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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Do colonialismo português ao colonialismo do… MPLA.

NO BALUR I STA NA NO KUNCIMENTI, PA KILA, NO BALURIZA KUNCIMENTI!...



O MPLA, partido que “só” está no poder em Angola desde 1975, assinala a passagem de mais um aniversário do ataque de nacionalistas às cadeias de Luanda defendendo aquilo que não fez durante quase 44 anos: “mais disciplina” e “controlo” nos gastos nacionais, luta contra a corrupção (o seu principal ADN) para acabar, é claro, com as “sequelas do colonialismo”.

Por Orlando Castro
A propósito do 4 de Fevereiro de 1961, data que o partido defende como o início da luta armada pela independência, o MPLA advoga que a libertação total do povo angolano e a liquidação de todas as sequelas do colonialismo passam pelo “despertar de uma nova consciência para com o trabalho, para o controlo nacional dos gastos, para mais disciplina e melhores resultados, em todos os sectores”.
Pois é. Digamos que, de facto e de jure, o MPLA (de Agostinho Neto a João Lourenço, passando por José Eduardo dos Santos) personifica o apogeu angolano dessas “sequelas do colonialismo”. Aliás, ele não só manteve essas sequelas como as ampliou em claro benefício próprio e exclusivo. Se, aliás, se escolhesse a figura que mais expressão dá ao colonialismo que abalroou o nosso país, José Eduardo dos Santos deixaria a léguas António de Oliveira Salazar.
Nesta data teve lugar a primeira revolta organizada contra o regime colonial português, com o ataque à Cadeia de São Paulo e à Casa de Reclusão, em Luanda, onde se encontravam detidos vários independentistas.
Oficialmente, a história – contada pelo MPLA – diz que a revolta popular, armada de paus e catanas e mais de 200 nacionalistas, foi organizada por elementos ligados ao MPLA como Neves Bendinha ou Imperial Santana, durante largos meses, desde Outubro de 1960.
“Deve-se assegurar o papel crucial do Estado, como agente regulador e coordenador de todo o processo de desenvolvimento de Angola, devendo o mesmo exercer uma função de liderança, com base numa visão estratégica, concertada com a sociedade civil, com o sector empresarial e com toda a nação”, lê-se numa das muitas notas do Bureau Político do Comité Central do MPLA.

MPLA não é dono da verdade

A 4 de Fevereiro de 1961, cidadãos ligados ao MPLA, desencadearam um ataque contra a Cadeia de São Paulo e a Casa de Reclusão, em Luanda, dando início à luta armada que culminou com a proclamação da independência de Angola, em 11 de Novembro de 1975.
Várias fontes sustentam que deveriam participar no ataque cerca 2100 pessoas, mas as detenções efectuadas pela polícia política portuguesa (PIDE) nos dias anteriores à acção, na sequência de denúncias, fizeram reduzir o número para pouco mais de 200 intervenientes.
Consta que Paiva Domingos da Silva, Imperial Santana, Virgílio Sotto Mayor e Neves Bendinha (já falecidos) terão sido alguns dos responsáveis pela coordenação do assalto, cujos preparativos começaram em Outubro de 1960.
A arrojada acção tinha como objectivo primário libertar os presos políticos angolanos que se encontravam encarcerados nas cadeias visadas, acusados pelas autoridades coloniais de actividades subversivas. Os participantes no ataque foram treinados sobre questões mais práticas, por exemplo como manejar os instrumentos que seriam utilizados, principalmente catanas, ou desarmar um sentinela.
As informações disponíveis revelam que os treinos decorriam à noite, na zona de Cacuaco, arredores de Luanda, e quando se começou a recear infiltrações de indivíduos ligados à polícia política portuguesa a preparação mudou‐se para o Cazenga.
Neste último local foi erguido um monumento denominado “Marco Histórico do 4 de Fevereiro”, inaugurado em 19 de Setembro de 2005, em homenagem aos heróis tombados pela causa da independência.
A escolha da data do ataque (4 de Fevereiro) teve em atenção o facto de se encontrarem em Luanda, na altura, jornalistas estrangeiros que aguardavam a chegada do paquete “Santa Maria”, assaltado alguns dias antes no alto mar por um grupo liderado por Henrique Galvão, um oposicionista do regime de Salazar.
Quando ficou claro que o navio não viria para Luanda e os jornalistas começaram a preparar‐se para abandonar a capital angolana, os nacionalistas decidiram lançar o ataque antes que fossem todos embora para chamar a atenção da comunidade internacional sobre a repressão que se vivia no país.
A presença dos jornalistas garantiu a projecção mediática internacional do assalto dos nacionalistas angolanos que, vestidos de negro e armados com paus e catanas, atacaram os guardas da Cadeia de São Paulo e da Casa de Reclusão de Luanda.
“A acção revolucionária protagonizada pelos bravos patriotas foi determinante para o derrube do colonialismo em Angola e em outras colónias portuguesas em África”, afirmou Américo José Gaspar, coronel das Forças Armadas Angolanas na reserva e ex‐guerrilheiro do MPLA.
Este responsável conta que, devido à brutalidade do regime fascista, em 1966, muitos jovens como ele, na altura com 16 anos de idade, não hesitaram em juntar‐se voluntariamente aos combatentes da liberdade para “travar” a fúria dos colonialistas que se espalhava pelo interior do país.
Esta acção levou as autoridades fiéis ao regime de Salazar a enviar para Angola os primeiros contingentes militares destinados a reforçar os reduzidos efectivos até então destacados na província ultramarina, como era considerado o território angolano.
Na sequência do ataque, a pressão da polícia política portuguesa aumentou e cresceram também as detenções entre os nacionalistas, originando a fuga de milhares de angolanos para as matas e países limítrofes, como a Zâmbia e o então Congo Leopoldoville, onde prosseguiram a luta pela independência do país.
Pouco tempo depois do assalto às cadeias em Luanda, o conflito alastrou‐se às restantes colónias portuguesa em África.
Conta o escritor Emídio Fernando que “nas conversas clandestinas, nas esplanadas e nos serões quentes de Luanda, nas matinés e noitadas de merengues e rebitas dos musseques, nos almoços de funge, regados com cervejas Cuca, corria um mistério, transportado por uma frase dita em surdina: ‘Este ano vai haver dois Carnavais!’”.
A frase sobressaltou a advogada Maria do Carmo Medina, já conhecedora e defensora das actividades clandestinas, quando a ouviu da boca de João Cardoso, um activista pela independência de Angola e que viria a morrer uns anos depois na prisão de São Pedro da Barra.
A expressão – “dois Carnavais” – funcionava quase como uma senha de cumplicidade entre quem estava a preparar, há largos meses, um assalto às cadeias de Luanda.
Na primeira linha dos preparativos aparecia Manuel das Neves, um cónego mestiço, dos raros não‐brancos de origem portuguesa a integrar a Igreja Católica. Era ele que servia de elo de ligação entre os presos, os seus familiares e dirigentes políticos. E, sobretudo, um instigador, a partir do seu pequeno quarto numa paróquia de Luanda, da revolta armada, “com sangue”, “contra o colonialismo”.
Como director do jornal “O Apostolado”, Manuel das Neves conseguia fazer passar algumas mensagens subtis para o exterior, ao mesmo tempo que ia dando notícias sobre as movimentações de alguns nacionalistas que viviam no estrangeiro. Servia‐se ainda do jornal e de contactos com os paroquianos para manter ligações com activistas em Luanda, mas também com gente que viajava frequentemente entre os bairros periféricos de Luanda e o Congo, via Matadi. E era através desses viajantes, a maior parte de origem congolesa ou nascidos no Norte de Angola, que Manuel das Neves ia tendo conhecimento das movimentações de nacionalistas e do nascimento, primeiro, da UPNA e, depois, da UPA.
Há muito que o cónego, vigário‐geral da diocese de Luanda, vinha defendendo a necessidade de Angola se tornar independente. Desde a década de 50, sobretudo nos derradeiros anos, que Manuel das Neves recebia, em sua casa, perto da Sé de Luanda, o também padre Joaquim Pinto de Andrade que, tal como o irmão, Mário, começava a participar nos movimentos que lutavam pela independência. As conversas, de acordo com a memória de Pinto de Andrade, não variavam muito e eram em tudo idênticas a tantas outras em que Manuel das Neves mantinha com outros activistas e que serviam para espalhar ideias nacionalistas:
“Ele dizia que era preciso quebrar este mito [que os angolanos não queriam a independência e gostavam de ser portugueses] e isto só fazendo um acto de força, um acto que tivesse repercussão internacional para que todo o mundo visse que os angolanos queriam ser independentes. E planeava em conversas em que dizia: ‘Não é preciso muita coisa, para se fazer uma guerra e vencer. Não. É só para fazer um acto que dê brado lá fora e quebre o mito’. Então, eu disse‐lhe: ‘Como, com que armas, senhor cónego?’ E ele respondeu‐me: ‘Armas brancas, portanto, catanas, punhais… assaltar cadeias onde haja presos políticos para os libertar e, no mesmo dia, assaltar a rádio e as principais esquadras da Polícia e ir pela Rua do Balão até à Fortaleza e hastear a bandeira nacional. Bom, temos de fazer uma bandeira nacional, temos de inventar uma’”.
Na procura de um acto espectacular, Manuel das Neves defendia que era necessário espreitar uma oportunidade. Por exemplo, quando houvesse jornalistas estrangeiros em Angola. O ensejo, tantas vezes desejado, surgia proporcionado por Henrique Gal‐ vão, quando decidiu desviar o navio “Santa Maria”. Demitido do exército, onde tinha o posto de capitão, Henrique Galvão resolveu assaltar o paquete, com 970 turistas a bordo, que se propunha atravessar o Atlântico com destino ao Brasil.
A “Operação Dulcineia” começara no início de Janeiro. Henrique Galvão encontrava‐se na Venezuela à espera do navio que deveria fazer escala em Caracas a caminho do Rio de Janeiro.
Galvão e mais 20 elementos – entre portugueses e espanhóis que combatiam as duas ditaduras ibéricas – do autoproclamado DRIL (Directório Revolucionário Ibérico de Libertação) tomavam de assalto o navio anunciando que pretendiam atracar em Angola. Mal foi dada a notícia do sequestro do navio, jornalistas de quase todo o Mundo aterravam em Luanda. No entanto, a aventura de Henrique Galvão terminava no Brasil, precisamente na noite de 3 de Fevereiro, poucas horas antes dos assaltos às cadeias.
Luanda estava “apinhada de jornalistas, cineastas e locutores de rádios”, de acordo com um relatório da PIDE, elaborado dias depois.
Manuel das Neves recebia a colaboração empenhada de Mariana Ana Paz, que tinha a incumbência de levar comida para os presos da Casa de Reclusão Militar, na Cadeia de São Paulo, quase todos eles, detidos por participarem em actividades subversivas contra o regime. Mas não só. Cada visita era acompanhada por mensagens, não apenas do cónego, mas de outros activistas. E, no interior dos bairros, pontificava o “mais‐velho” Cardoso Sebastião Gamboa, considerado, pela população, como tendo poderes “mágicos”.

Ritos ditos mágicos

Há várias semanas que Cardoso Gamboa obrigava os chefes de outros bairros a uma rigorosa quarentena, com vigílias permanentes ao fim do dia, no cemitério, e um jejum absoluto. Os chefes seguiam assim as práticas tradicionais de feitiçaria importadas do Congo, em que até se usava uma panela a ferver, a cozer uma carta, que se dirigia a Patrice Lumumba e com o objectivo de o informar o que se preparava em Luanda. O “campo dos brasileiros”, no Bairro Rangel, servia de palco para as reuniões clandestinas e os preparativos em que se pedia a inspiração e ajuda dos espíritos. As catanas e os cassetetes iam sendo benzidos por dois curandeiros, em cerimónias praticadas na casa de Paiva Domingos da Silva que, uns meses antes, viajara até ao Congo em busca de poderes mágicos.
Enquanto decorriam estas movimentações pela cidade de Luanda, os presos políticos viviam, praticamente em todas as cadeias, com uma espada sobre a cabeça: a possibilidade de, a qualquer momento, serem transferidos para o Tarrafal, na ilha cabo‐verdiana onde foi construída uma prisão de alta segurança inspirada nos modelos dos campos de concentração nazis.
Além do desejo de fuga, Manuel das Neves, Cardoso Gamboa e os presos políticos não tiravam da cabeça os últimos acontecimentos em Angola. Depois do “Processo dos 50”, o mês de Janeiro desse ano assistira aos actos mais sangrentos dos últimos tempos provocados pelo regime e, provavelmente, o maior banho de sangue da história colonial portuguesa.
Na Baixa de Cassange, província de Malanje, milhares de agricultores das fazendas de algodão – a maior parte deles vindos do Sul e obrigados a trabalhar no Norte – revoltavam‐se com as condições de vida. Exigiam apenas a abolição do trabalho forçado e o fim do pagamento de impostos, fazendo greve nas plantações algodoeiras, num movimento liderado por António Mariano. Os protestos não se limitavam à greve.
Durante dois dias, foram queimadas sementes, algumas pontes sobre os rios apareceram destruídas e as missões católicas, as lojas e casas de colonos sofreram ataques. As tropas portuguesas reagiram, colocando em acção as companhias de caçadores especiais e aviões que lançaram bombas incendiárias. A investida das tropas coloniais, da polícia e de alguns colonos, além de esmagar a rebelião, provocou a morte a milhares de agricultores que trabalhavam para a Companhia de Algodão de Angola e para a Cotonang, uma fazenda algodoeira de capitais mistos de portugueses e belgas.
O massacre de Cassange não passava despercebido pela imprensa em quase todo o Mundo, ao mesmo tempo que os jornais em Portugal, subjugados pela censura, nem sequer arriscavam a abordar o assunto.
No entanto, ganhava outra dimensão no topo da polícia política. Por isso, logo a seguir ao massacre de Cassange, nascia o SIGGA (Serviço de Informações do Governo Geral de Angola) que reunia as informações recolhidas pela PIDE e por militares e a meio do ano dava lugar ao SCCI (Serviço de Centralização e Coordenação de Informações). Iniciava‐se assim uma colaboração, entre a polícia política e as forças armadas, que, no entanto, em 14 anos, iria passar por diversas dificuldades de entendimento.
Os acontecimentos de Cassange, que se repetiram, mas com resultados de menores dimensões, nos dias imediatamente seguintes, deixavam fortes marcas a muitos dos sobreviventes que encontraram refúgio nas periferias das cidades mais importantes, como Benguela, Novo Redondo, Nova Lisboa e Luanda.
O dia 4 de Fevereiro ameaçava ser um dia igual aos outros vividos nos últimos tempos em que os musseques da capital angolana ardiam de ansiedade. Luanda preparava‐se para as noites de folia e matinés dançantes que eram quase milimetricamente preparadas pela burguesia portuguesa, já adaptada à alegria luandense e também pelos angolanos “de segunda”.
Na Casa de Reclusão Militar, o nacionalista Mendes de Carvalho, preso no âmbito do “Processo dos 50”, com ligações estreitas aos grupos de enfermeiros e alfaiates que entretanto se formaram em Luanda, tentava entregar, há largos meses, um recurso ao Supremo Tribunal Militar, escrito na cadeia e baseado num código de Justiça Militar, que ele próprio consultara. Os argumentos do recurso foram delineados com a ajuda de André Franco de Sousa, que já se vinha destacando por ter participado nos primeiros passos do MPLA.
No decorrer do julgamento, Mendes de Carvalho ficara sem o acompanhamento do advogado, porque todos os juristas se recusavam a defendê‐lo a partir do momento em que, em plena sala de tribunal, resolveu acusar os portugueses de serem “um povo bárbaro”.
No entanto, o recurso só poderia ser entregue em Lisboa, precisamente por um causídico. Também por carta e por sugestão de André Franco de Sousa, Mendes de Carvalho solicitara a ajuda do bastonário da Ordem dos Advogados, Adelino da Palma Carlos, que, no entanto, recusara recorrendo ao argumento de “falta de tempo”.
O nacionalista angolano virava‐se então para o advogado Luís Saias, que, ao aceitar, recomendava o envio de uma procuração, “com muita urgência”. A resposta de Luís Saias chegava à Cadeia de São Paulo no final da tarde de 3 de Fevereiro de 1961.
Mendes de Carvalho decidia‐se por pedir o auxílio ao irmão, num telefonema, em que lhe solicitava que fosse buscar, à cadeia, uns documentos para serem “transferidos para Lisboa”.

“Transferidos” para onde?

As palavras “transferidos” e “Lisboa” soavam, de imediato, como campainhas que accionavam os sentidos e os permanentes receios dos presos. À velocidade de um fósforo aceso, passava a informação na cadeia que todos os detidos seriam transferidos, no dia a seguir, para a capital portuguesa. O mesmo era dizer: para a ponte de passagem a caminho do Tarrafal. Fizeram‐se malas, arrumaram‐se os parcos haveres, avisaram‐se as famílias e o rumor depressa se propagou nos bairros dos arredores de Luanda, onde há muito se aguardava um sinal para atacar os estabelecimentos prisionais.
De madrugada, na passagem de 3 para 4 de Fevereiro, precipitava‐se tudo. Um foguete, accionado num bairro vizinho da Cadeia de São Paulo, rebentava às quatro horas da manhã, dando sinal para que mais de 250 pessoas, divididas em 10 grupos, e vestidas de camisolas e calções pretos e de catanas em punho, largassem os bairros a caminho das cadeias. Destes, apenas quatro grupos entravam em confrontos directos com as forças portuguesas e conseguiam atingir os alvos: a Cadeia de São Paulo e outros estabelecimentos prisionais da cidade de Luanda.
Dentro da prisão, os grupos de detidos que, há meses, preparavam a fuga, resolveram avançar, pegando em todos objectos que fossem cortantes. Os primeiros ataques provocavam a morte a um cabo, de apelido Silva, que fora decapitado, sendo a primeira vítima da longa madrugada luandense. Em poucas horas, morriam 40 assaltantes e sete guardas prisionais, de acordo com dados oficiais divulgados pelo Governo Geral de Angola.
Na preparação dos ataques, estiveram envolvidos 3.123 homens, todos recrutados nos bairros periféricos, e comandados, no terreno, pelos angolanos Paiva Domingos da Silva e Francisco Imperial Santana.
Ainda na manhã de 4 de Fevereiro, Mendes de Carvalho era chamado ao gabinete do director. Sobre ele recaía a suspeita de ter dado o sinal para os ataques.
Escritor, assinando com o seu pseudónimo em kimbundu, Uanhenga Xitu, Mendes de Carvalho, haveria de recordar, num livro publicado depois de 1975, essas horas em que ele próprio admite não saber como conseguiu sobreviver.
De Conakry, mal souberam dos acontecimentos em Luanda, os dirigentes do MPLA, a viver no exílio, resolviam reivindicar a autoria dos assaltos. Coubera a Mário Pinto de Andrade, presidente do movimento, as primeiras palavras de regozijo pelo que se passara na capital angolana. O presidente do MPLA, acompanhado por outro dirigente, Lúcio Lara, emitia um comunicado em nome do Comité Director do MPLA, intitulado “Os incidentes de Luanda”.
O texto recordava os acontecimentos na capital angolana e voltava a falar na “acção directa”.
Mas o “4 de Fevereiro” não iria acabar na manhã desse dia. Dias depois, logo após os funerais das vítimas, grupos de civis brancos organizavam autênticas batidas pelos musseques da periferia de Luanda e provocavam a morte a centenas de pessoas. Uma semana depois, o “filme” era retomado, mas em menor escala.
Novos tumultos nas cadeias faziam sete mortos, todos presos, e mais 17 feridos. E novas incursões dos mesmos grupos de civis deixavam um lastro de sangue e provocavam um número elevado de vítimas mortais que nunca chegou a ser contabilizado.
No intervalo dos dois ataques, o governador‐geral de Angola, Silva Tavares, resolvia fazer uma incursão pelos musseques – ou “bairros excêntricos”, como eram descritos pela imprensa em Lisboa – acompanhado pela polícia e por jornalistas previamente escolhidos.
Silva Tavares pretendia assim demonstrar que a situação se encontrava calma. Logo a seguir à visita, o governador leu uma mensagem, na Emissora Nacional, garantindo que reinava a calma em Luanda e recomendando às pessoas para acatarem as ordens e recomendações da polícia.

A versão portuguesa (Silva Tavares)

“N a madrugada de 3 para 4 de Fevereiro de 1961, sete agentes da autoridade foram cobardemente assassinados, traiçoeiramente, sem poderem esboçar um gesto de defesa, quando cumpriam o seu serviço de rotina. Caíram numa cilada, acorrendo a um chamamento de socorro, a uma fictícia desordem, em plena madrugada.
Mortos com requintes de selvajaria, cortados à catanada, foram estes os primeiros mártires da causa portuguesa, as primeiras vítimas da horda assassina a soldo de potências estranhas de intenções conhecidas. Na manhã do dia 4 a notícia espalhou‐se por toda a cidade como um relâmpago.
A surpresa foi tão grande que, a princípio, era difícil acreditar que fosse verdade. Mas lá estavam os cadáveres, sete corpos que horas antes ainda fervilhavam de vida, a atestar a notícia, tão cruel como revoltante. Começavam então a conhecer‐se pormenores.
Houvera ainda uma tentativa de assalto à Casa da Reclusão Militar, onde fora morto um cabo do exército. Havia ainda alguns agentes da autoridade hospitalizados, gravemente feridos. Houvera um soldado negro que fora um verdadeiro herói. Debaixo do fogo e das catanas dos invasores, conseguira meter‐se no ‘jeep’ e chegar, embora ferido, ao quartel onde dera o alarme. De manhã, toda a zona das Barrocas estava a ser motivo de aturada rusga por parte da Polícia. Luanda inteira já sabia dos acontecimentos e assistia excitada e revoltada ao desenrolar das coisas.
Mas ainda não passava pela cabeça de ninguém, naquela altura, que aquilo seria o prenúncio de dias terríveis, dias que ficariam para sempre marcados na história de um país, dias que deixariam a terra de Angola regada com o sangue dos seus habitantes, colhidos de surpresa por um bando de assassinos narcotizados e completamente enlouquecidos por promessas enganosas e impossíveis.
Deus sabe como nesta terra se vivia com absoluta e completa paz, lutando lado a lado, pretos, brancos e mestiços para o mesmo fim: o engrandecimento da sua Pátria – PORTUGAL!
O funeral destes malogrados portugueses realizou‐se no dia 5 de Fevereiro de 1961, da Igreja do Carmo para o Cemitério Novo.
Jamais se vira um acompanhamento fúnebre como aquele! Ao longo de todo o percurso, nas ruas, nas janelas, nas paredes, nas árvores, em toda a parte onde houvesse um lugar para tal, lá estava uma pessoa, de lágrimas nos olhos para dar o último adeus aos sete heróis. Milhares e milhares de pessoas e carros acompanharam os sete ataúdes até ao cemitério. No Cemitério Novo e no largo fronteiro, era impossível meter mais gente. O governador‐geral e as mais altas individualidades civis e militares da Província integraram‐se no cortejo, junto às urnas. Foi a maior manifestação de pesar que jamais se viu na capital de Angola.
Rezavam‐se as últimas preces e preparavam‐se as urnas para baixar à terra, sua última morada, quando os milhares de pessoas que se encontravam dentro do cemitério foram alertados por gritos e alguns tiros vindos de fora. A confusão foi geral e o pânico apoderou‐se de todos. Mulheres gritavam pelos filhos, filhos gritavam pelos pais, pessoas corriam de um lado para o outro. Só visto. Soaram mais tiros. Homens muniam‐se de paus ou de qualquer outro objecto que encontrassem e que lhes pudesse servir de defesa. Corriam em todas as direcções. O pânico era geral. Desconhecia‐se ainda, lá dentro dos muros, o que na realidade se estava a passar cá fora. Mas pairou sobre todos a ideia de um ataque naquele momento e naquele local, colhendo toda a gente de surpresa e praticamente ‘enjaulada’ entre as quatro paredes do campo santo.
O descontrolo era absoluto. Poucos conseguiram conservar a calma. Soaram mais tiros. Pouco a pouco a situação foi‐se normalizando e chegou uma força da Polícia e do Exército, armada, que tomou imediatamente posições de defesa. A multidão era enorme e, por isso, impossível romper‐se lá de dentro para saber o que realmente se passava. No entanto, cá fora, as autoridades e alguns civis armados faziam fogo contra os terroristas que tentaram assaltar o cemitério precisamente no momento mais solene da cerimónia fúnebre. Com a calma mais ou menos restabelecida lá dentro, as pessoas foram procurando a saída.
A confusão tomara foros de envergadura e todos procuravam agora pôr‐se a salvo saber exactamente o que se passara. Havia dois ou três terroristas mortos no espaço vazio entre a entrada do cemitério e as casas do outro lado da estrada de Catete. A tentativa de fuga dos terroristas lançou as autoridades e os civis armados na sua peugada. Ouviram‐se ainda tiros dispersos e gritos de desespero na confusão da fuga. Os carros aglomeravam‐se na estrada, amontoados, se assim se lhe pode chamar, numa tentativa desesperada de regressar à cidade, à segurança, fugindo assim daquilo que podia ter sido uma carnificina horrível se a emboscada traiçoeira não tivesse encontrado pela frente dois ou três corajosos polícias. A polícia tentava ordenar o trânsito, o que era quase impossível. Agora nova e terrível pergunta dominava aquela gente: teriam as casas sido também assaltadas, aproveitando o facto de toda a gente se encontrar ali? As crianças haviam lá ficado.
O incidente do cemitério e a morte dos polícias caíram no olvido depressa demais. Ou, pelo menos, não foram levados na conta que deviam ser no que respeita a precaução. Não quero aqui condenar ninguém, porque o erro foi de todos nós. Sim, todos nós voltámos à nossa vida normal, em completa paz, esquecendo o perigo que aquilo poderia significar e que, como mais tarde se viu, significava mesmo. E Deus sabe como deveríamos ter imaginado que aqueles incidentes eram o prenúncio duma grande tempestade! Mas, quem acreditaria que aquela paz de séculos iria ser perturbada (e de que maneira!) dentro de pouco tempo? A calma voltou e, com ela, a mesma confiança de sempre, a confiança de um povo que vivia tranquilo no seu trabalho e no seu descanso. Os dias que se seguiram foram a antecâmara da morte para milhares de portugueses”.

fonte: folha8

 





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Samuel

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