A paz, a liberdade e
a democracia, que dão título ao seu livro, refletem alguma inquietação pessoal
em particular?
Não há dúvida. Desde que eu vim para Luanda, desta
vez depois da guerra, eu compreendi que as armas se calaram, mas a verdadeira
paz ainda não tinha sido atingida. Eu reparei que aqueles pressupostos para a
consolidação da paz-a democracia e a liberdade - não existiam. É verdade que
quem fala da democracia fala também da liberdade. Eu costumo dizer que a paz é
o regime político da paz. Portanto, esta situação constitui uma preocupação
constante na minha vida. Eu olho, por exemplo, para a África do Sul e não
preciso de muito tempo para compreender que os sul-africanos estão
verdadeiramente empenhados no processo de reconciliação nacional. Sente-se o
esforço que cada um dos cidadãos faz para manter um clima de paz e de
entendimento com os seus vizinhos, com os seus concidadãos. Sente-se também
este esforço da parte dos dirigentes. Ao contrário do que se passa naquele
país, nós vemos que aqui há ainda um interesse e uma prédisposição de ir
rebuscar permanentemente o passado. E no nosso comportamento do dia-a-dia,
interagimos na base da desconfiança, de recalcamentos e nunca temos a certeza
clara de que o que estamos a dizer corresponde àquilo que pensamos. De tal
forma que, logo que haja um pequeno atrito, nós entramos imediatamente naquilo
que choca e fere. Tudo isso para mim é uma preocupação porque um país como o
nosso não se pode construir sob este comportamento que existe. Daí que todos os
meus melhores pronunciamentos sejam feitos em ocasiões que eu considero
oportunos para relembrar aos angolanos que temos toda a necessidade de
consolidar a paz, a verdadeira e não a de que se fala. Este livro vem trazer a
público pronunciamentos que eu já fiz também publicamente mas que visam
sobretudo contribuir para a necessidade da consolidação dessa paz verdadeira e
da reconciliação nacional. Acha que, por este andar, não é
possível a democracia vingar tão cedo em Angola? Eu acho que não. Aqui
em Angola, como disse num dos meus pronunciamentos publicados neste livro,
parece que fizemos tudo e tudo fica a meio caminho. O nosso processo
democrático está a caminho. Falamos da democracia teoricamente, mas na prática
não nos comportamos como cidadãos de um sistema democrático. Falamos na
necessidade de observar a lei mas isso também é só na teoria, porque na prática
nós estamos constante- mente a violá-la e lá onde não há o cumprimento da lei
não pode haver democracia. Que soluções sugere para se sair desta
situação? Eu acho que os angolanos deviam dar passos concretos em
frente. É bom, porque está tudo aqui já gizado, mas diz-se que a prática é
o critério da verdade. Desta vez a UNITA assumiu a realização de mais
uma manifestação de protesto e a reacção das autoridades foi aquela que se viu.
A direcção da UNITA estava consciente das consequências que podiam advir dos
protestos? Nós nunca fizemos uma manifestação, se analisar a situação
vigente e eu acho que, mesmo no futuro, se a situação recomendar e aconselhar a
realização de manifestações, a UNITA fá-las-á. E o momento actual
aconselha? No nosso entendimento a manifestação é um direito previsto
pela Constituição e é nosso dever lutar para que as leis sejam aplicadas e, do
outro lado, é nosso dever lutar para a cidadania efectiva. Neste caso, a
manifestação é um daqueles direitos a que um cidadão tem necessidade de
recorrer sempre que esgotados outros meios e outros canais para se fazer
ouvir. No que respeita a esta manifestação, por exemplo, nós analisámos na
devida altura que era visível o sentimento de revolta do povo e até a nossa
análise foi ao ponto de que seria melhor a UNITA assumir a realização de uma
manifestação de modo a canalizar de uma forma ordeira este sentimento de
revolta do povo do que deixá-la assim, e que grupos, talvez menos organizados e
menos responsáveis, viessem a cometer actos que perturbassem de facto a ordem
pública. É com este sentimento de responsabilidade que nós decidimos claramente
a efectivação da manifestação. Por um lado, permitiria ao cidadão sentir-se
aliviado porque sentia-se que havia algo a ferver nos corações das pessoas e
precisávamos de criar este tubo de escape mas de uma forma organizada. E foi
neste sentido que procurámos a colaboração das autoridades competentes. Pareceu
que o Governo estava exactamente à espera que fosse a UNITA a assumir a
manifestação do dia 23 de Novembro para depois “cair-lhe em cima”, com o
argumento de que o gesto visava mergulhar o país numa nova guerra. A UNITA não
sentiu isso? Mas nós dissemos que este desejo do governo de atribuir à
UNITA a realização das manifestações sempre esteve presente. Mas também sempre
dissemos que quando fosse necessário fazê-la a UNITA assumiria a sua autoria e
é o que fizemos mais uma vez. E foi a nossa terceira manifestação depois de
duas em 2012. O que nós vimos patente, e continua a ser motivo de curiosidade
no nosso seio, é que parece haver situações mais complicadas a acontecer,
talvez no seio do próprio MPLA, e que criam este receio. Não interessava ao
partido no poder que a UNITA viesse com uma manifestação nesta altura.
Acha que o MPLA, partido maioritário em Angola, se
iria preocupar com a visibilidade da UNITA?
A visibilidade da UNITA é inquestionável e é uma
realidade em Angola. Nós passamos por todos os cantos do país e vemos hoje que
a visibilidade da UNIITA é muito grande. A manifestação seria apenas uma forma
de canalizar estes sentimentos que, na nossa maneira de ver, existiam na altura
de uma forma ordenada, organizada e responsável. Portanto, a questão não é a
manifestação e nós gostaríamos de saber o que é que vai pelo país e, em
particular, nas fileiras do partido no poder, porque não vejo razões e nem faz
sentido transformar o desejo de uma manifestação pacífica e até comunicada
oficialmente, numa guerra. Não faz sentido. Temos pessoas que, à priori,
deviam ser devidamente lúcidas. Portanto, a nossa preocupação é, talvez, que o
país esteja a atravessar alguma preocupação que ainda não conseguimos descortinar. Com
esta situação, acha que a democracia tem estado a conhecer um revés? Nós
sentimos um recúo claro nas conquistas democráticas que o país tinha
conseguido. O nosso sentimento é de que estamos a caminhar também claramente
para a instauração de um sistema ditatorial. E esta ditadura já se faz sentir a
vários níveis. E estamos a caminhar para uma ditadura clara. Até aqui,
teoricamente, estamos numa democracia, mas nós vemos a tendência de se
suprimirem estas conquistas democráticas já feitas de forma “normal”. Aquelas
disposições legais que na Constituição e noutras leis permitiam uma certa
abertura democrática parecem estar ameaçadas . Determinados pronunciamentos
revelam o interesse de se limitar tudo. Estou convencido que o sentimento geral
que vem no seio das fileiras do partido que governa é eliminar o artigo 47 da
Constituição, que permite a liberdade de manifestação. Que indícios, no
vosso entender, apontam para isso? Vamos, por exemplo, para a
Assembleia Nacional, onde as normas internas que previam a possibilidade da
fiscalização dos actos do Executivo foram praticamente postas de fora. Há,
portanto, uma tendência de se eliminar as conquistas democráticas que tinham
sido já formalizadas através de leis. Dirigentes do MPLA terão
solicitado à UNITA um diálogo visando o não empolamento do caso do assassinato
de dois dirigentes da UNITA em Cacuaco, em Luanda e no Huambo. Quer
comentar? Essa informação é falsa. Devo dizer que, mais uma vez, foi a
UNIITA que procurou conduzir o processo de forma a evitar atritos. A UNITA tem
relatos dos familiares dos assassinados que reconhecem e conhecem os
assassinos. E nós não duvidamos, porque até crianças conhecem e dizem que foi o
tio fulano da Polícia. A UNITA teria razões de levantar várias questões. Mesmo
quando a morgue do Cemitério da Santa Ana ficou quase que cercada por agentes
dos Serviços de Segurança e pela Polícia, a UNITA fez tudo para não causar
problemas. Portanto, em nenhum momento alguém contactou a UNITA para
estabelecer algum diálogo. Ao contrário, antes das mortes, a UNITA procurou um
diálogo com o Governo. Este diálogo, com o MPLA, foi aceite mas no encontro os
seus membros disseram claramente que não havia espaços para o diálogo sem ser
no parlamento, onde havia espaço de diálogo. Nós queríamos trocar impressões
mas ninguém queria. Na verdade, na Assembleia, quando a UNITA ou outro partido
da oposição propõe agendar esta questão, nunca é agendada. A UNITA
propôs uma coligação eleitoral da oposição. Em que moldes iria funcionar e com
que estatuto? Desde 2004 que nós nos empenhamos nesse exercício,
muitas vezes com opiniões muito contrárias à realização desse projecto, mas que
sempre acreditámos que os angolanos, os partidos da oposição e a sociedade
civil precisam, e sobre- tudo com a maioria do MPLA, de constituir essa
plataforma para procurar equilibrar a correlação de forças. O que foi
feito da plataforma de 2004? Devo dizer que não tem sido fácil. A
plataforma de 2004 começou com mais de 30 partidos naquela altura, mas muito
rapidamente foram reduzidos a sete. Estes sete continuaram mas, no momento em
que a coligação devia ser consolidada, na altura das eleições, nós verificámos
que a tendência era de cada um se apresentar por si. Esta foi a primeira
experiência. Na legislatura de 2008 nós tentámos fazer mais um esforço. Ali,
nós compreendemos que havia muitas desistências e enveredámos pela via de
constituir plataformas perante problemas específicos. Foi assim que
conseguimos juntar alguns partidos para um debate relativo à Constituição e à Lei
Eleitoral. Como todos se reviram mesmo nessa plataforma, que permitiu a
concertação de ideias durante o debate sobre a Constituição houve também
posições diferentes no momento da votação. E vale a pena insistir
nisso? Eu estou convencido que este é um esforço que vale a pena
fazer. Naturalmente que nós estamos a analisar e levantar este sentimento.
Tivemos a oportunidade de estar numa conferência de imprensa conjunta com
outros partidos na oposição e nós cremos, e a iniciativa foi do Bloco
Democrático, que estamos prontos para ensaiar outros passos. Esses
passos serão concretizados por altura das eleições ou não? Não só, mas
também para outras situações que possam ocorrer. Mas o nosso sentimento é que
quando a iniciativa vem da UNITA parece encontrar o bstáculos. Mas,duma forma
geral, devo dizer que os fracos devem se juntar aos mais fortes para se
fortalecer qualquer iniciativa. E os fortes, neste caso, não são apenas os
líderes e os nomes das organizações. Por outras palavras: se eu na minha
qualidade de membro da direcção da UNITA me for associar a uma iniciativa,
estou a contar com o apoio dos militantes que eu tenho. Se a UNITA aparece como
uma força política de interesse, de relevo, ela só o é se trouxer os seus
membros mas estes só virão se virem a posição que a sua liderança ocupa nessa
iniciativa . Porque senão o que vai acontecer são desconfianças contra a
liderança e, ao invés de fortalecer uma iniciativa, ela fica enfraquecida.
Todos devem compreender isso porque se for eu como Samakuva a minha força não
determina, porque ela depende da força dos seus militantes. O problema
não está nas contrapartidas e nas garantias que devem ser negociadas entre as
lideranças? Talvez não seja tanto esta questão. Mas muitas vezes
sentimo-nos intrigados quando precisam de nós mas que não podemos desempenhar a
posição de realce. Então, à partida, um projecto dessa natureza não pode
andar. O senhor insiste que uma eventual plataforma política deve ter a
UNITA a liderar? Se for o caso e para obter esta possibilidade é
necessário que a UNITA apareça em posição que corresponda e que satisfaça os
seus membros. Como descreve a figura de Nelson Mandela e que lições
devem os políticos angolanos tirar do seu legado? É difícil descrever
ou encontrar palavras para descrever a grandeza de um homem como Mandela.
Durante os dias em que decorreram as cerimónias fúnebres de Mandela creio que
muitos como eu fizeram uma reflexão profunda da dimensão daquele homem. Veja
que a África do Sul inteira e o mundo pararam para homenagear um homem que
todos reconhecem como alguém que serviu o mundo de uma forma bastante positiva.
Eu fui levado a fazer comparações quase todos os dias sobre o que é a África do
Sul e o seu processo de mudança e o processo angolano. Mandela e a África do
Sul tinham razões para criar uma situação que levasse aqueles que no passado
sofreram a vingarem-se. Mas graças ao Presidente Mandela todos se colocaram
numa posição em que, como disse, chegado à África do Sul, é notório o esforço
de cada um de conviver com o outro. Este é o papel de uma liderança de que
depende o comportamento dos seus filhos. O comportamento actual dos
sul-africanos é inspirado nos ensinamentos da liderança do Presidente Mandela
que era de perdão, igualdade entre os cidadãos, tolerância e irmandade. Este
homem cuja grandeza não conseguimos descrever, deve servir de reflexão para
todos. Agora que estamos a chegar ao fim do ano podemos dizer que esta é uma
oportunidade para que vire o ano e virem também as atitudes. Mandela
saiu da prisão e, anos depois, convidou Jonas Savimbi, que tinha recebido apoio
político e militar do regime do Apartheid, para um encontro entre ambos, como
qualifica este gesto? Temos documentos, mensagens escritas que podem
documentar e explicar certos aspectos desse relacionamento. Ficou apenas o
aspecto negativo, o contacto com o Apartheid. A UNITA como organização
revolucionária progressista não podia de forma nenhuma dar a bênção e interagir
os líderes do Apartheid e ficar calada. Há relatos e documentos claros que
teremos a ocasião de apresentar e será uma “caixa de surpresas”. E é lógico que
com a grandeza de Mandela não sei se chegaria ao ponto de chamar alguém que
contribuiu para o seu sofrimento para a sua aldeia natal. Em África só vem para
a nossa casa, na aldeia, a pessoa por quem temos uma determinada estima. E isso
resultou não só dos documentos mas também dos relatos que foram contados ao
Presidente Mandela sobre a atitude de Savimbi ainda antes da sua libertação. A
posição do Dr. Savimbi era clara e alguém poderá interpretá-la de várias
formas. Mas, não só no seio da direcção da UNITA, como nos encontros com os
sul-africanos, o Dr. Savimbi sempre dizia que a melhor forma de ser- virem a
África do Sul e a África em que eles se encontravam inseridos era libertar o
Presidente Mandela. É verdade que a propaganda dos nossos detractores dirá
sempre o contrário e isso parte da luta em que estamos inseridos mas a verdade
vem sempre ao de cima. Sentimos a necessidade de desvendar alguns mitos e
de revelar alguns pontos de vista que talvez venham a ajudar a derrubar aquilo
que são as concepções erradas sobre a luta da UNITA e o seu relacionamento com
a África do Sul durante o regime do Apartheid. O sepultamento de Jonas
Savimbi é um assunto de que já não fala. A exigência da UNITA no sentido de que
o seu líder fundador seja enterrado na sua terra natal continua de pé ou
não? A impressão geral que existe é que a trasladação dos restos
mortais do presidente fundador da UNITA está a ser dificultada pelo Governo
angolano. Eu devo dizer que talvez a realidade não seja apresentada desta
forma. Nós fizemos uma diligência junto do Presidente da República, em 2011,
sobre a necessidade de fazermos essa trasladação. Da parte da família, na
altura, tínhamos recebido o desejo de que esse acto fosse realizado. O senhor
Presidente da República manifestou a sua vontade de colaborar nesse processo
quando a UNITA achasse necessário fazê-lo. Mas foi depois disso que, no nosso
próprio seio, surgiram várias situações que ainda não foram ultrapassadas. Uma
delas é que finalmente até o próprio cemitério para onde se pretende transferir
os restos mortais do Dr. Savimbi precisa de ser limpo de minas. É algo que
compete às entidades do Governo. Por outro lado, e isto não é segredo para
ninguém, não há certeza de que a campa que se diz ser do Dr. Savimbi é na
realidade o local onde se encontram os seus restos morais. É um processo
bastante delicado que precisa de ser organizado e levado a cabo duma forma
credível e transparente. Também nós verificamos que há ainda questões que do
ponto de vista protocolar deveriam ser organizados. Está a dizer que
também da parte da UNITA há tarefas por cumprir? Teoricamente podemos
dizer que o nosso partido está a levar a cabo diligências no sentido de se
realizar esta transferência mas, do outro lado, reina ainda a incerteza sobre
se esta boa vontade manifestada pelo senhor Presidente será efectivada no
momento da verdade. Não podemos duvidar de algo que ainda não se
materializou. Nós pensaríamos que para uma pessoa com a estatura do Dr.
Jonas Savimbi não devia ser da responsabilidade apenas das autoridades mas,
mais uma vez, no quadro do próprio processo de reconciliação nacional, seria da
responsabilidade das autoridades do Estado, em conjunção com a família,
trabalhar no sentido de se materializar esta tarefa. O que é feito do
património da UNITA, cuja devolução consta dos Acordos assinados em 2002? Este
é um problema muito sério e envolve várias dimensões. A primeira dimensão tem a
ver com os acordos. Em 2002 ouvimos do senhor Presidente que este processo iria
finalmente conhecer o seu cumprimento mas, na realidade, nada se fez e está num
impasse por falta da vontade política. Vai concorrer às próximas
eleições para a sua própria sucessão? No passado, quando fui
solicitado a responder questões do género eu reparei que tanto um “não” como um
“sim” criaria situações indesejáveis no seio do partido. E então? A
experiência parece que serviu para alguma coisa e hoje eu prefiro abster-me até
que a altura chegue. Eu pessoalmente sei o que vou fazer. Estamos a apenas dois
anos desde o último congresso e há assuntos a que o partido deve dar prioridade
. Que balanço faz do ano que termina? A situação no país
parece que se encontra numa incógnita. O nosso sentimento é que há algo que não
está claro. Não vemos razões e é por isso mesmo que estamos a dizer que a
chamada tensão política é algo deliberadamente criado porque não há razões para
essa tensão. Se a manifestação cria uma tensão no país, quando ele é pacífica
então algo está errado. O ano está a terminar mas com uma incógnita sobre o que
se passa. Esperemos naturalmente que entremos para o novo ano com esta
incógnita esclarecida para que entremos para o novo ano numa situação em que
ninguém invente guerras, nem tensões políticas que não têm razão de existir.
# opais.net
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Samuel