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quarta-feira, 7 de março de 2018

GUINÉ-BISSAU: O MITO DA MEDIAÇÃO.

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"Alpha Condé fora da mediação" podia ler-se numa faixa empunhada pelos populares, no dia 18 de Fevereiro, durante a manifestação contra as sanções impostas pela CEDEAO no início desse mês.

Formou-se a ideia de que foi o Presidente José Mário Vaz que "pediu a mediação". Mas terá sido mesmo assim? Vamos mostrar como se tratou de uma mediação forjada de todas as peças, com a maquiavélica intenção de manipular o processo a favor de uma das partes.
Domingos Simões Pereira, antes de assumir o cargo de Presidente do PAIGC, esteve à frente da CPLP, dispondo de uma importante carteira de contactos (tanto em Portugal e nos países de expressão portuguesa, como no resto do mundo), que já tinha utilizado para apoiar tanto a sua campanha eleitoral, como a mesa redonda de Bruxelas promovida ainda durante a sua Governação. Não é claro que compromissos terá assumido nesse âmbito, mas parece evidente que instrumentalizou certas expectativas, posteriormente frustradas com a sua demissão do cargo de Primeiro-Ministro, para conseguir mobilizar apoios políticos no fórum internacional, com destaque para Portugal e Angola, que avaliaram terem sido lesados com o seu afastamento.
 
Recorde-se que Angola esteve no epicentro do golpe de Estado de 12 de Abril de 2012, ocorrido em pleno pleito eleitoral para a Presidência da República, que consistiu numa revolta das Forças Armadas da Guiné-Bissau contra a presença da MISSANG, mal vista por alguns países pertencentes à CEDEAO, como a Nigéria, que sentia colocado em causa o seu papel de liderança da sub-região, ou a Costa do Marfim, cujo Presidente Ouattara também lidara com a presença angolana na guarda pretoriana do ex-Presidente Gbabo. Lembre-se ainda que, no braço de ferro que se seguiu, Angola ofereceu fundos ao Presidente Alpha Condé, para uma cooperação e a instalação no território do seu país de uma base militar, que mais não significava que uma ameaça velada. Para além disso, por essa mesma altura, Alpha Condé teve uma pesada altercação com Kumba Yalá, líder histórico do PRS, que também se candidatara a essas eleições presidenciais. Os militares guineenses serviram de bodes expiatórios para mais uma crise que havia sido despoletada no seio do PAIGC, que incluiu inventonas e várias mortes violentas relacionadas, entre elas as do Presidente da República, do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, de mais do que um deputado da Nação, de um candidato às eleições presidenciais, do Chefe dos Serviços de Informações de Segurança do Estado. Pela primeira vez e abrindo um precedente de desproporcionalidade, sanções dirigidas a indivíduos eram aplicadas, no âmbito da ONU, num contexto que não implicara qualquer ruptura da paz, pois não ocorreram quaisquer mortes (nem depois dessa data, aliás, houve qualquer morte imputável a circunstâncias políticas, contrastando com a frequência anterior). As sanções parecem visar sobretudo Estados percepcionados como frágeis, onde as grandes potências não possuem interesses relevantes. 
Na sequência da transição que se seguiu, o PAIGC venceu as eleições legislativas de 2014, conquistando uma maioria absoluta de mandatos sendo indigitado o seu Presidente para o cargo de Primeiro-Ministro. Este surpreendeu pelo convite efectuado a outros partidos, para ocupar pastas ministeriais, no âmbito de um governo apelidado de inclusivo. Com o recuo que nos permite o tempo, é possível constatar hoje que essa opção não passava da ponta do iceberg, sinal de uma guerra intestina que dividia o Partido vencedor, com Domingos Simões Pereira a temer o surgimento de alas no seio da sua bancada parlamentar, e julgando que assim garantia o apoio do PRS para qualquer eventualidade de dissidência de uma parte dos seus deputados. Passado pouco mais de um ano de Governo, vários escândalos de corrupção abalaram o Governo e levaram à sua demissão. Jomav, após uma efémera tentativa de governo de iniciativa presidencial, nomeou como Primeiro-Ministro Carlos Correia, proposto pelo PAIGC. Na constituição desse Governo, DSP tentou virar o bico ao prego, acabando com a ideia de inclusividade, ao excluir não só o PRS, como também castigando a ala interna opositora, agravando assim o clima de desconfiança. No dia 23 de Dezembro de 2015, durante a discussão do Programa de Governo para 2016, um grupo de 15 deputados do PAIGC optou por inviabilizar o documento, dando razão aos receios de DSP e ameaçando a continuidade desse Governo, pois o segundo chumbo implicaria a demissão do Governo.
O PAIGC pretende, desde o falhanço da sua tentativa de golpe palaciano (que consistia na substituição dos 15 deputados recalcitrantes pelos seus substitutos), e a suspensão ilegal dos trabalhos do Parlamento, a 18 de Janeiro de 2016, fazer acreditar que está envolvido num processo de negociação. No entanto, desde essa altura que não cedeu um milímetro sequer na sua posição. A discórdia centra-se na pretensão de impôr a nomeação de um Primeiro-Ministro da confiança do Presidente do Partido, contra a confiança do Presidente da República. Bloqueando a Assembleia Nacional Popular, e dando assim origem a um impasse, pretendiam criar a percepção de uma crise política, mesmo se inteiramente artificial. O PAIGC, com grandes vantagens em termos de máquina de propaganda e de condicionamento da opinião pública nacional e internacional, relativamente aos seus adversários, manteve uma agenda autista e intransigente, que se resumia a tentar impor a sua posição, negando-se a reconhecer a evolução dos acontecimentos e o facto de ter perdido a maioria parlamentar. 
 
Apoiando-se na imagem negativa de instabilidade crónica da Guiné-Bissau, e alimentando-a, o objectivo passou a ser obter por outros meios aquilo que não tinham condições para impor internamente. A internacionalização do impasse, teve início na 49ª Cimeira de Chefes de Estado da CEDEAO, realizada em Dakar a 4 de Junho de 2016, na qual não foi Jomav que representou a Guiné-Bissau mas sim o Primeiro-Ministro Baciro Djá, que estaria porventura sobretudo interessado na sua manutenção no cargo. Não corresponde pois minimamente à verdade, afirmar que tenha sido o Presidente da República a pedir a mediação. As conclusões da Cimeira, nos pontos relativos à situação na Guiné-Bissau (46 a 52), não permitiam antecipar o abuso que delas viria a ser feito. Como entra Alpha Condé nesta história? Através do ponto 49, no qual se decidia "designar uma delegação presidencial (…), para se encontrar e trocar impressões com as partes desavindas, com o objectivo de melhor avaliar a situação política prevalecente no país". 
 
Mas, neste contexto, quando aparece pela primeira vez o termo mediação? Estranhamente (ou não), surge quando Alpha Condé aterra em Bissau, no dia 10 de Setembro, e apenas na imprensa da Guiné Conacri, como se pode ver aqui e aqui. Ou seja, Alpha Condé excedeu largamente as atribuições que lhe foram conferidas pela Cimeira de Chefes que o mandatara para uma simples avaliação da situação, e sabia perfeitamente o que estava a fazer, intoxicando a imprensa do seu país. A partir daí, e nos dias seguintes, o termo mediação entraria para o vocabulário, sem que ninguém se apercebesse da sua origem relativamente ao processo, e da sua maquiavélica génese. A VOA, que também dedica um artigo, nesse dia, ao assunto (a maioria das notícias só chegariam no dia seguinte, com a publicação do texto do Acordo), fala apenas em "missão de bons ofícios". 
Resumindo e concluindo: foi o próprio Alpha Condé que se arrogou o título de "mediador para a Guiné-Bissau" e se auto-atribuiu a "missão" de mediação. De facto, tratou-se de uma clara ingerência, a ponto de transformar uma troca de impressões num mecanismo de monitorização (o sexto e último ponto do Acordo assinado nesse dia 10 de Setembro em Bissau); e a avaliação da situação em imposição de remodelação governamental de forma a incluir o PAIGC (primeiro ponto do Acordo, mas cuja interpretação permitia presumir que o governo poderia continuar a ser encabeçado por Baciro Djá, signatário do Acordo, ao contrário de Jomav, que apenas o rubricou). O passo seguinte, que fecharia o cerco, viria um mês depois, já em Conacri, acrescentando à exigência do governo inclusivo, a da indigitação ex-novo do Primeiro-Ministro, ponto de partida para uma primeira cedência do Presidente da República, ao aceitar demitir o Primeiro-Ministro, sem qualquer contrapartida do PAIGC. Foi este esboço de roteiro, no contexto de uma trama habilmente concebida para restringir subrepticiamente a soberania da Guiné-Bissau, que veio a servir de base àquele que viria a ficar triste e ingloriamente conhecido como Acordo de Conacri.
 
Mas o que é mediação? Mediação implica a intervenção de uma terceira pessoa neutra, em relação a duas partes em conflito, como forma de o tentar solucionar, e implica tratar essas partes com imparcialidade e em condições de igualdade. A ideia é a de que o mediador assiste as partes na identificação dos pontos em conflito, facilitando a comunicação. Atente-se como a raiz latina da palavra, mediare, tanto pode lembrar a ideia de estar no meio (média, meio termo) como a de media (meios de comunicação). O mediador facilita e agiliza reuniões com as partes, de modo a auxiliar a compreensão e a reflexão de assuntos e propostas, mas nunca impondo às partes uma solução ou qualquer tipo de sentença, pois não é um juiz. Um dos pressupostos da mediação é o de que esta não pode ser imposta às partes, mas que estas aderem de sua livre e espontânea vontade. A mediação é um conceito que tem sido desenvolvido em vários campos, como o comercial, empresarial, civil, familiar e internacional (um exemplo histórico famoso foi aquele que opôs Portugal a Inglaterra, pela posse de Bolama, mediado pelo Presidente americano Ulisses Grant) e que se rege pelos seguintes princípios geralmente reconhecidos:
 
i) a ausência de preferência na determinação do conteúdo do que for acordado pelas partes;
ii) a ausência de autoridade para a imposição de uma decisão vinculativa às partes e;
iii) a ausência de acordo até que cada uma das partes aceite todos os termos.
 
Mediação é sinónimo de arbitragem e pode ser considerada como um passo intermédio entre a negociação directa envolvendo as partes (ou seja, deriva de um impasse a esse nível); e a solução judicial (ou a guerra quando se trata de relações internacionais) na qual uma autoridade decide a favor de uma das partes litigantes em prejuízo da outra. A ideia é a do próprio valor acrescentado do mediador, para aproximar as partes e as convencer de que não estão perante um conflito de soma zero (ou seja, de que aquilo que uns ganham, os outros perdem), mas que é possível fazer crescer o bolo, e encontrar soluções criativas, com ganhos mútuos suficientes para que ninguém se sinta perdedor. O valor da mediação reside numa maior liberdade para clarificar os pontos obscuros, as divergências e insatisfações de cada uma das partes, e essa mediação só pode ser classificada de bem sucedida se culminar com um acordo considerado benéfico para ambas as partes.
 
Será que o auto-promovido a mediador, cujo historial incluía atritos com um Partido envolvido, tinha competência para essa função? Desde cedo que demonstrou que não. O primeiro sinal seria a convocação da mesa redonda para Conacri, ao abrigo do primeiro ponto do acordo de Bissau, quando todos julgavam que o diálogo ocorreria em território nacional. Muitos políticos falaram em humilhação, com o Secretário-Geral do PRS a mostrar-se revoltado, denotando renitência em deslocar-se para fora do país para tratar de assuntos que só aos guineenses diziam respeito, sem uma agenda pré-definida. Todavia, recusar a convocatória, seria assumir o ónus de uma ausência que poderia ser explorada para acusar os seus promotores de boicotar o processo. A presença do Secretário de Estado das Relações Exteriores de Angola, ou a escolha notoriamente parcial de líderes religiosos e tradicionais, foi outro sinal inequívoco de que o processo estava inquinado à nascença.
 
Entabularam-se as negociações no dia 11 de Outubro, com Alpha Condé a apresentar três nomes submetidos por José Mário Vaz, na tentativa de obter um consenso em torno de um deles. No entanto, os representantes do PAIGC, Domingos Simões Pereira, e da ANP, Cipriano Cassamá, optaram por esquivar a discussão em torno dessa proposta, lançando nomes alternativos, naquela que mais parecia uma estratégia de diversão do que de negociação. Durante esses dias de negociações infrutíferas, a posição do PAIGC consistiu simplesmente em fazer finca pé nas propostas que contrariavam os nomes avançados pelo Presidente. O nome de Augusto Olivais não foi abordado. A delegação do PRS, já agastada com a falta de avanços e cansados com o beco sem saída a que se chegara, manifestou o seu mal-estar e a intenção de regressar a Bissau o mais tardar na Sexta-Feira, dia 14 de Outubro, independentemente do encerramento ou não da mesa redonda. Perante essa firme tomada de posição, Alpha Condé, para evitar que a mesa redonda constasse como um rotundo falhanço, decidiu antecipar-se a dá-la por terminada.
À chegada da delegação a Bissau, confrontada com os rumores colocados a circular pela máquina de propaganda do PAIGC, de que o nome "de consenso", escolhido em Conacri recaíra sobre Augusto Olivais, o PRS decidiu desmentir imediatamente na rádio tal possibilidade, esclarecendo que nunca tal nome estivera em cima da mesa. Jorge Gomes, o representante da sociedade civil, o único verdadeiramente independente cujo convite o "mediador" não conseguira contornar, confirmaria pouco depois publicamente a versão apresentada pelo PRS, em declarações à RFI. O PAIGC, mancomunado com Alpha Condé, sabia que o resultado estava já cozinhado nos bastidores, em desrespeito pelos outros actores. A prova disso mesmo, são as afirmações proferidas um ano depois por Alpha Condé, quando lamentou não ter anunciado em Conacri o nome escolhido, acrescentando, que "toda a gente estava de acordo com isso". Ou se considera que os 15, o PRS, o representante da sociedade civil não são gente (pois manifestaram imediata e publicamente o seu desacordo), ou somos forçados a concluir que Alpha Condé e Marcel de Souza não passam de mentirosos compulsivos.
A letra do documento faz fé, e o único ponto que se refere à nomeação do Primeiro-Ministro, fala de "um procedimento consensual de escolha de um Primeiro-Ministro que conte com a confiança do Presidente da República". Ponto final. A publicação do texto do Acordo suscitou imediatamente vivas críticas e o maior cepticismo entre a generalidade dos jornalistas, comentadores e líderes de opinião, pela facilidade com que se lhe adivinhava a improcedência. Num Acordo desta importância não podem haver subentendidos, margem para interpretações ou informalidades. Um Acordo desta importância deve ser conciso, objectivo e de fácil interpretação, mesmo que a sua execução seja difícil. Quando um acordo é de difícil interpretação, nem valia a pena ter sido assinado. A sua redacção, mais do que a incompetência do seu putativo mediador (aliás reconhecida pelo próprio quando admitiu retrospectivamente as suas falhas: "enganei-me"; "pequei"; "admito que haja uma parte de culpa minha" - à luz desta confissão, não deveria ter sido o único sancionado, como principal responsável pelos entraves à aplicação do Acordo?) traduzia uma ambiguidade propositadamente adoptada para tentar manipular as negociações a favor de uma das partes em conflito, montada como uma verdadeira armadilha. 
 
Ou seja, a mediação foi imposta de má-fé, em prejuízo da soberania nacional, por terceiros que nada tinham de neutros, que não trataram as partes com imparcialidade e em condições de igualdade, não facilitaram nem agilizaram o diálogo, mas pelo contrário, tentaram impor arbitrária e autoritariamente uma solução da sua preferência, armando-se em juízes e violando simultaneamente os três princípios que fundamentam e estruturam uma mediação. Não restam dúvidas que, nessas condições, a mediação não passou de um mito.

AMANHÃ NÃO PERCA "Na origem do impasse"
 

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Samuel

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