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A sociedade civil é
geralmente definida como o agregado de organizações e instituições
não-governamentais que manifestam o interesse e a vontade dos cidadãos. Mesmo
Hegel, o filósofo do Estado moderno, considerava que a sociedade civil, com as
suas contradições, tornava o Estado e a sociedade nacional mais eficientes.
Por isso, assumindo que Angola
está a consolidar a sua democracia nos termos da Constituição de 2010, é com
espanto que se vê surgir o decreto presidencial n.º 74/ 15 de 23 de Março, que
regulamenta as organizações não-governamentais (ONG). Este Decreto segue a
técnica jurídica utilizada pelo novo autocrata russo Vladimir Putin, que
introduziu em 2012 legislação que obrigou as ONG estrangeiras a registarem-se
no Ministério dos Negócios Estrangeiros como “ agentes estrangeiros”. Tal
transformou, na prática, todos os trabalhadores das ONG em hipotéticos
“espiões”.
O decreto presidencial angolano
detém uma série de mecanismos que tornam praticamente impossível o trabalho
independente e imparcial, enquanto representantes da sociedade civil, por parte
das ONG.
Vejamos em detalhe os artigos
mais cerceadores da liberdade e democracia garantidos pela Constituição.
Os artigos 7.º e 8.º obrigam as
ONG a uma inscrição/registo junto do Governo, podendo este ser tacitamente
indeferido em caso de inconformidade documental. Portanto, a criação de uma ONG
passa a depender, em última instância, da vontade administrativa do Governo.
O artigo 10.º obriga a uma
inscrição no Ministério das Relações Exteriores. Na prática, repete a lição
russa.
O artigo 11.º obriga a uma
inscrição no Instituto de Promoção e Coordenação de Ajudas às Comunidades
(IPROCAC). Temos aqui um terceiro acto burocrático, apenas para legalizar uma
ONG em Angola. Bem se vê que existe uma intenção legislativa de complicar a
entrada deste tipo de instituições e organismos.
O artigo 15.º obriga ao strip
tease financeiro das ONG e impede-as de desenvolver qualquer actividade adversa
aos princípios defendidos pelos órgãos de soberania nacionais (artigo 15.º, n.º
2, alínea l in fine). Portanto, não pode existir qualquer ONG que defenda
princípios diferentes daqueles que são defendidos pelo presidente da República.
Este artigo é excessivo e pode, aliás, representar o fim da pluralidade
democrática.
Acresce que os n.º 3 e 4 do mesmo
artigo 15.º apenas deixam operar qualquer ONG, em termos financeiros, depois de
um acordo obrigatório com as autoridades angolanas. Ou seja, sem acordo não há
financiamento. Na realidade, sem autorização governamental expressa, não há
qualquer ONG a operar em Angola.
O artigo 18.º atribui a supervisão
das ONG a um membro do Governo. «Supervisão» pode ser definida como um acto de
orientar, guiar, motivar e gerar resultados entre as instituições
supervisionadas. Não entrando em preciosismos jurídicos, dir-se-á que esta
«supervisão» implica intervenção directa nas actividades.
Portanto, também ao nível da
gestão, com este decreto presidencial, as ONG deixaram de ser independentes.
Podemos ainda citar os artigos 20.º ou 23.º como cerceadores da liberdade de
associação e de constituição das ONG.
A verdade é que, a partir deste
decreto, deixou de haver ONG livres em Angola. Ou se trata de um grave erro
jurídico dos serviços legais da Presidência da República ou, e não se quer
acreditar, de uma tentativa putinesca de limitação das ONG.
Competirá às forças vivas
angolanas, às autoridades competentes e aos tribunais pedirem e declararem a
inconstitucionalidade das normas deste decreto, que indubitavelmente atentam
contra a liberdade de associação, de expressão e demais direitos fundamentais.
É pela justa aplicação do Direito
que um país se transforma num Estado de Direito moderno e justo.
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Samuel