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quarta-feira, 5 de abril de 2023
ANGOLA: «PRETO EXPLORA PRETO, CHEIRA A TEMPO COLONIAL»
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O rapper português Valete está disposto a perpetuar a mensagem e o espírito do seu “mano Azagaia”, o artista moçambicano falecido em Março e que foi “a voz das angústias” dos jovens e do povo africano, que o idolatravam. O Folha 8 junta a Azagaia o Jornalista Carlos Cardoso, assassinado em Moçambique em Novembro de 2000.
Valete, nome artístico de Keidje Torres Lima, um dos promotores do espectáculo que na quinta-feira reúne em Lisboa 22 músicos numa homenagem ao rapper e activista moçambicano, diz que, “muito mais do que músico, Azagaia era a grande voz do cidadão moçambicano, da juventude moçambicana”.
Para o artista português de origem são-tomense, amigo e parceiro de Azagaia, com quem gravou seis canções, o rapper representava “as inquietudes do povo moçambicano, as angústias do povo moçambicano”. “Provavelmente, estamos a falar de uma das figuras mais importantes de Moçambique deste século”, disse.
Valete atribui a Azagaia “a verdadeira música de intervenção, uma música de combate, militante, uma música que não faz cedências, uma música a todos os níveis comprometida com o povo”.
“Azagaia era uma ilha porque era genuíno, porque acreditava muito nas ideias que passava no mundo e para ele havia coisas que eram maiores do que as ambições do artistas” e “isto é um tipo de posição e de postura que poucos músicos têm”, observou.
Valete defendeu que se olhe para Azagaia como “uma excepção, como um gajo que abdicou de muitas coisas para retratar o povo moçambicano, com muitos custos”.
Na sua opinião, a principal mensagem de Azagaia foi “o amor por Moçambique e por África”, tendo nas letras que compôs nos últimos dez anos marcado a sua “posição vincadamente pan-africanista”. “Azagaia acreditava numa África unida”, disse, acrescentando que “a última utopia de Azagaia era África como um só país”.
A questão colonial esteve sempre muito presente nas composições do artista moçambicano, o que Valete considerou “relativamente normal em países africanos que vieram de um passado muito recente de colonialismo”, onde “ainda existam muitos vestígios desse colonialismo”.
“Quarenta a cinquenta anos em história é quase nada numa perspectiva civilizacional”, indicou, referindo que um dos objectivos de Azagaia era combater isso e que Moçambique “conseguisse ultrapassar esse estágio”.
“Existe muito racismo em África. Existem elites brancas e mulatas que ainda controlam muito o poder político em muitos países africanos e fazem uma opressão aos negros. Existe muito em África e Azagaia falava disso”.
Numa das suas músicas mais famosas (“cães de raça”) Azagaia escreveu: “Expulsei colonos, mas nunca o colonialismo; Vi a merda, baixei a tampa e não puxei o autoclismo; Por isso é que a minha casa cheira mal; Preto explora preto, cheira a tempo colonial”.
Disposto a perpetuar a mensagem do colega e amigo, Valete está empenhado no espectáculo de quinta-feira, que contará com a participação de 22 artistas, embora muitos outros quisessem participar.
Sobre esta resposta, afirmou: “A classe artística é uma classe sensível, politizada, percebiam muito bem quem era o Azagaia”.
Além de Valete, Sérgio Godinho, Paulo Flores, Maria João e Karyna Gomes são alguns dos músicos que irão c no espetáculo que se realiza na Casa Independente, em Lisboa, e que já está esgotado.
Azagaia morreu em 9 de Março, consternando milhares de fãs e sobretudo jovens que se revêem nas suas mensagens. Depois da morte do rapper, foram organizadas manifestações em sua homenagem, mas que foram reprimidas pela polícia, o que gerou críticas de organizações nacionais e internacionais.
AINDA SE LEMBRAM DE CARLOS CARDOSO?
Carlos Cardoso foi assassinado em 2000, em Moçambique, porque como Jornalista fazia uma séria investigação à corrupção que rodeava o programa de privatizações apoiado pelo Fundo Monetário Internacional.
Para Mia Couto, «não foi apenas Carlos Cardoso que morreu. Não mataram somente um Jornalista moçambicano. Foi assassinado um homem bom, que amava a sua família e o seu país e que lutava pelos outros, os mais simples. Mas mais do que uma pessoa: morreu um pedaço do país, uma parte de todos nós».
Embora sejam uma espécie em vias de extinção, os Jornalistas continuam (em todo o mundo) a ser uma espinha na garganta dos ditadores, mesmo quando eleitos e escudados em regimes democráticos.
Porque morreu Carlos Cardoso? Morreu por entender que a verdade é o melhor predicado dos Homens de bem. Morreu, ainda segundo Mia Couto, porque «a sua aposta era mostrar que a transparência e a honestidade eram não apenas valores éticos mas a forma mais eficiente de governar».
Morreu, «por ser puro e ter as mãos limpas». Morreu «por ter recusado sempre as vantagens do Poder». Morreu por ter sido, por continuar a ser, o que muito poucos conseguem: Jornalista.
«Liquidaram um defensor da fronteira que nos separa do crime, dos negócios sujos, dos que vendem a pátria e a consciência. Ele era um vigilante de uma coragem e inteligência raras», afirmou Mia Couto num testemunho que deveria figurar em todos os manuais de Jornalismo, que deveria estar colocado em todas (apesar de poucas) Redacções onde se faz Jornalismo.
Nas outras, onde funcionam linhas de enchimento de conteúdos, não deve figurar. E não deve porque Carlos Cardoso não pode ser confundido com a escumalha que vegeta em muitas delas à espera de um prato de lentilhas.
É certo que no mundo lusófono não são muitos os casos de morte física. Mas há, igualmente, muitos assassinatos. O crime contra os Jornalistas é agora muito mais refinado. Não se dão tiros, marginaliza-se. Não se dão tiros, rescinde-se. Não se dão tiros, amordaça-se.
«O sentimento que nos fica é o de estarmos a ser cercados pelo selvajaria, pela ausência de escrúpulos dos que enriquecem à custa de tudo e de todos. Dos que acumulam fortunas à custa da droga, do roubo, do branqueamento de dinheiro e do tráfico de armas. E o fazem, tantas vezes, sob o olhar passivo de quem devia garantir a ordem e punir a barbárie», disse Mia Couto numa cerimónia fúnebre em Honra de Carlos Cardoso.
É isso mesmo. Continua a ser isso mesmo, seja em Moçambique ou na Guiné-Bissau, em Angola ou em Portugal.
Folha 8 com Lusa
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Samuel