Sofreu um grave acidente de moto em Angola. Veio para Portugal fazer reabilitação. Diz que a sua maior vitória é ter voltado a trabalhar. Este domingo, vota pela primeira vez numas presidenciais. Quinto capítulo da série sobre inclusão laboral.
Por Ana Cristina Pereira (texto) e Nelson Garrido (fotografia) (*)
Até às 16h30, quem liga para o número geral ouve a sua voz: “Centro de Reabilitação do Norte. Muito bom dia. Meu nome é António Jamba. Em que posso ajudar?” Muito se orgulha de trabalhar naquela unidade que presta cuidados de saúde de medicina física e reabilitação a pessoas de toda a região.
Sai de casa cedo. Desloca-se até à paragem de autocarro na sua cadeira de rodas. Gosta de entrar sem rampa. É um desafio. Sai em frente ao Centro de Reabilitação do Norte (CRN), sobe a rampa de rodas no ar. Por volta das 7h50, meia hora antes do horário, já está a ligar o computador, a verificar se há e-mails para responder, transporte de doentes para validar.
“Podia ter morrido no acidente”, em Angola. Chovia muito naquele sábado, 19 de Outubro de 2007. Embateu num carro. O condutor pôs-se em fuga. A emergência médica não apareceu. “Dores terríveis.” Os primos pegaram nele, meteram-no num carro e aceleraram para o Hospital Geral de Benguela.
“Podia ter morrido no hospital”, torna. “Não me fizeram nada. O médico disse à minha mãe: ‘Se queres ver teu filho vivo, tira-o daqui. Não temos especialista.’” A mãe não tinha dinheiro para o transportar até Luanda. António Costa, seu amigo e sócio da empresa de construção para a qual trabalhava, fretou uma avioneta.
Deu entrada no Hospital Josina Machel. E aí também temeu pela sua vida. “Era só olhar e ir. A minha mãe é que me dava banho.” Entregaram-lhe um colete de ferro para estabilizar a coluna. “Meteram uma esponja para proteger. Não protegia. Criou ferida nas costas.”
António Costa ficou desolado ao vê-lo naquele sofrimento. Só lhe ocorria uma forma de Jamba, então com 28 anos, aceder aos tratamentos de que tanto precisava: transferi-lo para a sede da empresa, em Portugal. Em Benguela, tratava da logística. Em Viseu, trabalharia no escritório.
No Hospital da Prelada, unidade da Santa Casa da Misericórdia do Porto que integra a Rede Hospitalar Nacional, explicaram-lhe que tinha um traumatismo na coluna vertebral, que sofrera uma grave lesão na medula óssea, que a cirurgia podia não ser a melhor opção. Era preciso vigiar. Entretanto, fisioterapia, fisioterapia, fisioterapia.
Ficou internado um ano. “Chorei”, diz ele. “Chorei muito. Foi deixar a realidade de lá, encontrar a realidade de cá, não ter ninguém.” Embora falasse a mesma língua, nem sempre se fazia entender. Outro sotaque, falta de vocabulário, diferente construção frásica. “Diziam que falava muito rápido.” Tinha de desacelerar. E de ler.
Um novo amigo procurava animá-lo mais do que qualquer outro: Carlos Duarte, o subcomissário da PSP que respondeu a uma chamada falsa sobre uma bomba num complexo desportivo de São João da Madeira e caiu do telhado. Às vezes, só queria desaparecer. “Que estou aqui a fazer? Só dou trabalho. O que vai ser de mim?” Num dia não, o médico fisiatra perdeu a paciência: se não queria tratar-se, podia voltar para Angola; não faltava quem precisasse de ali estar.
Aquele “comentário duro” teve o efeito pretendido: forçou Jamba a reagir. Não queria voltar atrás. Lá atrás estava a pobreza extrema, a violência familiar, o alcoolismo paterno, o calor de familiares e amigos e a eterna luta pela sobrevivência. À frente, um caminho para construir. E esse caminho era em Portugal.
Pode parecer um cliché, mas é a palavra que lhe ocorre repetidamente: “Renasci.” “É preciso chegar a um tempo em que a pessoa pára e pensa: eu corria, dançava, jogava à bola e fazia muitas outras coisas que já não posso fazer. É preciso reformatar a cabeça: eu já não estou nesse mundo; este é o meu mundo, agora.” Só assim se consegue imaginar novas possibilidades.
Este domingo, António Jamba, cidadão português desde 2019, 41 anos, vota pela primeira vez numas eleições presidenciais. Sairá de casa e irá, na sua cadeira de rodas, até à Escola Secundária Almeida Garrett, em Vila Nova de Gaia, exercer o seu direito. “Quero participar, dar o meu contributo. Tenho muito orgulho de ser português. Se não fosse Portugal, estava morto. Morto.”
Procurando o tal caminho, inscreveu-se no curso de Multimédia no Centro de Reabilitação Profissional de Gaia. Tinha alimentação e alojamento durante a semana. Como a escola fizera um protocolo com a Associação do Porto de Paralisia Cerebral, pagando podia passar lá o fim-de-semana. Usava a bolsa de 209 euros para isso.
Num instante, ali brotou uma história de amor. Em poucos meses, estava a mudar-se para casa da namorada, com quem haveria de partilhar a vida alguns anos. Completou o curso. Em 2013, já via “outro horizonte.” Mas o país estava imerso na crise da dívida, o mercado de trabalho fechado, mais ainda para as pessoas com deficiência. O estágio curricular alongou-se um ano e meio.
Em 2015, por fim, tudo parecia convergir. O desemprego estava a descer. Com certeza, haveria mais oportunidade também para pessoas com deficiência. Os números registados pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional haviam de mostrá-lo (13.183 em 2016, 12.911 em 2017, 12.135 em 2018, 12.027 em 2019). Jamba procurava um estágio profissional, que lhe permitisse desenvolver os seus conhecimentos de fotografia e vídeo, ter um salário digno, abrir uma porta. De repente, um conflito. A namorada terminou a relação.
Esgotava-se na namorada e na sua família, no estágio e na reabilitação. O seu velho amigo António rendera-se a Angola. O laço entre eles enfraquecera com a distância e o tempo. Para onde ia? “Sem trabalhar, sem onde cair morto, só se fosse para debaixo da ponte.”
Naquela aflição, ligou ao seu médico, Ruben Almeida, director do Serviço de Medicina Física e de Reabilitação no Hospital da Prelada, que anos antes o forçara a reagir. “Eu fazia tratamento em ambulatório no CRN. Ele propôs um internamento de três meses.” Seria suficiente para arranjar um estágio profissional e um sítio para morar?
Já no limite, conseguiu o estágio na Santa Casa da Misericórdia do Porto, naquela altura a gerir o CRN. E um apartamento em Gaia. “Eu só ganhava 585 euros. A renda era 325.” Almoço assegurado na cantina do CRN. “Fazia uma refeição por dia e às vezes nem isso.” Nem sempre tinha tempo para se deslocar do departamento de marketing, no Museu da Santa Casa, na Baixa do Porto, até Gaia.
“Luto no silêncio”, diz. “Já sei o que é sofrer. Ninguém me contou. Aguentava. O meu estômago já está preparado. Venho de país de guerra.” Todos os dias, voltava a uma casa quase vazia. Dormia numa cama insuflável, um frigorífico que pouco fechava, um fogão com duas bocas.
Vivia para o estágio. “Tinha de mostrar empenho, trabalho. Ficava até tarde para deixar as coisas bem-feitas.” Não as podia levar para casa. Não tinha computador. “Será que vou ficar? O que vou fazer? Essa casa não é minha, é de aluguer. Como vou fazer?”
A Associação Salvador, que promove a inclusão de pessoas com deficiência motora, estava à procura de histórias para o programa Salvador podias ser tu. O médico Ruben Almeida sugeriu Jamba. Levaram-no ao circuito do Estoril para conduzir um carro de fórmula 2, mas o grande sonho só se realizou quando o programa foi para o ar, em 2016, e o provedor da Santa Casa, António Tavares, apareceu a garantir-lhe emprego. “Foi o dia mais feliz!”
Alguns amigos perceberam como vivia e quiseram ajudá-lo. Um comprou-lhe uma cama, uma mesa-de-cabeceira, um jogo de lençóis, roupas, calçado, gravatas. Outro trouxe um sofá. Uma ofereceu-lhe uma aparelhagem. Outra mobilizou o seu grupo de amigas e trouxe-lhe uma mesa, um televisor, quadros para “dar um pouco de ambiente”. A Mobilidade Positiva solicitou apoio à Fundação António da Mota e à Fundação Montepio para colocar uma placa, um frigorífico, uma máquina de lavar e construir uma nova rampa de acesso ao prédio.
A vida melhorou. “Recebo 685 euros, 325 vão para a renda, depois tenho de pagar a água, a luz, o passe, a comida.” Não esmiúça as contas para se queixar, mas para que se veja que é capaz. “Estou a conseguir. Tenho de conseguir. Há quem não tenha nada.”
Ainda cumpriu vários contratos a prazo antes de assinar um contrato sem termo. Nesse tempo, desempenhou diversas funções. “O marketing [no Museu da Santa Casa] fechou. Mandaram-me para o call center do Hospital da Prelada. Depois, mandaram-me para aqui.” E aqui ficou em 2018, quando a gestão do CNR transitou para Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho.
Atende o telefone, faz a triagem das chamadas, passa-as se for caso disso, presta informações, trata de remarcar consultas. Quando há eventos, faz pequenos vídeos. No ano passado, idealizou um vídeo de boas festas que pôs muitos funcionários do hospital a dançar em vários espaços.
Agradece à directora, Sofia Viamonte, e às colegas de trabalho. Ali, a trabalhar, sente-se um igual. Lá fora, nota olhares de “coitadinho”. “Encontro isso no shopping.” Para os desmontar, põe as rodas no ar, sobe as escadas rolantes, exibe um sorriso.
Enquanto desfia a sua história, no exterior do CRN, há nomes que vão surgindo. Como o enfermeiro Amílcar Lopes, a terapeuta Isabel Caldeirinha, o médico fisiatra Ruben Almeida, os amigos António Costa, Carlos Duarte, José Carlos Carvalho, Pedro Massa, Alexandra Camacho, Mafalda Almeida e muitos outros. Cada um, a seu modo, o foi ajudando neste atribulado processo de inclusão. E julga que essa consciência do papel desempenhado por outros fez dele uma pessoa mais solidária, mais disponível para ajudar.
Acontece os doentes virem falar com ele em busca de uma voz que lhes diga que é possível recuperar a autonomia, a alegria. Criou, no You Tube, o canal Yes Wheel Can! “É um canal motivacional. As pessoas, quanto mais pobres, mais custa, mais dói. É preciso formatar a cabeça e ir em frente. Se não, vai sofrer, vai fazer sofrer os outros que estão à volta e eles vão virar as costas, e vai sofrer ainda mais.”
O primeiro vídeo diz ao que vem: “Com uma cadeira de rodas, dá para fazer o dia-a-dia. Com uma cadeira de rodas, dá para estudar. Com uma cadeira de rodas, dá para trabalhar.” Noutro, aparece a sair e a entrar na cadeira. Noutro, a subir e a descer um degrau. Com a pandemia de covid-19, não tem feito vídeos com a frequência que pensara. Há-de retomar essa tarefa, quando a crise pandémica estiver controlada. Para já, continua a sua vida.
Três dias por semana, tem uma hora e meia de reabilitação. Saindo do CRN, apanha o autocarro e vai até casa. Faz a comida para o jantar daquele dia e o almoço do dia seguinte. Toma o seu banho. Ao fim-de-semana, trata da roupa. Não é raro dançar ao arrumar a casa. Gosta de se meter no autocarro até à marginal e correr na sua cadeira de rodas. Integra o movimento Egoísmo Positivo.
Sente-se grato – pela oportunidade de se tratar, de estudar, de trabalhar, de resgatar a sua autonomia, de se divertir. “Eu, às vezes, fico a conversar comigo e à procura de respostas. Quero estudar mais um bocadinho, estudar mais um bocadinho. Agora meu sonho é entrar para a faculdade, fazer o curso de guionista.” O lema? “Desistir, nunca. Temos de acreditar.”
(*) Jornal Público de 24.1.2021
fonte: FOLHA8
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Samuel