O MPLA, partido que “só” está no poder em Angola desde 1975, assinala a passagem de mais um aniversário do ataque de nacionalistas às cadeias de Luanda defendendo aquilo que não fez durante quase 44 anos: “mais disciplina” e “controlo” nos gastos nacionais, luta contra a corrupção (o seu principal ADN) para acabar, é claro, com as “sequelas do colonialismo”.
Por Orlando Castro
A
propósito do 4 de Fevereiro de 1961, data que o partido defende como o
início da luta armada pela independência, o MPLA advoga que a libertação
total do povo angolano e a liquidação de todas as sequelas do
colonialismo passam pelo “despertar de uma nova consciência para com o
trabalho, para o controlo nacional dos gastos, para mais disciplina e
melhores resultados, em todos os sectores”.
Pois
é. Digamos que, de facto e de jure, o MPLA (de Agostinho Neto a João
Lourenço, passando por José Eduardo dos Santos) personifica o apogeu
angolano dessas “sequelas do colonialismo”. Aliás, ele não só manteve
essas sequelas como as ampliou em claro benefício próprio e exclusivo.
Se, aliás, se escolhesse a figura que mais expressão dá ao colonialismo
que abalroou o nosso país, José Eduardo dos Santos deixaria a léguas
António de Oliveira Salazar.
Nesta
data teve lugar a primeira revolta organizada contra o regime colonial
português, com o ataque à Cadeia de São Paulo e à Casa de Reclusão, em
Luanda, onde se encontravam detidos vários independentistas.
Oficialmente,
a história – contada pelo MPLA – diz que a revolta popular, armada de
paus e catanas e mais de 200 nacionalistas, foi organizada por elementos
ligados ao MPLA como Neves Bendinha ou Imperial Santana, durante largos
meses, desde Outubro de 1960.
“Deve-se
assegurar o papel crucial do Estado, como agente regulador e
coordenador de todo o processo de desenvolvimento de Angola, devendo o
mesmo exercer uma função de liderança, com base numa visão estratégica,
concertada com a sociedade civil, com o sector empresarial e com toda a
nação”, lê-se numa das muitas notas do Bureau Político do Comité Central
do MPLA.
MPLA não é dono da verdade
A
4 de Fevereiro de 1961, cidadãos ligados ao MPLA, desencadearam um
ataque contra a Cadeia de São Paulo e a Casa de Reclusão, em Luanda,
dando início à luta armada que culminou com a proclamação da
independência de Angola, em 11 de Novembro de 1975.
Várias
fontes sustentam que deveriam participar no ataque cerca 2100 pessoas,
mas as detenções efectuadas pela polícia política portuguesa (PIDE) nos
dias anteriores à acção, na sequência de denúncias, fizeram reduzir o
número para pouco mais de 200 intervenientes.
Consta
que Paiva Domingos da Silva, Imperial Santana, Virgílio Sotto Mayor e
Neves Bendinha (já falecidos) terão sido alguns dos responsáveis pela
coordenação do assalto, cujos preparativos começaram em Outubro de 1960.
A
arrojada acção tinha como objectivo primário libertar os presos
políticos angolanos que se encontravam encarcerados nas cadeias visadas,
acusados pelas autoridades coloniais de actividades subversivas. Os
participantes no ataque foram treinados sobre questões mais práticas,
por exemplo como manejar os instrumentos que seriam utilizados,
principalmente catanas, ou desarmar um sentinela.
As
informações disponíveis revelam que os treinos decorriam à noite, na
zona de Cacuaco, arredores de Luanda, e quando se começou a recear
infiltrações de indivíduos ligados à polícia política portuguesa a
preparação mudou‐se para o Cazenga.
Neste
último local foi erguido um monumento denominado “Marco Histórico do 4
de Fevereiro”, inaugurado em 19 de Setembro de 2005, em homenagem aos
heróis tombados pela causa da independência.
A
escolha da data do ataque (4 de Fevereiro) teve em atenção o facto de se
encontrarem em Luanda, na altura, jornalistas estrangeiros que
aguardavam a chegada do paquete “Santa Maria”, assaltado alguns dias
antes no alto mar por um grupo liderado por Henrique Galvão, um
oposicionista do regime de Salazar.
Quando
ficou claro que o navio não viria para Luanda e os jornalistas
começaram a preparar‐se para abandonar a capital angolana, os
nacionalistas decidiram lançar o ataque antes que fossem todos embora
para chamar a atenção da comunidade internacional sobre a repressão que
se vivia no país.
A
presença dos jornalistas garantiu a projecção mediática internacional do
assalto dos nacionalistas angolanos que, vestidos de negro e armados
com paus e catanas, atacaram os guardas da Cadeia de São Paulo e da Casa
de Reclusão de Luanda.
“A
acção revolucionária protagonizada pelos bravos patriotas foi
determinante para o derrube do colonialismo em Angola e em outras
colónias portuguesas em África”, afirmou Américo José Gaspar, coronel
das Forças Armadas Angolanas na reserva e ex‐guerrilheiro do MPLA.
Este
responsável conta que, devido à brutalidade do regime fascista, em
1966, muitos jovens como ele, na altura com 16 anos de idade, não
hesitaram em juntar‐se voluntariamente aos combatentes da liberdade para
“travar” a fúria dos colonialistas que se espalhava pelo interior do
país.
Esta
acção levou as autoridades fiéis ao regime de Salazar a enviar para
Angola os primeiros contingentes militares destinados a reforçar os
reduzidos efectivos até então destacados na província ultramarina, como
era considerado o território angolano.
Na
sequência do ataque, a pressão da polícia política portuguesa aumentou e
cresceram também as detenções entre os nacionalistas, originando a fuga
de milhares de angolanos para as matas e países limítrofes, como a
Zâmbia e o então Congo Leopoldoville, onde prosseguiram a luta pela
independência do país.
Pouco tempo depois do assalto às cadeias em Luanda, o conflito alastrou‐se às restantes colónias portuguesa em África.
Conta
o escritor Emídio Fernando que “nas conversas clandestinas, nas
esplanadas e nos serões quentes de Luanda, nas matinés e noitadas de
merengues e rebitas dos musseques, nos almoços de funge, regados com
cervejas Cuca, corria um mistério, transportado por uma frase dita em
surdina: ‘Este ano vai haver dois Carnavais!’”.
A
frase sobressaltou a advogada Maria do Carmo Medina, já conhecedora e
defensora das actividades clandestinas, quando a ouviu da boca de João
Cardoso, um activista pela independência de Angola e que viria a morrer
uns anos depois na prisão de São Pedro da Barra.
A
expressão – “dois Carnavais” – funcionava quase como uma senha de
cumplicidade entre quem estava a preparar, há largos meses, um assalto
às cadeias de Luanda.
Na
primeira linha dos preparativos aparecia Manuel das Neves, um cónego
mestiço, dos raros não‐brancos de origem portuguesa a integrar a Igreja
Católica. Era ele que servia de elo de ligação entre os presos, os seus
familiares e dirigentes políticos. E, sobretudo, um instigador, a partir
do seu pequeno quarto numa paróquia de Luanda, da revolta armada, “com
sangue”, “contra o colonialismo”.
Como
director do jornal “O Apostolado”, Manuel das Neves conseguia fazer
passar algumas mensagens subtis para o exterior, ao mesmo tempo que ia
dando notícias sobre as movimentações de alguns nacionalistas que viviam
no estrangeiro. Servia‐se ainda do jornal e de contactos com os
paroquianos para manter ligações com activistas em Luanda, mas também
com gente que viajava frequentemente entre os bairros periféricos de
Luanda e o Congo, via Matadi. E era através desses viajantes, a maior
parte de origem congolesa ou nascidos no Norte de Angola, que Manuel das
Neves ia tendo conhecimento das movimentações de nacionalistas e do
nascimento, primeiro, da UPNA e, depois, da UPA.
Há
muito que o cónego, vigário‐geral da diocese de Luanda, vinha
defendendo a necessidade de Angola se tornar independente. Desde a
década de 50, sobretudo nos derradeiros anos, que Manuel das Neves
recebia, em sua casa, perto da Sé de Luanda, o também padre Joaquim
Pinto de Andrade que, tal como o irmão, Mário, começava a participar nos
movimentos que lutavam pela independência. As conversas, de acordo com a
memória de Pinto de Andrade, não variavam muito e eram em tudo
idênticas a tantas outras em que Manuel das Neves mantinha com outros
activistas e que serviam para espalhar ideias nacionalistas:
“Ele
dizia que era preciso quebrar este mito [que os angolanos não queriam a
independência e gostavam de ser portugueses] e isto só fazendo um acto
de força, um acto que tivesse repercussão internacional para que todo o
mundo visse que os angolanos queriam ser independentes. E planeava em
conversas em que dizia: ‘Não é preciso muita coisa, para se fazer uma
guerra e vencer. Não. É só para fazer um acto que dê brado lá fora e
quebre o mito’. Então, eu disse‐lhe: ‘Como, com que armas, senhor
cónego?’ E ele respondeu‐me: ‘Armas brancas, portanto, catanas, punhais…
assaltar cadeias onde haja presos políticos para os libertar e, no
mesmo dia, assaltar a rádio e as principais esquadras da Polícia e ir
pela Rua do Balão até à Fortaleza e hastear a bandeira nacional. Bom,
temos de fazer uma bandeira nacional, temos de inventar uma’”.
Na
procura de um acto espectacular, Manuel das Neves defendia que era
necessário espreitar uma oportunidade. Por exemplo, quando houvesse
jornalistas estrangeiros em Angola. O ensejo, tantas vezes desejado,
surgia proporcionado por Henrique Gal‐ vão, quando decidiu desviar o
navio “Santa Maria”. Demitido do exército, onde tinha o posto de
capitão, Henrique Galvão resolveu assaltar o paquete, com 970 turistas a
bordo, que se propunha atravessar o Atlântico com destino ao Brasil.
A
“Operação Dulcineia” começara no início de Janeiro. Henrique Galvão
encontrava‐se na Venezuela à espera do navio que deveria fazer escala em
Caracas a caminho do Rio de Janeiro.
Galvão
e mais 20 elementos – entre portugueses e espanhóis que combatiam as
duas ditaduras ibéricas – do autoproclamado DRIL (Directório
Revolucionário Ibérico de Libertação) tomavam de assalto o navio
anunciando que pretendiam atracar em Angola. Mal foi dada a notícia do
sequestro do navio, jornalistas de quase todo o Mundo aterravam em
Luanda. No entanto, a aventura de Henrique Galvão terminava no Brasil,
precisamente na noite de 3 de Fevereiro, poucas horas antes dos assaltos
às cadeias.
Luanda
estava “apinhada de jornalistas, cineastas e locutores de rádios”, de
acordo com um relatório da PIDE, elaborado dias depois.
Manuel
das Neves recebia a colaboração empenhada de Mariana Ana Paz, que tinha
a incumbência de levar comida para os presos da Casa de Reclusão
Militar, na Cadeia de São Paulo, quase todos eles, detidos por
participarem em actividades subversivas contra o regime. Mas não só.
Cada visita era acompanhada por mensagens, não apenas do cónego, mas de
outros activistas. E, no interior dos bairros, pontificava o
“mais‐velho” Cardoso Sebastião Gamboa, considerado, pela população, como
tendo poderes “mágicos”.
Ritos ditos mágicos
Há
várias semanas que Cardoso Gamboa obrigava os chefes de outros bairros a
uma rigorosa quarentena, com vigílias permanentes ao fim do dia, no
cemitério, e um jejum absoluto. Os chefes seguiam assim as práticas
tradicionais de feitiçaria importadas do Congo, em que até se usava uma
panela a ferver, a cozer uma carta, que se dirigia a Patrice Lumumba e
com o objectivo de o informar o que se preparava em Luanda. O “campo dos
brasileiros”, no Bairro Rangel, servia de palco para as reuniões
clandestinas e os preparativos em que se pedia a inspiração e ajuda dos
espíritos. As catanas e os cassetetes iam sendo benzidos por dois
curandeiros, em cerimónias praticadas na casa de Paiva Domingos da Silva
que, uns meses antes, viajara até ao Congo em busca de poderes mágicos.
Enquanto
decorriam estas movimentações pela cidade de Luanda, os presos
políticos viviam, praticamente em todas as cadeias, com uma espada sobre
a cabeça: a possibilidade de, a qualquer momento, serem transferidos
para o Tarrafal, na ilha cabo‐verdiana onde foi construída uma prisão de
alta segurança inspirada nos modelos dos campos de concentração nazis.
Além
do desejo de fuga, Manuel das Neves, Cardoso Gamboa e os presos
políticos não tiravam da cabeça os últimos acontecimentos em Angola.
Depois do “Processo dos 50”, o mês de Janeiro desse ano assistira aos
actos mais sangrentos dos últimos tempos provocados pelo regime e,
provavelmente, o maior banho de sangue da história colonial portuguesa.
Na
Baixa de Cassange, província de Malanje, milhares de agricultores das
fazendas de algodão – a maior parte deles vindos do Sul e obrigados a
trabalhar no Norte – revoltavam‐se com as condições de vida. Exigiam
apenas a abolição do trabalho forçado e o fim do pagamento de impostos,
fazendo greve nas plantações algodoeiras, num movimento liderado por
António Mariano. Os protestos não se limitavam à greve.
Durante
dois dias, foram queimadas sementes, algumas pontes sobre os rios
apareceram destruídas e as missões católicas, as lojas e casas de
colonos sofreram ataques. As tropas portuguesas reagiram, colocando em
acção as companhias de caçadores especiais e aviões que lançaram bombas
incendiárias. A investida das tropas coloniais, da polícia e de alguns
colonos, além de esmagar a rebelião, provocou a morte a milhares de
agricultores que trabalhavam para a Companhia de Algodão de Angola e
para a Cotonang, uma fazenda algodoeira de capitais mistos de
portugueses e belgas.
O
massacre de Cassange não passava despercebido pela imprensa em quase
todo o Mundo, ao mesmo tempo que os jornais em Portugal, subjugados pela
censura, nem sequer arriscavam a abordar o assunto.
No
entanto, ganhava outra dimensão no topo da polícia política. Por isso,
logo a seguir ao massacre de Cassange, nascia o SIGGA (Serviço de
Informações do Governo Geral de Angola) que reunia as informações
recolhidas pela PIDE e por militares e a meio do ano dava lugar ao SCCI
(Serviço de Centralização e Coordenação de Informações). Iniciava‐se
assim uma colaboração, entre a polícia política e as forças armadas,
que, no entanto, em 14 anos, iria passar por diversas dificuldades de
entendimento.
Os
acontecimentos de Cassange, que se repetiram, mas com resultados de
menores dimensões, nos dias imediatamente seguintes, deixavam fortes
marcas a muitos dos sobreviventes que encontraram refúgio nas periferias
das cidades mais importantes, como Benguela, Novo Redondo, Nova Lisboa e
Luanda.
O
dia 4 de Fevereiro ameaçava ser um dia igual aos outros vividos nos
últimos tempos em que os musseques da capital angolana ardiam de
ansiedade. Luanda preparava‐se para as noites de folia e matinés
dançantes que eram quase milimetricamente preparadas pela burguesia
portuguesa, já adaptada à alegria luandense e também pelos angolanos “de
segunda”.
Na
Casa de Reclusão Militar, o nacionalista Mendes de Carvalho, preso no
âmbito do “Processo dos 50”, com ligações estreitas aos grupos de
enfermeiros e alfaiates que entretanto se formaram em Luanda, tentava
entregar, há largos meses, um recurso ao Supremo Tribunal Militar,
escrito na cadeia e baseado num código de Justiça Militar, que ele
próprio consultara. Os argumentos do recurso foram delineados com a
ajuda de André Franco de Sousa, que já se vinha destacando por ter
participado nos primeiros passos do MPLA.
No
decorrer do julgamento, Mendes de Carvalho ficara sem o acompanhamento
do advogado, porque todos os juristas se recusavam a defendê‐lo a partir
do momento em que, em plena sala de tribunal, resolveu acusar os
portugueses de serem “um povo bárbaro”.
No
entanto, o recurso só poderia ser entregue em Lisboa, precisamente por
um causídico. Também por carta e por sugestão de André Franco de Sousa,
Mendes de Carvalho solicitara a ajuda do bastonário da Ordem dos
Advogados, Adelino da Palma Carlos, que, no entanto, recusara recorrendo
ao argumento de “falta de tempo”.
O
nacionalista angolano virava‐se então para o advogado Luís Saias, que,
ao aceitar, recomendava o envio de uma procuração, “com muita urgência”.
A resposta de Luís Saias chegava à Cadeia de São Paulo no final da
tarde de 3 de Fevereiro de 1961.
Mendes
de Carvalho decidia‐se por pedir o auxílio ao irmão, num telefonema, em
que lhe solicitava que fosse buscar, à cadeia, uns documentos para
serem “transferidos para Lisboa”.
“Transferidos” para onde?
As
palavras “transferidos” e “Lisboa” soavam, de imediato, como campainhas
que accionavam os sentidos e os permanentes receios dos presos. À
velocidade de um fósforo aceso, passava a informação na cadeia que todos
os detidos seriam transferidos, no dia a seguir, para a capital
portuguesa. O mesmo era dizer: para a ponte de passagem a caminho do
Tarrafal. Fizeram‐se malas, arrumaram‐se os parcos haveres, avisaram‐se
as famílias e o rumor depressa se propagou nos bairros dos arredores de
Luanda, onde há muito se aguardava um sinal para atacar os
estabelecimentos prisionais.
De
madrugada, na passagem de 3 para 4 de Fevereiro, precipitava‐se tudo.
Um foguete, accionado num bairro vizinho da Cadeia de São Paulo,
rebentava às quatro horas da manhã, dando sinal para que mais de 250
pessoas, divididas em 10 grupos, e vestidas de camisolas e calções
pretos e de catanas em punho, largassem os bairros a caminho das
cadeias. Destes, apenas quatro grupos entravam em confrontos directos
com as forças portuguesas e conseguiam atingir os alvos: a Cadeia de São
Paulo e outros estabelecimentos prisionais da cidade de Luanda.
Dentro
da prisão, os grupos de detidos que, há meses, preparavam a fuga,
resolveram avançar, pegando em todos objectos que fossem cortantes. Os
primeiros ataques provocavam a morte a um cabo, de apelido Silva, que
fora decapitado, sendo a primeira vítima da longa madrugada luandense.
Em poucas horas, morriam 40 assaltantes e sete guardas prisionais, de
acordo com dados oficiais divulgados pelo Governo Geral de Angola.
Na
preparação dos ataques, estiveram envolvidos 3.123 homens, todos
recrutados nos bairros periféricos, e comandados, no terreno, pelos
angolanos Paiva Domingos da Silva e Francisco Imperial Santana.
Ainda
na manhã de 4 de Fevereiro, Mendes de Carvalho era chamado ao gabinete
do director. Sobre ele recaía a suspeita de ter dado o sinal para os
ataques.
Escritor,
assinando com o seu pseudónimo em kimbundu, Uanhenga Xitu, Mendes de
Carvalho, haveria de recordar, num livro publicado depois de 1975, essas
horas em que ele próprio admite não saber como conseguiu sobreviver.
De
Conakry, mal souberam dos acontecimentos em Luanda, os dirigentes do
MPLA, a viver no exílio, resolviam reivindicar a autoria dos assaltos.
Coubera a Mário Pinto de Andrade, presidente do movimento, as primeiras
palavras de regozijo pelo que se passara na capital angolana. O
presidente do MPLA, acompanhado por outro dirigente, Lúcio Lara, emitia
um comunicado em nome do Comité Director do MPLA, intitulado “Os
incidentes de Luanda”.
O texto recordava os acontecimentos na capital angolana e voltava a falar na “acção directa”.
Mas
o “4 de Fevereiro” não iria acabar na manhã desse dia. Dias depois,
logo após os funerais das vítimas, grupos de civis brancos organizavam
autênticas batidas pelos musseques da periferia de Luanda e provocavam a
morte a centenas de pessoas. Uma semana depois, o “filme” era retomado,
mas em menor escala.
Novos
tumultos nas cadeias faziam sete mortos, todos presos, e mais 17
feridos. E novas incursões dos mesmos grupos de civis deixavam um lastro
de sangue e provocavam um número elevado de vítimas mortais que nunca
chegou a ser contabilizado.
No
intervalo dos dois ataques, o governador‐geral de Angola, Silva
Tavares, resolvia fazer uma incursão pelos musseques – ou “bairros
excêntricos”, como eram descritos pela imprensa em Lisboa – acompanhado
pela polícia e por jornalistas previamente escolhidos.
Silva
Tavares pretendia assim demonstrar que a situação se encontrava calma.
Logo a seguir à visita, o governador leu uma mensagem, na Emissora
Nacional, garantindo que reinava a calma em Luanda e recomendando às
pessoas para acatarem as ordens e recomendações da polícia.
A versão portuguesa (Silva Tavares)
“N
a madrugada de 3 para 4 de Fevereiro de 1961, sete agentes da
autoridade foram cobardemente assassinados, traiçoeiramente, sem poderem
esboçar um gesto de defesa, quando cumpriam o seu serviço de rotina.
Caíram numa cilada, acorrendo a um chamamento de socorro, a uma fictícia
desordem, em plena madrugada.
Mortos
com requintes de selvajaria, cortados à catanada, foram estes os
primeiros mártires da causa portuguesa, as primeiras vítimas da horda
assassina a soldo de potências estranhas de intenções conhecidas. Na
manhã do dia 4 a notícia espalhou‐se por toda a cidade como um
relâmpago.
A
surpresa foi tão grande que, a princípio, era difícil acreditar que
fosse verdade. Mas lá estavam os cadáveres, sete corpos que horas antes
ainda fervilhavam de vida, a atestar a notícia, tão cruel como
revoltante. Começavam então a conhecer‐se pormenores.
Houvera
ainda uma tentativa de assalto à Casa da Reclusão Militar, onde fora
morto um cabo do exército. Havia ainda alguns agentes da autoridade
hospitalizados, gravemente feridos. Houvera um soldado negro que fora um
verdadeiro herói. Debaixo do fogo e das catanas dos invasores,
conseguira meter‐se no ‘jeep’ e chegar, embora ferido, ao quartel onde
dera o alarme. De manhã, toda a zona das Barrocas estava a ser motivo de
aturada rusga por parte da Polícia. Luanda inteira já sabia dos
acontecimentos e assistia excitada e revoltada ao desenrolar das coisas.
Mas
ainda não passava pela cabeça de ninguém, naquela altura, que aquilo
seria o prenúncio de dias terríveis, dias que ficariam para sempre
marcados na história de um país, dias que deixariam a terra de Angola
regada com o sangue dos seus habitantes, colhidos de surpresa por um
bando de assassinos narcotizados e completamente enlouquecidos por
promessas enganosas e impossíveis.
Deus
sabe como nesta terra se vivia com absoluta e completa paz, lutando
lado a lado, pretos, brancos e mestiços para o mesmo fim: o
engrandecimento da sua Pátria – PORTUGAL!
O funeral destes malogrados portugueses realizou‐se no dia 5 de Fevereiro de 1961, da Igreja do Carmo para o Cemitério Novo.
Jamais
se vira um acompanhamento fúnebre como aquele! Ao longo de todo o
percurso, nas ruas, nas janelas, nas paredes, nas árvores, em toda a
parte onde houvesse um lugar para tal, lá estava uma pessoa, de lágrimas
nos olhos para dar o último adeus aos sete heróis. Milhares e milhares
de pessoas e carros acompanharam os sete ataúdes até ao cemitério. No
Cemitério Novo e no largo fronteiro, era impossível meter mais gente. O
governador‐geral e as mais altas individualidades civis e militares da
Província integraram‐se no cortejo, junto às urnas. Foi a maior
manifestação de pesar que jamais se viu na capital de Angola.
Rezavam‐se
as últimas preces e preparavam‐se as urnas para baixar à terra, sua
última morada, quando os milhares de pessoas que se encontravam dentro
do cemitério foram alertados por gritos e alguns tiros vindos de fora. A
confusão foi geral e o pânico apoderou‐se de todos. Mulheres gritavam
pelos filhos, filhos gritavam pelos pais, pessoas corriam de um lado
para o outro. Só visto. Soaram mais tiros. Homens muniam‐se de paus ou
de qualquer outro objecto que encontrassem e que lhes pudesse servir de
defesa. Corriam em todas as direcções. O pânico era geral.
Desconhecia‐se ainda, lá dentro dos muros, o que na realidade se estava a
passar cá fora. Mas pairou sobre todos a ideia de um ataque naquele
momento e naquele local, colhendo toda a gente de surpresa e
praticamente ‘enjaulada’ entre as quatro paredes do campo santo.
O
descontrolo era absoluto. Poucos conseguiram conservar a calma. Soaram
mais tiros. Pouco a pouco a situação foi‐se normalizando e chegou uma
força da Polícia e do Exército, armada, que tomou imediatamente posições
de defesa. A multidão era enorme e, por isso, impossível romper‐se lá
de dentro para saber o que realmente se passava. No entanto, cá fora, as
autoridades e alguns civis armados faziam fogo contra os terroristas
que tentaram assaltar o cemitério precisamente no momento mais solene da
cerimónia fúnebre. Com a calma mais ou menos restabelecida lá dentro,
as pessoas foram procurando a saída.
A
confusão tomara foros de envergadura e todos procuravam agora pôr‐se a
salvo saber exactamente o que se passara. Havia dois ou três terroristas
mortos no espaço vazio entre a entrada do cemitério e as casas do outro
lado da estrada de Catete. A tentativa de fuga dos terroristas lançou
as autoridades e os civis armados na sua peugada. Ouviram‐se ainda tiros
dispersos e gritos de desespero na confusão da fuga. Os carros
aglomeravam‐se na estrada, amontoados, se assim se lhe pode chamar, numa
tentativa desesperada de regressar à cidade, à segurança, fugindo assim
daquilo que podia ter sido uma carnificina horrível se a emboscada
traiçoeira não tivesse encontrado pela frente dois ou três corajosos
polícias. A polícia tentava ordenar o trânsito, o que era quase
impossível. Agora nova e terrível pergunta dominava aquela gente: teriam
as casas sido também assaltadas, aproveitando o facto de toda a gente
se encontrar ali? As crianças haviam lá ficado.
O
incidente do cemitério e a morte dos polícias caíram no olvido depressa
demais. Ou, pelo menos, não foram levados na conta que deviam ser no que
respeita a precaução. Não quero aqui condenar ninguém, porque o erro
foi de todos nós. Sim, todos nós voltámos à nossa vida normal, em
completa paz, esquecendo o perigo que aquilo poderia significar e que,
como mais tarde se viu, significava mesmo. E Deus sabe como deveríamos
ter imaginado que aqueles incidentes eram o prenúncio duma grande
tempestade! Mas, quem acreditaria que aquela paz de séculos iria ser
perturbada (e de que maneira!) dentro de pouco tempo? A calma voltou e,
com ela, a mesma confiança de sempre, a confiança de um povo que vivia
tranquilo no seu trabalho e no seu descanso. Os dias que se seguiram
foram a antecâmara da morte para milhares de portugueses”.
fonte: folha8
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