissão se terem organizado e criado um cordão humano para facilitar a circulação do trânsito, numa faixa, o comandante transmitiu outras ordens superiores. Ou os participantes subiam para as viaturas ou o morto não chegaria ao cemitério acompanhado. Em protesto, uma familiar do malogrado gritou, o quanto podia, para que o corpo fosse levado ao Comando-Geral da Polícia Nacional para que esta instituição procedesse ao enterro. Outro sugeriu que o corpo fosse deixado ali, no meio da estrada, à mercê da Polícia Nacional.
O sol e o calor sufocante que se faziam sentir, exacerbavam o nervosismo do Almirante Miau, dirigente da CASA-CE. Este tentava organizar os jovens para que entrassem nos quatro autocarros providenciados, repentinamente, pela Polícia Nacional. Explicava aos presentes sobre a decomposição do corpo e quem não o ouvisse que se retirasse do local, porque era preciso chegar ao cemitério e enterrar o malogrado.
Mas o comando de operações da repressão providenciou apenas quatro autocarros, insuficientes para transportar a maioria dos membros do cortejo.
Assim, o cortejo prosseguiu a pé, com grande parte das pessoas a caminharem pelos passeios, onde os houvesse. Passados dez minutos, os autocarros pararam, por pressão dos jovens, que desceram e juntaram-se, a pé, à procissão. Atrás ficavam os veículos com canhões de água e o grosso da tropa de choque. Adiante, a Polícia Montada, a Brigada Canina e dezenas de agentes mantinham-se nas suas posições, enquanto vários agentes motorizados da PIR acompanhavam a procissão.
Os cânticos e as palavras de ordem cresceram de intensidade e raiva. Os jovens entoavam e repetiam o que se tornou no hino das manifestações anti-regime: “Primeiro os angolanos/Segundo os angolanos/ Terceiro os angolanos/ Angolanos sempre!” Esta expressão, retirada de um discurso de Savimbi, tem reconfigurado as noções de patriotismo e nacionalismo no debate de surdos entre o regime e a oposição. Para os jovens revolucionários, o presidente e o governo actual são anti-patriotas, movidos por interesses estrangeiros. No seu discurso político, os críticos do regime são vendidos aos estrangeiros. Os angolanos continuam a não entenderem-se.
Reagrupei-me ao Filomeno Vieira Lopes já próximo do cemitério. Sempre sorridente, lembrou-me que o regime, nas suas contradições, havia criado apenas mais problemas para o presidente e para a sua própria imagem. “Sempre chegamos a pé, ao cemitério”, disse.
Como os homens do presidente criaram tanta confusão a 20 minutos da procissão chegar ao cemitério? Herculano Coroado, um jornalista independente, arriscou uma teoria de conspiração. “Quem deu a ordem deve estar do lado do povo, fez isso para piorar a situação do presidente”, afirmou.
À entrada do cemitério havia um grande cordão de motoqueiros da Polícia de Intervenção Rápida (PIR). Mantiveram-se nos seus lugares e finalmente Ganga foi levado à sepultura.
Alguém notou a presença de uma equipa da Televisão Pública de Angola (TPA). O canal estatal tem estado a manipular, de forma vil e com uma grande dose de infantilismo político, as iniciativas da oposição e a morte de Ganga.
Familiares e presentes, num assomo de intolerância, forçaram a saída dos profissionais da TPA do local.
Temo que o Manuel de Carvalho Hilberto Ganga não descansará em paz, nos próximos tempos. Como disse uma senhora durante o impasse: “Porquê o governo está a discutir com o morto?”
Pela primeira vez na história de Angola independente, membros da oposição, da sociedade civil e familiares de um político, assassinado pela guarda presidencial, realizavam uma marcha funerária, com cânticos políticos, numa das mais centrais vias de Luanda.
Jovens manifestantes e opositores ao regime, regra geral, iniciam as suas manifestações à porta do Cemitério da Santana em direcção ao Largo da Independência, passando pela Avenida Deolinda Rodrigues (vulgo Estrada de Catete), numa distância de menos de dois quilómetros. Este pequeno trecho tem sido, desde 2011, a zona de maior violência política no país.
As forças policiais também costumam iniciar os seus actos de violência às portas do Cemitério da Santana, e dispõem-se ao longo da Avenida Deolinda Rodrigues, às centenas, muitas, com Polícia Montada, Polícia de Intervenção Rápida (PIR), brigada canina, agentes da ordem pública, reguladores do trânsito, centenas de agentes policiais e de segurança à paisana, apoiados por helicópteros, carros de assalto, canhões de água. Milhares de agentes policiais, de segurança e militares, nessas ocasiões, desdobram-se no controlo dos pontos de acesso ao Largo da Independência e ao Cemitério da Santana, espalhando assim o terror.
Filomeno Vieira Lopes, o homem do fato, franzino e sorridente como sempre, notou a metáfora do jogo político angolano. A oposição e os jovens manifestantes concentram-se sempre à porta do cemitério e tentam, no seu imaginário, alcançar a liberdade – a mudança de regime – no Largo da Independência.
Mas hoje foi diferente. Em sentido contrário, um cortejo fúnebre ocupou o espaço público da cidade em revolta e indignação.
A 22 de Novembro, sem hesitação, um membro da Unidade de Segurança Presidencial (USP), assassinou um opositor, pelo suposto crime de ter colado cartazes a pedir justiça, no Estádio dos Coqueiros. O cartaz continha os dizeres “Povo angolano! Justiça já!”, e as fotos de Cassule e Kamulingue, acompanhadas da pergunta: “Quem é o verdadeiro assassino?”. A Polícia Nacional emitiu um comunicado a defender a morte de Ganga, tendo mentido, de forma infantil, ao acusar o jovem de ter violado o perímetro de segurança da Presidência. Ganga foi detido, com os seus sete companheiros, quando colavam cartazes no Estádio dos Coqueiros, e foram levados à unidade da USP, junto ao Palácio Presidencial, onde o malogrado foi assassinado com dois tiros (um nas costas e outro na zona superior do abdómen). A Polícia Nacional também se referiu aos panfletos como sendo “cartazes de propaganda subversiva de carácter ofensivo e injurioso ao Estado e aos seus Dirigentes”.
Pedir justiça é hoje uma ofensa grave contra o presidente e os dirigentes do MPLA. É a lei que o povo desconhece.
A morte de Manuel de Carvalho Hilberto Ganga causou a inversão da marcha da oposição e da sociedade civil. A marcha já não pretendia chegar ao Largo da Independência, em busca de liberdade e mudança, mas ao Cemitério da Santana, para enterrar o seu morto.
Filomeno Vieira Lopes pensou na ironia dos actos de violência do governo. O regime matou Ganga e, no dia seguinte, a 23 de Novembro, desdobrou o seu aparato repressivo para impedir a manifestação convocada pela UNITA, em memória de Alves Kamulingue e Isaías Cassule. Como consequência, tinha ali um funeral, cujo sentimento colectivo de repúdio, era muito mais poderoso do que qualquer manifestação até então tentada.
Ali, naquela marcha, os jovens do Movimento Revolucionário, representados pelos seus novos símbolos – o Nito Alves, Raúl Mandela e Emiliano Catumbela – seguravam a fotografia gigante de Ganga e marchavam frente ao carro funerário que transportava os seus restos mortais. Os jovens, trajavam camisolas com uma nova versão dos dizeres que levaram Nito Alves a passar dois meses na cadeia, desde Setembro passado. “Zé-Dú/Fora/Carrasco/Nojento Ditador”. Adolfo Campos, outro jovem manifestante, marcado por inúmeras detenções e espancamentos às mãos incluindo no sábado passado, empunhava o megafone e capitaneava o ritmo dos cânticos e palavras de ordem.
Na linha da frente, o presidente da CASA-CE, Abel Chivukuvuku, o vice-presidente da UNITA, Ernesto Mulato, vários dirigentes da oposição e figuras da sociedade civil, mostravam-se, pela primeira vez, unidos num coro de indignação e solidariedade mútuas.
Lembrei-me de ter visto apenas um enterro de um político, com um grande cortejo fúnebre a pé. Foi o de Agostinho Neto, o primeiro presidente da República, em 1979. Era um funeral de Estado, com pompa e circunstância, comovente. O do Ganga, foi um cortejo da oposição, com cerca de 800 a 1,000 pessoas, modesto, mas também comovente e enérgico na condenação da violação dos direitos humanos.
Era extraordinário ver os pais de Ganga, na sua profunda dor, a honrarem as convicções políticas do filho, ao terem permitido que o seu funeral fosse um verdadeiro acto de resistência popular.
Cortejo Fúnebre Travado
Reflecti sobre o optimismo do Filomeno Vieira Lopes, pela influência que tem em reduzir a minha esperança. Ao atravessarmos o Largo da Independência, pensei, por um momento, que tínhamos ultrapassado o Rubicão. A própria polícia, que no dia anterior tinha acertado os pormenores do cortejo fúnebre com os dirigentes da CASA-CE e familiares, havia facilitado o desimpedimento da via. Parecia colaborar e comovida com o acto.
No entanto, os cânticos políticos e as palavras de ordem ganhavam cada vez mais energia e contagiavam as centenas de curiosos ao longo do percurso. “Nós queremos justiça! Ele fez o quê?”, “Zé Dú assassino! O povo não te quer”, “O MPLA matou! O povo revolta!”, “A polícia é do povo, não é do MPLA!”.
O crescendo político do cortejo foi imediatamente acompanhado por sirenes que se ouviram a curta distância. Em poucos minutos, centenas de efectivos da Polícia de Intervenção Rápida (PIR) ultrapassaram o cortejo e formaram uma barreira que o impediu de prosseguir. Mais reforços chegaram ao local, incluindo dois helicópteros da polícia e, mais tarde, um militar. Dois veículos com canhões de água irromperam sobre a procissão e bloquearam a via, com o cordão dos agentes da PIR à frente, virando os canhões para dispersar o cortejo com jactos de água.
De imediato, os agentes iniciaram os disparos de granadas de gás lacrimogéneo contra os acompanhantes do funeral. O pânico foi tão imediato quanto a reacção de resistência que se seguiu. Primeiro, as pessoas corriam em várias direcções em busca de proteção contra a intoxicação provocada pelo gás. Alguns jovens, já veteranos, recompuseram-se, molharam camisolas e colocando-as sobre a cabeça, para atenuar os efeitos do gás tóxico. A maioria voltou para junto da viatura que transportava o morto.
A incredulidade tomou conta dos presentes. O governo do presidente José Eduardo dos Santos ordenou o ataque a um cortejo fúnebre. Um dos helicópteros sobrevoava a baixa altitude, e mantinha-se, por vários instantes, mesmo acima da viatura funerária. O propósito era o de gerar maior pânico e dispersão, causando um remoinho de poeira.
“Vão ter de nos matar aqui. Nem os mortos nos deixam enterrar. Que governo é esse?”, gritava uma senhora.
Os jovens continuavam com os cânticos, enquanto os agentes da PIR procuravam brechas para atacar. Um dos oficiais, com barriga e cara de bêbado, tinha a máscara anti-gás à cabeça, e envolvia-se em altercações com figuras que escolhia a dedo, entre eles o deputado Fuca Muzemba, ex-secretário da juventude da UNITA (JURA). No momento em que os seus homens se lançaram para o capturar, vários membros do cortejo interpuseram-se entre os agentes e o alvo, e assim impediram a sua detenção, afastando-o dali.
Cortejo só de Autocarro
Passado mais de uma hora e um quarto, o comandante da Divisão do Rangel, superintendente-chefe Mariano André, que comandou a repressão no terreno, chegou a um meio-termo com os líderes do cortejo. Devia-se abrir uma faixa de rodagem para facilitar o trânsito. Após os membros da procissão se terem organizado e criado um cordão humano para facilitar a circulação do trânsito, numa faixa, o comandante transmitiu outras ordens superiores. Ou os participantes subiam para as viaturas ou o morto não chegaria ao cemitério acompanhado. Em protesto, uma familiar do malogrado gritou, o quanto podia, para que o corpo fosse levado ao Comando-Geral da Polícia Nacional para que esta instituição procedesse ao enterro. Outro sugeriu que o corpo fosse deixado ali, no meio da estrada, à mercê da Polícia Nacional.
O sol e o calor sufocante que se faziam sentir, exacerbavam o nervosismo do Almirante Miau, dirigente da CASA-CE. Este tentava organizar os jovens para que entrassem nos quatro autocarros providenciados, repentinamente, pela Polícia Nacional. Explicava aos presentes sobre a decomposição do corpo e quem não o ouvisse que se retirasse do local, porque era preciso chegar ao cemitério e enterrar o malogrado.
Mas o comando de operações da repressão providenciou apenas quatro autocarros, insuficientes para transportar a maioria dos membros do cortejo.
Assim, o cortejo prosseguiu a pé, com grande parte das pessoas a caminharem pelos passeios, onde os houvesse. Passados dez minutos, os autocarros pararam, por pressão dos jovens, que desceram e juntaram-se, a pé, à procissão. Atrás ficavam os veículos com canhões de água e o grosso da tropa de choque. Adiante, a Polícia Montada, a Brigada Canina e dezenas de agentes mantinham-se nas suas posições, enquanto vários agentes motorizados da PIR acompanhavam a procissão.
Os cânticos e as palavras de ordem cresceram de intensidade e raiva. Os jovens entoavam e repetiam o que se tornou no hino das manifestações anti-regime: “Primeiro os angolanos/Segundo os angolanos/ Terceiro os angolanos/ Angolanos sempre!” Esta expressão, retirada de um discurso de Savimbi, tem reconfigurado as noções de patriotismo e nacionalismo no debate de surdos entre o regime e a oposição. Para os jovens revolucionários, o presidente e o governo actual são anti-patriotas, movidos por interesses estrangeiros. No seu discurso político, os críticos do regime são vendidos aos estrangeiros. Os angolanos continuam a não entenderem-se.
Reagrupei-me ao Filomeno Vieira Lopes já próximo do cemitério. Sempre sorridente, lembrou-me que o regime, nas suas contradições, havia criado apenas mais problemas para o presidente e para a sua própria imagem. “Sempre chegamos a pé, ao cemitério”, disse.
Como os homens do presidente criaram tanta confusão a 20 minutos da procissão chegar ao cemitério? Herculano Coroado, um jornalista independente, arriscou uma teoria de conspiração. “Quem deu a ordem deve estar do lado do povo, fez isso para piorar a situação do presidente”, afirmou.
À entrada do cemitério havia um grande cordão de motoqueiros da Polícia de Intervenção Rápida (PIR). Mantiveram-se nos seus lugares e finalmente Ganga foi levado à sepultura.
Alguém notou a presença de uma equipa da Televisão Pública de Angola (TPA). O canal estatal tem estado a manipular, de forma vil e com uma grande dose de infantilismo político, as iniciativas da oposição e a morte de Ganga.
Familiares e presentes, num assomo de intolerância, forçaram a saída dos profissionais da TPA do local.
Temo que o Manuel de Carvalho Hilberto Ganga não descansará em paz, nos próximos tempos. Como disse uma senhora durante o impasse: “Porquê o governo está a discutir com o morto?”
fonte: makaangola.org
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